sábado, 23 de setembro de 2017

MARIA SANTÍSSIMA Como a Igreja ensina - Padre Émile Neubert Marianista, Doutor em Teologia


                

MARIA SANTÍSSIMA

Como a Igreja ensina Padre Émile Neubert Marianista, Doutor em Teologia

PREFÁCIO

No meu prefácio à primeira edição deste livro, transcrevi um texto do Pequeno Tratado do Conhecimento de Maria, que o Pe. Guillaume Joseph Chaminade -- grande servo de Maria no século 19, cujo processo de canonização caminha auspiciosamente em Roma -- publicou próximo do fim de sua vida. Ele se inicia com estas palavras que bem o caracterizam: "Todos os dias falamos de Maria, reunimo-nos diante dos seus altares, alegramo-nos por sermos seus filhos e por participarmos de associações mais especialmente dedicadas ao seu culto. Porém, na ordem da fé, mal a conhecemos e mal nos damos conta de tudo o que Ela representa para Deus e para nós. A muitos desses cristãos a augusta Virgem poderia lançar a censura que Deus fez ao seu povo pela boca de Isaías: 'Nem os bois me reconheceram nem o meu povo me compreendeu'".

G.J, Chaminade, fundador da Sociedade de Maria Marianistas -- e das Filhas de Maria Imaculada, no Petit Traité de la Connaissance de Marie -- Téqui, Paris, 1927.


Alguns anos antes, o Pe. Chaminade prenunciara aos seus discípulos, e mesmo em carta ao Papa Gregório XVI, [16/09/1838] que a próxima era da humanidade seria a do triunfo de Maria, o qual traria consigo o triunfo de Cristo e de sua Igreja. Presenciamos agora a realização dessa profecia, ou ao menos seu início, pois o século atual se glorifica, a justo título, de ser por excelência o século de Maria. (São conhecidas as previsões análogas de São Luís Grignion de Montfort no seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Mas as do Pe. Chaminade são independentes das de São Luís, cujos originais do seu Tratado só foram descobertos em data posterior.)

No entanto, será que o lamento do Pe. Chaminade sobre o conhecimento de Maria deixou de ter fundamento em nossos dias? Terá o conhecimento de Maria progredido bastante entre aqueles mesmos que "falam de Maria todos os dias e se reúnem diante dos seus altares"? Ninguém ousaria afirmá-lo. Ainda recentemente, o Pe. Doncœur escreveu: "Esta geração, alimentada pelo dogma e pela Eucaristia, fará grandes coisas, mas ainda lhe resta descobrir a Santíssima Virgem". Sem dúvida, o estudo dos teólogos sobre a doutrina relativa à Virgem avançou muito, especialmente após 1854. Do ponto de vista mariano, se a nossa época apresenta alguma vantagem sobre a maravilhosa época marial que foi a Idade Média, isso se prende ao seu caráter doutrinário.

Quaisquer que tenham sido os espetáculos de devoção a Maria, contemplados por nossos antepassados naqueles séculos de fé, não lhes terá sido possível ver, como nós vemos, tantos teólogos ocupados em estudar as prerrogativas da Mãe de Deus, além de congressos nacionais e internacionais reunidos para pôr em relevo suas grandezas e sistematizar seu culto. O próprio Magistério Supremo -- sem ser a isso forçado pelos ataques heréticos, mas movido por pura devoção -- define ou se prepara a fim de definir muitos dos seus gloriosos privilégios.

Examinando as coisas de perto, no entanto, somos obrigados a reconhecer que o avanço doutrinário só se afirmou entre os teólogos. Não é necessário proceder a uma pesquisa minuciosa para constatar a ignorância da grande maioria dos fiéis a respeito da Mãe de Deus, mesmo daqueles que se consideram instruídos, mas cuja bagagem mariológica se resumiria a algumas linhas contendo a enumeração dos principais privilégios e a afirmação do seu poder e bondade.

É fácil prever que, se a devoção a Maria se baseia menos no dogma do que no sentimento, será tão instável como o sentimento. Pode manifestar-se muito terna ou entusiasta em certos momentos, mas quase desaparece ou apenas subsiste com eficácia limitada em outros, nos quais ela sobretudo é necessária: nas tentações da idade crítica e na época das aspirações viris ao apostolado. De uma doutrina rudimentar, não pode brotar mais que uma devoção amesquinhada. Até essa devoção amesquinhada pode, em certas ocasiões, produzir resultados surpreendentes, que no entanto representam apenas uma ínfima parte do que obteriam os que são dotados de sólida devoção à Virgem. Quem conhece de perto certas almas mariais, encanta-se com as maravilhas de santidade e fecundidade apostólica que nelas opera a união com a Mãe de Jesus. São essas as almas que "descobriram a Santa Virgem". Para a maioria, esse descobrimento ainda não se fez.

Como explicar tal ignorância numa época tão fértil em escritos sobre a Virgem? Dentre as múltiplas causas, por mais paradoxal que pareça, uma das principais é que são raros os livros próprios a dar sobre Maria um conhecimento exato e sólido.

Os sábios estudos publicados sobre a Virgem nesses últimos oitenta anos interessam apenas aos teólogos de profissão. Os leigos, e mesmo a maioria dos sacerdotes e religiosos, não dispõem de tempo nem da formação necessária para neles se aprofundarem. Para estes, grande número de livros de devoção foram impressos, a maioria dos quais com o propósito de edificar, mais do que instruir. Partem da suposição de que as bases doutrinárias são conhecidas, e tiram consequências de princípios estabelecidos tomando-os como conhecidos.

Seriam necessários outros livros contendo um ensinamento sério e metódico sobre o conjunto das questões relativas à Mãe de Deus. Livros que façam uma ponte entre os tratados profundos e as obras de devoção, que sejam bastante simples para estarem ao alcance de todos os que desejam instruir-se bem sobre sua devoção a Maria, mas suficientemente substanciais para assentar em bases sólidas essa piedade.

Muitos tratados têm se dedicado a este problema nesses últimos vinte anos, mas resta ainda muito a fazer. Diversidades de espírito, diferenças de formação intelectual e religiosa, de tendências e costumes, de gostos e propensões, exigem uma diversidade correspondente no modo de apresentar a doutrina mariana. Se essa doutrina deve exercer uma ação possante sobre a Igreja inteira, como parecem indicar os sinais da Providência, é necessário que ela esteja ao alcance das diversas classes de fieis que compõem a Igreja de Cristo.

Este livro tem o objetivo de contribuir para essa difusão do conhecimento de Maria. Foi redigido tendo em vista os sacerdotes que, por diversas causas, não podem se dedicar ao estudo das obras especializadas;  as religiosas e religiosos, sobretudo os que se dedicam ao apostolado da educação;  os leigos piedosos, a cada dia mais numerosos, que desejam compreender melhor para poderem viver melhor. Tem em vista também essa juventude apostólica, ardente e generosa -- sobretudo a das nossas revitalizadas congregações marianas -- que constitui a esperança da Igreja e da sociedade. Essa juventude sabe que, para sua ação ser eficaz, deve impregnar-se da vida de Cristo, mas sabe também que só se conseguirá compreender bem a Cristo por meio de sua Mãe. Fará grandes coisas, quando tiver entendido a Santíssima Virgem. (Para essa mesma categoria de leitores, escrevi os livros Vie de Marie e La dévotion à Marie.

No livro Notre Mère, pour la mieux connaître, desenvolvi de modo acessível aos fieis comuns três assuntos: Vida de Maria;  grandezas de Maria;  devoção a Maria. Uma edição mais simples, Votre Maman du ciel, é destinada às crianças.)

O que afirmei na primeira edição, sobre a ignorância dos leigos quanto à doutrina mariana, deixou de ser totalmente exato. Durante uma década, em muitos ambientes começou-se a sentir necessidade de conhecer melhor a Mãe de Jesus, pois que se passou a compreender, pelo menos a pressentir, que a verdadeira devoção a Maria é algo bem diferente de um assunto sentimental ou de piedade pessoal, e que ela tem importante papel a desempenhar também no apostolado. Nas associações marianas cujos nomes se multiplicam, como também nos diversos centros de ação católica especializada e ainda outros, têm-se estudado com crescente ardor as grandezas da Mãe de Deus e a função da devoção a Ela na vida de um discípulo de Cristo, sobretudo de um apóstolo de Cristo.

A rápida difusão da Legião de Maria na França, com sua preocupação de imprimir na base de sua ação apostólica uma marcante devoção a Maria com fundamento doutrinário, parece contribuir poderosamente para difundir em número crescente de fieis o desejo de se dedicar a um estudo sério da doutrina mariana. Trata-se aí apenas de um começo, pois grande parcela de católicos precisa ainda descobrir Maria.

Esta segunda edição foi reformulada. Os capítulos foram reagrupados, de modo a fazer compreender melhor o "mistério de Maria". As grandezas da Virgem foram divididas em dois grupos:

1º. Funções sociais;

2º. Prerrogativas. Os capítulos do primeiro grupo foram retrabalhados e completados. Um capítulo novo foi acrescentado sobre "A missão apostólica de Maria".

Espero que, assim redistribuído e ampliado, este livro servirá melhor ainda a tornar conhecida e amada aquela que, desde toda a eternidade, foi predestinada a dar Cristo ao mundo e o mundo a Cristo. Friburgo, 1º de maio de 1945.

INTRODUÇÃO


Algumas palavras introdutórias são necessárias para a melhor compreensão do método de exposição usado neste livro.

Sobre as diversas grandezas de Maria, examinaremos seu significado, seu caráter de verdade revelada, sua importância e suas harmonias. O sentido da primeira e das duas últimas abordagens não exigirá longas explanações, porém insistiremos mais na segunda, ou seja, no seu caráter de verdade revelada. O significado exato de cada uma das grandezas de Maria precisa ser bem estabelecido, tendo em vista sobretudo que certos fieis têm sobre isso noções obscuras ou incompletas, por vezes até inteiramente falsas.

As verdades religiosas, em particular as verdades mariais, não são especulações estéreis, e sim "espírito e vida", por isso nos empenhamos em indicar a importância especial de cada uma das grandezas da Mãe de Deus. Não somente do ponto de vista teórico, mas sobretudo em função da vida sobrenatural e da atitude prática que elas exigem em relação a Maria.

Haverá também oportunidade para mencionarmos as "harmonias" entre cada uma das grandezas de Maria e suas outras grandezas, ou ainda com outras verdades sobrenaturais. Com efeito, Deus "fez tudo com ordem e medida", e tornou Maria a mais harmoniosa de todas as criaturas. Tudo se contém e se aceita na sua pessoa, nas suas funções e prerrogativas. Para bem compreender, bem admirar, e sobretudo bem viver qualquer desses atributos, é necessário contemplá-lo não só em si mesmo, mas também nas suas relações com os outros, e mesmo com o conjunto da Revelação.

A propósito do caráter de verdades reveladas que atribuímos às diversas grandezas de Maria, nós o encaramos como doutrinas de fé, sustentando evidentemente que elas nos vêm da Revelação. Como elas chegaram até nós? Muitas delas estão contidas claramente na Sagrada Escritura. Em termos explícitos, como a sua virgindade, ou em termos equivalentes, como a sua maternidade divina. Porém outras, talvez a maioria, não se discernem numa primeira análise do texto sagrado, mas um exame atento descortina neles certas afirmações que sustentam relações mais próximas ou menos com alguma prerrogativa marial.

Por um processo às vezes rápido, outras vezes muito longo, a partir de algumas indicações obscuras os fieis chegaram à visão clara de verdades professadas atualmente. Não se trata aqui de um processo de lógica abstrata, mas de lógica vital, ao mesmo tempo natural e sobrenatural. Assemelha-se em parte ao processo pelo qual chegamos pouco a pouco à convicção de que tal palavra, pronunciada por tal pessoa, não deve ser entendida no seu sentido óbvio, e sim no sentido hiperbólico, metafórico ou irônico, adquirindo tal significado. Para distinguir qual destes se aplica, de nada adianta montar silogismos com base no sentido próprio das palavras. O que se deve fazer é procurar conhecer o modo geral de pensar e de sentir do autor, as afirmações que sustentou em outras ocasiões a respeito da mesma ideia, as circunstâncias especiais em que ele as pronunciou, etc.

Obtém-se assim certo número de indicações convergentes que possibilitarão definir, por vezes em grau de certeza, o sentido exato que se deve dar a tal palavra. Algumas dessas indicações podem não resultar em certeza, mas se no seu conjunto elas orientam o espírito no mesmo sentido, isso exclui a dúvida. Também no domínio da fé, talvez não se alcance uma conclusão válida a partir de um silogismo alicerçado em um texto isolado da Escritura. Porém, quando um conjunto de afirmações escriturais converge para uma mesma doutrina, conduz a uma certeza, ou pelo menos a uma forte probabilidade.

Outro fator psicológico contribui na compreensão das verdades reveladas. Sendo elas "espírito e vida", quanto mais vivemos uma verdade de ordem moral, sobretudo de ordem espiritual, melhor a compreendemos;  e só a compreendemos de fato se a vivemos. Foi o que Nosso Senhor ensinou aos fariseus, quando lhes disse: "Se alguém quer fazer a vontade de meu Pai, saberá se minha doutrina é de Deus ou se falo por mim mesmo". É por isso que almas simples, mas entregues completamente à vontade de Deus, compreendem melhor as verdades reveladas do que certos teólogos que discorrem doutamente sobre elas. À medida que almas amorosas se dedicaram a viver os ensinamentos que a Tradição lhes apresenta sobre a Virgem Maria, fizeram avançar o entendimento do dogma marial.

Por vezes surgem pessoas que, mais confiantes nas suas luzes pessoais do que na doutrina tradicional, se põem a contradizer o que em torno delas outros acreditam. Suas negações provocam escândalo, indignação e discussões. Mas até isso contribui para o progresso da verdade revelada, pois tais ataques levam os fieis a estudar melhor os dados da Escritura e a viver melhor a doutrina que está sendo combatida.

Paralelamente a esses dois fatores de entendimento progressivo da verdade revelada, atua outro de ordem sobrenatural, que é a assistência infalível prometida por Nosso Senhor a seus discípulos antes de os deixar: "Eis que estarei convosco em todos os tempos, até o fim do mundo". Por seu Espírito, Ele orienta sempre a Igreja, seu corpo místico. O que a Igreja faz, é Cristo que o faz por meio dela. Ele é quem preside a vida da Igreja, que a faz conscientizar-se com nitidez cada vez maior da verdade que em vida lhe confiou. Depois da Santa Ceia, Ele disse aos seus discípulos: "Tenho ainda muitas coisas a voz dizer, mas ainda não podeis compreendê-las. Quando vier, o Espírito de verdade vos guiará para a verdade completa,  pois tomará do que é meu e vo-lo fará conhecer". É portanto sob a ação do Espírito Santo que a Igreja consegue compreender cada vez mais claramente a verdade pregada pelo Mestre.

E também por isso o desenvolvimento do dogma é preservado de toda possibilidade de erro.

As indicações convergentes de que falamos, e a fidelidade em viver uma doutrina, podem conduzir a uma quase certeza, mas não excluem todas as hesitações. Certeza absoluta só é possível com a assistência constante do Espírito Santo.

Em que momento do desenvolvimento de uma doutrina pode-se afirmar sua certeza? A resposta é instintiva: "Quando o Papa ou o Concílio a define". Com efeito, a definição solene pelo Papa quando fala como doutor universal, excathedra, ou pelo Concílio com a aprovação do Papa, põe fim a toda discussão e constitui o critério mais explícito da certeza de uma doutrina. A essas definições, devem-se acrescentar as afirmações contidas nos símbolos de fé universais.

Entretanto, não se deveria acreditar que as verdades assim definidas sejam as únicas que nos são apresentadas com a garantia de absoluta certeza. A autoridade dos concílios e a questão da infalibilidade pontifical adquiriram importância excepcional sobretudo depois do século 16, levando certos fieis, até mesmo certos teólogos, a perder a verdadeira noção da extensão que tem a autoridade doutrinária da Igreja. Parecem acreditar que, se durante muito tempo uma opinião não foi definida por um Papa ou por um Concílio, torna-se duvidosa, ficando-se livre para aceitá-la ou rejeitá-la. Essa é uma atitude expressamente condenada pelo Syllabus,  contrária ao ensinamento da Igreja definido pelo Primeiro Concílio do Vaticano. (Proposição condenada: A obrigação estrita que vincula os mestres e escritores católicos se restringe às afirmações propostas à crença de todos como dogmas de fé, por um julgamento infalível da Igreja.

Devem ser aceitas como de fé divina e católica todas as verdades contidas na palavra de Deus, escrita ou transmitida pela Tradição, e que a Igreja, seja por uma decisão solene, seja por seu ensinamento ordinário e universal, propõe à nossa crença como divinamente revelada.)

O Primeiro Concílio do Vaticano distinguiu um duplo ensinamento da Igreja:

1º. Ensinamento estabelecido por definições solenes;

2º. Ensinamento do magistério ordinário. Denominando este último ordinário, o Concílio entende tratar-se do ensinamento que mais habitualmente nos deve guiar, e que a Igreja disponibiliza para seus filhos em condições normais. Está contido principalmente:

1ª nos escritos da Santa Sé destinados à Igreja universal;  embora não contendo definições expressas, pretendem expor a doutrina tradicional da Igreja sobre algum ponto de doutrina;

2ª nas instruções dos bispos aos seus diocesanos -- catecismos, cartas pastorais -- aceitos como a expressão do ensinamento comum da Igreja;

3ª nas orações litúrgicas universais, às quais se aplica o adágio Lex orandi, lex credendi. (O que se reza é o que se crê) Evidentemente a Igreja não colocaria na boca dos seus filhos fórmulas de orações litúrgicas contrárias à fé. Segundo o Primeiro Concílio do Vaticano, portanto, as verdades que nos são propostas pelo ensinamento ordinário da Igreja se impõem à nossa adesão tanto quanto as que foram definidas por uma decisão solene do Papa ou por um Concílio. O cristão que recusa as segundas com obstinação é tão herege como se recusasse as primeiras. (Denzinger-Bannwart, 2200.

Depois do Batismo, se uma pessoa admitida como cristã nega ou põe em dúvida obstinadamente qualquer verdade que é obrigada a aceitar como de fé divina e católica, essa pessoa é herege.)

Tem sido este, aliás, o ensinamento constante da Igreja. Santo Irineu e outros escritores eclesiásticos dos três primeiros séculos fornecem longas listas de heresias que a Igreja de seu tempo rejeitou. Até o Concílio de Nicéia, em 325, nenhum Concílio ecumênico e nenhum Papa em definição excathedra intervieram para condenar tais novidades. Porém, como elas eram contrárias aos ensinamentos tradicionais, isso bastava aos bispos para fazê-las rejeitar pelos fiéis. Por outro lado, todos os filhos da Igreja professavam a presença real de Jesus na Eucaristia, a virtude especial dos sacramentos, o valor das indulgências, a existência do purgatório, etc. Não se tratava de opiniões mais ou menos prováveis, e sim de verdades admitidas como absolutamente certas desde muitos séculos antes da condenação dos erros de Lutero pelo Concílio de Trento.

Sem dúvida, nem sempre é fácil determinar se uma proposição pertence ao ensinamento ordinário da Igreja tanto quanto outra que foi objeto de decisão solene. Em caso de dúvida, o assentimento não se impõe, mas a História mostra que a grande maioria dos fiéis jamais teve longas hesitações a propósito das diversas afirmações religiosas, e para quem procura com simplicidade conhecer e viver o pensamento da Igreja elas são fáceis de estabelecer.

Quem não queira admitir como absolutamente indiscutível, por exemplo, a virgindade de Maria, sua maternidade divina e sua Imaculada Conceição, e que trate como puras opiniões livres as afirmações relativas aos seus outros privilégios, estará se arriscando a cometer falta não só quanto à sua piedade em relação a Maria, mas também quanto à sua própria fé. Dentre esses privilégios, alguns são reconhecidos como parte do ensinamento ordinário da Igreja, e exigem de nosso espírito assentimento tão firme quanto em relação àquelas três grandes prerrogativas.

Ao lado desses dois critérios, que se apoiam sobre a autoridade da Igreja docente, há um terceiro que consiste na atitude geral dos fieis (Igreja dicente) em relação a alguma afirmação. Essa atitude é uma manifestação do ensinamento da Igreja, pois a generalidade dos fieis não professaria tal ponto de doutrina se não o tivesse aprendido dos seus pastores.

O valor dessa atitude dos fieis resulta ainda de outro fator que já mencionamos: a presença constante do Espírito Santo na Igreja, para preservá-la de todo erro. Jesus prometeu permanecer com ela até o fim dos tempos, e não pode permitir que o conjunto dos fieis se engane sobre um ponto de fé. Assim sendo, aquilo que é convicção comum é ensinamento certo;  e o maior filósofo, mesmo sendo considerado santo, incorrerá necessariamente em erro se admitir uma opinião contrária ao sentimento universal.

Sempre se considerou como característica mais evidente de ortodoxia o sentimento universal da Igreja. Para se pronunciarem nos concílios, os bispos não invocam suas razões teológicas pessoais, mas a convicção dos fieis das suas respectivas dioceses. E o próprio Papa, antes de definir uma proposição como dogma de fé, consulta os pastores do mundo inteiro a fim de conhecer por intermédio deles o sentimento das diversas igrejas sob sua jurisdição.

O que aqui não se afirma é que algum fiel só tenha o direito de sustentar as verdades explicitamente admitidas pelo conjunto dos cristãos. Por uma intuição genial, ou pelo instinto do amor, alguém pode adivinhar aquilo que ainda não está claro para o resto dos fieis. Este pode discernir com mais rapidez e mais claramente que os outros, mas não pode, sem incidir em erro, entender de modo que diverge dos outros. Só pode estar certo de suas conclusões quando os outros afirmam: Nosso pensamento é o mesmo que o seu.

Este critério do sentimento universal dos fieis é extremamente precioso em mariologia. Um teólogo que estudou longamente a evolução do dogma reconheceu que "é como se todos os dogmas relativos a Maria tenham sido confiados à guarda e à explicação do coração amoroso do bom e leal povo cristão, mais que aos argumentos da teologia especulativa. Acontece que todos esses dogmas têm sua origem na digna maternidade divina, e os postulados dessa digna maternidade são discernidos com mais segurança pelo coração afetuoso e sensível do filho do que pela lógica fria e seca do sábio.

Antes de Nestório, outros teólogos e bispos como ele tinham difundido opiniões não menos errôneas que as dele sobre a união das duas naturezas em Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas os simples fiéis não tinham compreendido grande coisa das suas subtis elucubrações. Quando ele tirou delas uma consequência que atingia a Santíssima Virgem, no entanto, choveram imediatamente protestos veementes de todos os lados. O povo não era capaz de refutar os argumentos do bispo heresiarca, mas sentiu logo como falsa essa conclusão contrária às suas convicções sobre a Mãe de Deus. Esse sentimento do povo é o que foi reconhecido, pelo Concílio de Éfeso, como conforme à fé ortodoxa. Sabe-se também que o mesmo aconteceu mais tarde a respeito da Imaculada Conceição. A atitude do povo cristão contou com a objeção de uma longa lista de adversários, tanto mais temíveis porque não se tratava de hereges, e sim de teólogos extremamente sábios, muitos deles santos de altar.

Sem dúvida, Jesus deve ter dirigido ao Pai, mais de uma vez, este brado de reconhecimento: "Eu vos louvo, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, por terdes escondido estas coisas aos grandes e aos capazes, e de as ter revelado aos pequenos. Sim, ó Pai, pois este foi o vosso agrado".

Concluindo


Para estabelecer a respeito de uma grandeza marial o caráter de verdade revelada, procuraremos o que a Sagrada Escritura nos apresenta de afirmações, ou ao menos de indicações convergentes. Em seguida veremos como, no curso dos séculos, os fieis tomaram dela consciência cada vez mais nitidamente, mencionando as hesitações e, quando necessário, as discussões que ela originou. Por fim examinaremos até que ponto se pode afirmar sobre ela a certeza, com base nos três critérios que expusemos acima.

PARTE, 1º. AS FUNÇÕES DE MARIA SANTÍSSIMA


As grandezas de Maria podem ser divididas em dois grupos. O primeiro é constituído pelas que representam sobretudo funções: maternidade divina, maternidade espiritual, mediação universal, papel de Maria no apostolado católico, realeza universal. O segundo grupo engloba as grandezas que representam privilégios concedidos a Maria em razão de suas funções, ou como consequências delas: Imaculada Conceição, virgindade, plenitude de graça, etc. Esta divisão didática que fazemos não tem nada de absoluto, pois as funções de Maria são também privilégios, e os seus privilégios são também funções. Porém algumas dessas grandezas são sobretudo funções, e outras se afiguram principalmente como privilégios. Estes dois grupos de grandezas de Maria Santíssima são abordados respectivamente na primeira e segunda partes deste livro.

Capítulo, 1º. A MATERNIDADE DIVINA, GRANDEZA FUNDAMENTAL DE MARIA


A grandeza fundamental de Maria, razão de ser de todas as outras, é a maternidade divina. De acordo com uma percepção comum, a maternidade divina não é somente a razão de ser das outras grandezas, mas também da própria existência de Maria, pois Ela foi criada especificamente para tornar-se a Mãe de Deus. Na bula Ineffabilis, o Papa Pio IX ensina, ao definir a Imaculada Conceição de Maria, que "a origem de Maria e a Encarnação da Sabedoria divina foram decididas por um único e mesmo decreto". Assim, a maternidade divina explica tudo em Maria, e sem essa maternidade nada nela pode ser explicado.

1º. Significado da maternidade divina


A importância excepcional da maternidade divina torna evidente a necessidade de se entender bem o que ela significa, e deixar isso mal explicado equivale a deixar incompreendidos todos os privilégios da Virgem. Além disso, neste caso nosso espírito se encontra diante do mistério da Encarnação em toda a sua profundidade, mais do que ocorre em relação a outras grandezas de Maria. O assunto ultrapassa também a doutrina marial propriamente dita e se estende ao domínio da cristologia.

O Cardeal Newman, ao mencionar em apoio de sua tese a história antiga e moderna do cristianismo, afirmou: "A Virgem Maria é a guardiã da Encarnação". A maternidade divina de Maria é a pedra de toque da ortodoxia cristológica, e todos os ensinamentos relativos à Encarnação repousam nela como no seu próprio núcleo. Em certa medida a ortodoxia nesse assunto garante a própria ortodoxia das nossas afirmações relacionadas à Santíssima Trindade e a muitas outras verdades reveladas. Portanto é nosso dever estudar com rigor o que significa esse título de Mãe de Deus, que a Igreja reconhece na Virgem.

O título de Mãe de Deus não significa, nem jamais significou entre os fieis, aquilo de que Nestório nos acusava no século 5 e certos protestantes e racionalistas nos acusam ainda hoje, isto é, que consideramos Maria como mãe da divindade, ou como uma espécie de deusa como as da mitologia. Afirmamos sim que Maria é Mãe de Deus, mas não que Ela é mãe da divindade;  Mãe de uma Pessoa que é Deus, e não mãe dessa Pessoa enquanto Deus.

Para entender o que significa a maternidade divina, é necessário compreender a união das naturezas divina e humana na pessoa de Jesus, tanto quanto isso seja possível no que se refere a um mistério. Antes de examinarmos o que a Igreja ensina, exporemos dois conceitos inexatos que encontramos na história deste dogma.

O primeiro desses conceitos, que existiu entre hereges dos primeiros séculos, é o de uma união inteiramente superficial, limitada a uma habitação temporária da divindade na humanidade de Cristo. Jesus seria apenas um homem sobre o qual o espírito de Deus desceu no momento do batismo no Jordão, e do qual esse espírito se desprendeu pouco antes da Paixão, deixando o homem Jesus sofrer e morrer. Como daí se depreende, Maria seria a mãe de um homem destinado a ser transitoriamente a morada de Deus, e não de fato a Mãe de Deus.

O segundo conceito é o de uma união moral muito íntima, consistindo não somente em habitação perpétua da divindade na humanidade de Cristo, mas também na fiel cooperação desta com aquela. Parece ter sido este o conceito de Nestório. De acordo com essa interpretação, a humanidade de Cristo teria sido o templo da divindade desde o primeiro momento de sua exis-tência. As duas naturezas teriam sempre agido em perfeita harmonia, o que confere honra especial à natureza humana. Entretanto, a união assim entendida não passava de união moral, pelo que Maria poderia ser chamada Mãe de Cristo, e não Mãe de Deus.

Pode-se ver facilmente que esses dois conceitos são tentativas de explicação racional do mistério da Encarnação, e devem portanto ser a priori considerados falsos, pois qualquer explicação que prescinda do mistério é necessariamente errônea neste caso.

Existe outro tipo de união possível entre a humanidade e a divindade, denominada hipostática, ou seja, substancial ou pessoal. A ideia mais exata dessa união corresponde à da alma com o corpo. A alma e o corpo são dois princípios diferentes. Um é espiritual, o outro é material;  um não ocupa espaço, é imortal e independente das leis físicas e químicas, o outro ocupa espaço, é regido pelas leis do mundo visível e é destinado a se decompor. Esses dois princípios que constituem a pessoa humana são unidos de modo a formar um todo único, a tal ponto que as qualidades e ações das duas partes componentes podem ser atribuídas ao conjunto, à pessoa. Um homem pode dizer eu me alimento, eu caminho, embora pareça que apenas o seu corpo se alimenta ou caminha. Mas pode também dizer eu penso, eu me sinto livre, embora quem pensa ou se sente livre seja a alma, e não o corpo. E falamos assim não apenas para simplificar nossa linguagem.

De tal modo estamos convencidos de que corpo e alma formam um todo único, que nos consideramos responsáveis pelas ações de nossos corpos tanto quando pelos pensamentos, sentimentos e resoluções de nossa alma. Permanece um mistério para os maiores filósofos essa capacidade de dois elementos tão heterogêneos estarem unidos a esse ponto, porém nossa consciência íntima não nos deixa a menor dúvida quanto à realidade dessa união.

Entre a humanidade e a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo existe uma união muito semelhante à do corpo com a alma, porém não idêntica. A natureza divina e a humana formam um único todo, uma única pessoa, de tal modo que as ações de uma e outra podem ser atribuídas a essa pessoa, e Ele pôde dizer: "Antes que Abraão existisse, Eu sou";  e também: "Minha alma está numa tristeza mortal". A pessoa a que pertencem todas as ações de Cristo é divina, pelo que todas as suas ações, mesmo aquelas praticadas pela natureza humana, tinham mérito infinito, pois eram ações de Deus. Pode-se portanto afirmar com toda realidade que Deus pregou, que Deus sofreu, que Deus morreu. Consequentemente pode-se também dizer que Deus nasceu. Acontece que a mulher da qual um ser nasce é sua mãe. Como Deus nasceu de Maria, Maria é Mãe de Deus.

A alma humana só constitui normalmente uma pessoa quando em união com o seu corpo, ao passo que o Filho de Deus era uma Pessoa antes da sua união com a natureza humana.


Poder-se-ia argumentar que Jesus recebeu de Maria apenas seu corpo, e não sua divindade. Esta objeção teria valor no caso de uma união moral, como aquela que Nestório elucubrou, não porém no caso de uma união substancial. O corpo que Maria gerou era, desde o primeiro instante, o de um Deus, portanto é de um Deus que Maria se tornou Mãe. Da mesma forma nós recebemos de nossas mães apenas o corpo, mas somos plenamente seus filhos.

É verdade que a concepção de um corpo humano exige naturalmente a criação e a infusão da alma, ao passo que a concepção operada em Maria não exigia naturalmente a união do Filho de Deus com a humanidade que a Virgem concebia. Não havia tal exigência do ponto de vista natural, porém existia do ponto de vista sobrenatural, de modo mais sublime e mais digno de Deus e de Maria do que tudo o que se passa na ordem natural. Tal concepção foi preparada por meio de virtudes e privilégios únicos: concepção virginal, só adequada a um Deus;  concepção operada pelo Espírito Santo, a qual, de acordo com a explicação do anjo, faria do filho de Maria o próprio Filho de Deus;  concepção consentida pela Virgem, somente após ter Ela recebido a promessa de que culminaria com a geração de um Deus

Maria é realmente Mãe de Deus, da mesma forma que qualquer mulher é mãe de seu filho. De certa forma pode-se afirmar que Ela merece mais este qualificativo do que as outras mães. Em primeiro lugar porque ela sozinha, sem a contribuição de um pai, formou aquele corpo que, desde o primeiro momento de sua existência, era o corpo de um Deus. Além disso, porque foi chamada a cooperar para essa função em condições únicas. Houve jamais uma mãe que, como Maria, foi escolhida por seu futuro filho e preparada por Ele para essa função? Uma mãe que, como Maria, recebeu do Céu o aviso da missão reservada ao seu filho e o convite para consentir em tal missão? Uma mãe que, como Maria, cooperou com as intenções de Deus sobre seu filho e sobre Ela mesma, e se submeteu plenamente às consequências dolorosas dessa cooperação?

Num exame superficial, podemos ser tentados a acreditar que se joga com as palavras quando se dá a Maria o qualificativo de Mãe de Deus. Porém um exame atento nos leva a indagar se é possível imaginar uma maternidade de tal modo verdadeira e de tal modo plena como a de Maria em relação ao Filho de Deus.

Podem essas explicações e comparações que apresentamos ser plenamente satisfatórias ao nosso espírito? Respondemos que, se elas o pudessem, seriam certamente falsas, pois fariam desaparecer o fator mistério. Admitir que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus não representa dificuldade maior do que acreditar que Jesus nos resgatou verdadeiramente, sacrificando-se por nós na cruz;  ou em professar que Ele nos une realmente à sua divindade quando nos dá o seu Corpo em alimento. Nos três casos o mistério é o mesmo -- a união hipostática. A razão pode explicá-lo até certo ponto, mas só a fé pode obter de nós o assentimento.

2º. A maternidade divina, verdade revelada


A ideia da maternidade, embora sem usar a expressão, já estava contida muito claramente no conhecimento dos primeiros cristãos, e resultava naturalmente de duas verdades que lhes eram familiares: Maria é verdadeiramente Mãe de Deus;  Jesus é ao mesmo tempo Deus e homem.

Não resta nenhuma dúvida de que Maria era reconhecida como Mãe de Jesus pelos judeus. Que Ele é homem, também o admitiam todos. E também era evidente aos olhos dos cristãos primitivos que Ele é Deus, pois havia falado e agido como só um Deus poderia fazer: atribuía-se direitos que nenhuma criatura ousaria arrogar-se;  pregava e mandava em nome próprio;  perdoava os pecados por sua própria autoridade;  fazia milagres por seu próprio poder;  exprimia se sobre suas relações com Deus como fazendo com Ele um ser único. É possível que inicialmente os discípulos o tenham visto como sendo apenas o Messias, e que no fim de sua vida mortal alguns dentre eles tenham começado a reconhecer sua divindade, mas após a Ressurreição puseram-se todos a pregá-la abertamente.

Desde antes de serem escritos os evangelhos, pelo menos os três últimos, São Paulo havia proclamado Jesus "Aquele que está acima de todas as coisas, o Deus eternamente bendito".

Essa humanidade e essa divindade que os primeiros cristãos reconheciam no Filho de Maria apresentavam-se a eles como unidas, numa união a mais íntima que se possa imaginar, a qual será mais tarde denominada hipostática. Daquele que acabava de ser batizado no Jordão, o Pai tinha dito: "Eis meu filho bem amado, no qual ponho minha complacência".

Após atravessar o lago numa barca, Ele disse ao paralítico: "Homem, os teus pecados te são perdoados";  e como os fariseus se escandalizavam sobre esse poder de perdoar os pecados -- pois só o reconheciam como pertencendo a Deus, mas Ele o atribuía a si mesmo -- não argumentou que estariam sendo perdoados por Deus habitando em mim, ou por Deus ao qual estou unido, mas proclamou em alto e bom som que esse poder residia nele mesmo: "A fim de que saibais que o Filho do Homem tem na terra autoridade para perdoar os pecados, [disse ao paralítico]: Levanta-te, toma o teu leito e retorna à tua casa".

São Paulo registrou num texto bem conhecido essa convicção dos primeiros cristãos sobre a união substancial da divindade e humanidade em Jesus: "Tende os sentimentos de Cristo Jesus, que subsistindo na natureza de Deus, não considerava uma usurpação a igualdade com Deus. Porém Ele se aniquilou, tomando a forma de servo e tornando-se semelhante aos homens, reconhecido como homem pela sua aparência".

Portanto o Apóstolo afirmava que a natureza divina e a humana estavam reunidas em Jesus Cristo, e consequentemente Ele era reconhecido pelos primeiros cristãos como sendo ao mesmo tempo Deus e homem. Tendo Ele nascido de Maria, conferiam a Ela o título de Mãe de Deus.

A dedução acima é de todo rigor, mesmo supondo-se que a Sagrada Escritura não aludisse também à divindade do seu Filho, nas partes em que menciona a Mãe de Jesus. Porém, de fato a divindade de Jesus está afirmada, ou pelo menos subentendida, em várias ocasiões em que se menciona sua Mãe. O anjo Gabriel afirmou a Maria que Ela se tornaria mãe sem perder a virgindade, porque "aquele que nascerá de ti será chamado Filho de Deus". Qualquer que possa ter sido para os judeus de então o sentido da expressão Filho de Deus, é fora de dúvida que a Virgem entendeu tal expressão como significando algo diferente do que eles entendiam por Messias. Com efeito, o anjo lhe explicou que o Messias que nasceria dela respeitaria sua virgindade, precisamente porque tratava-se do próprio Filho de Deus.

É fora de dúvida também que os primeiros cristãos, que ouviam contar ou liam a narração da Anunciação, atribuíam à expressão Filho de Deus o sentido literal, o sentido pleno de segunda Pessoa da Santíssima Trindade, e que portanto Maria era para eles Mãe de Deus, de acordo com a declaração do enviado divino.

No episódio da Visitação, entendiam que Izabel disse à sua jovem prima: "De onde me vem a graça de que a Mãe do meu Senhor venha visitar-me?". Evidentemente Izabel dava à palavra Senhor o sentido que encontrara ou ouvira nos textos sagrados, isto é, que significava Deus. No próprio capítulo em que encontramos a pergunta feita por Izabel, a palavra Senhor é mencionada outras quinze vezes, todas elas com o significado de Deus. Por exemplo, logo após a saudação inicial, Izabel prossegue: "Ditosa aquela que acreditou no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor". Seguramente os primeiros cristãos entendiam igualmente neste relato a palavra Senhor no sentido de Deus, e aí viam Maria honrada como Mãe de Deus.

Do mesmo modo eles se lembravam de que Isaías, o maior entre os profetas messiânicos, havia predito que "uma virgem conceberá e dará à luz Emanuel, que significa Deus conosco". Pouco importa o modo como os contemporâneos de Isaías ou o próprio profeta entendiam que o Filho da Virgem seria Deus conosco. Para os primeiros cristãos, a palavra designava Deus feito homem, entendendo portanto que Ela havia concebido Deus e o dera à luz, sendo portanto Mãe de Deus.

Antes mesmo da publicação dos evangelhos, os cristãos ouviram de S. Paulo: "Quando se chegou à plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, concebido da mulher". Daí se conclui que essa mulher era Mãe do Filho de Deus.

A expressão Mãe de Deus era sem dúvida desconhecida dos primeiros cristãos. Não se pensou inicialmente em criar um termo especial para designar o papel da Virgem, tanto mais que as atenções nessa época eram quase sempre voltadas para Jesus, e não para Maria. Mas a ideia contida nessa expressão, como acabamos de ver, já aparece então com nitidez.

A tradição não teve propriamente que explicitar esse conceito, porém colocou-o pouco a pouco em relevo mais dominante, graças às querelas cristológicas dos primeiros séculos. Ele era exposto mediante novas formulações, e assim ostentado com luz sempre viva diante dos fieis. No início do século 2, Santo Inácio de Antioquia afirmou: "Só existe um médico, [composto] ao mesmo tempo de carne e espírito gerado, mas não criado. Nosso Senhor Jesus Cristo, nascido de Deus e de Maria". Quando fala do nascimento de Jesus, substitui a expressão Filho de Deus pela própria palavra Deus, o que sem dúvida deve ter facilitado a criação da palavra Teotocos -- Mãe de Deus: "Nosso Deus, Jesus Cristo, foi transportado ao seio de Maria".

Um século mais tarde, Tertuliano afirma: "Deus nasceu no seio de uma mãe". Ele insiste sobre a unidade de Jesus na sua dupla natureza divina e humana;  e devido a isso, sobre a verdade de que Maria deu à luz não um simples homem, pois "quem nasceu nela é Deus".

A tradição passou a dedicar atenção mais frequentemente a Maria, ao seu papel nos mistérios da Encarnação e Redenção, e em seguida a exprimir os conceitos primitivos não somente em função de Cristo, mas relacionando-os mais diretamente com a Virgem. Assim procederam São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, etc. Quando e onde apareceu finalmente a palavra grega Teotocos? Não se sabe. Mas ela correspondia tão claramente ao que sempre se aceitou, que foi recebida desde o início sem a menor objeção.

Embora conhecido até pelos pagãos, este título adquiriu validade indiscutível após mais de um século, quando Nestório se mostrou chocado com ele, como se fosse uma novidade. Os cristãos se escandalizaram com suas blasfêmias, os pastores protestaram e o refutaram, mas depois, como todos os esforços se revelaram inúteis, reuniram-se em concílio ecumênico. Em Éfeso, no ano 431, foi proclamado ante as aclamações entusiásticas da multidão, em nome da Igreja universal: "Se alguém não aceitar que Emanuel é verdadeiramente Deus, e que por este motivo a Santa Virgem é Mãe de Deus -- pois Ela deu à luz segundo a carne o Verbo de Deus feito carne, conforme está escrito que o Verbo se fez carne -- seja ele anátema!".

O trabalho de definição estava concluído, mas o de piedade prosseguiria com novo impulso. O título Teotocos de Maria -- primeiro atribuído, depois discutido, e finalmente reconhecido solenemente -- exprimindo em sua enérgica concisão a união das duas naturezas na Pessoa de Jesus Cristo, e o papel de Maria em relação a esse Deus-homem, punha em relevo abarcativo a inconcebível dignidade da Virgem, e atraía os olhares de todos os fieis sobre essa criatura única, santíssima, nova Eva, Mãe de Deus. Um período novo, de crescente devoção, se abria na história da Mariologia.

3º. Grandeza inefável da maternidade divina


O título de Mãe de Deus soa tão familiarmente aos nossos ouvidos, que nem sequer conseguimos imaginar sua espantosa grandeza. Por pouco que nos ponhamos a refletir sobre seu significado, a avaliar o que representa o fato de uma criatura humana ter sido escolhida para tornar-se realmente a Mãe do Criador, invade-nos uma sensação como de vertigem. Percorrendo a escala de todos os seres em estado de graça -- desde a criança recentemente batizada, passando pelos inúmeros graus de almas medíocres, almas fervorosas, almas santas, e pelas hierarquias celestes até chegarmos àquele anjo ou homem que ocupa a primeira posição entre os servos de Deus -- diante de nossos olhos se abre um novo espaço, incomensuravelmente mais amplo, que se estende entre o maior dos servos de Deus e a Mãe de Deus. Segundo Caietano, "a maternidade divina toca nos limites da divindade".

Assim o explica Santo Tomás: "A Santíssima Virgem possui certa dignidade infinita, devido à sua maternidade divina, resultante do bem infinito que é Deus.

Nada de superior a Ela pode ser feito por tal Criador, da mesma forma que nada pode existir superior a Deus".

Ao contemplar essa grandeza, e após ter acumulado títulos, qualificativos e comparações, os santos concluíram sempre por confessar que nenhuma palavra humana poderia exprimi-la, nenhuma inteligência humana poderia compreendê-la. Na verdade, nem a própria Virgem Maria, nem a inteligência criada do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, pode compreendê-la inteiramente, pois para compreender em toda sua plenitude a dignidade da Mãe de Deus seria necessário compreender plenamente a dignidade de Deus, seu Filho.

Os próprios inimigos do culto de Maria, pelo menos os que mantiveram a fé na sua maternidade divina, por vezes têm manifestado seu espanto ante tal elevação. Lutero escreveu sobre Ela palavras que um Padre da Igreja teria podido subscrever: "Essa maternidade divina lhe valeu bens tão altos, tão imensos, que ultrapassam todo entendimento. Daí lhe vem toda honra, toda santidade, a ponto de ser a única pessoa superior a todas, em todo o gênero humano, e à qual nenhuma se iguala, pelo fato de possuir tal Filho em comum com o Pai celeste. O simples título de Mãe de Deus contém toda honra, pois nenhum outro a pode exprimir, ainda que houvesse na terra tantas línguas quantas são as flores e ramos de ervas, quantas são no céu as estrelas, e no mar os grãos de areia".

No século 19, o anglicano Pusey, depois de ter chocado todos os católicos de seu país com seus ataques contra a devoção da Igreja a Maria, confessou que, por assim dizer, tinha sido "tomado de assombro quando pela primeira vez, como num relâmpago, brilhou diante do seu espírito a verdade de que uma criatura humana havia sido colocada tão perto de Deus, acima dos coros de Anjos e Arcanjos, Dominações e Potestades, acima dos Querubins que comparecem diante de Deus, dos Serafins com seu amor ardente, acima de todos os seres criados, a única em toda a criação e em todas as criações possíveis, pelo fato de que, no seu seio, se dignou tornar-se consubstancial com Ela aquele que é consubstancial com o Pai".

Diante de tal elevação, pode-se contemplar e admirar:

Contemplare et mirare  Ejus celsitudinem;  Dic felicem  Genitricem,  Dic beatam Virginem.

4º. A Mãe de Deus e a Santíssima Trindade


É possível considerar alguns aspectos especiais dessa dignidade, não tanto a fim de a compreender, mas de melhor conjeturar sobre tal sublimidade. Veremos esses aspectos nas relações da Mãe de Deus com a Santíssima Trindade, nas que existem entre a maternidade divina e os outros privilégios de Maria, e ainda nos que a Virgem compartilha com o resto da Criação.

Tornando-se Mãe de Deus, Maria associou-se ao Pai na criação de Jesus, no sentido de que a mesma Pessoa que é Filho de Deus é também Filho dela. O Pai gera eternamente o Filho, como Deus;  Maria o gera no tempo, como homem. Porém não há dois filhos, dois seres gerados, pois o mesmo filho é Deus e homem. Como o Pai não cessa de gerar seu Filho, gera-o como Deus ao mesmo tempo que Maria o concebia como homem. Da mesma forma que o Pai, Maria pode dizer de Jesus: "Eis meu Filho bem amado, no qual pus minha complacência".

Maria pode ainda ser denominada Filha privilegiada do Pai. Todas as almas em estado de graça são filhas de Deus. Maria, por causa de sua maternidade divina, é filha de Deus por muitos motivos especiais:

1º. Porque Deus a tomou como sua Filha, antes de todas as outras criaturas. Por uma anterioridade de importância, e não de tempo, pois Deus não está restrito ao tempo, para Ele tudo está no presente. Nosso Senhor Jesus Cristo é "o primogênito entre todos os filhos", e como a noção de Filho de Deus feito homem lembra imediatamente a de sua Mãe, Maria é a primeira em importância entre todas as puras criaturas, a primogênita de todos os filhos de Deus, "que a escolheu, e a escolheu antes -- elegit eam et prælegit eam".

2º. Porque, sendo concebida em graça devido à sua vocação para a maternidade divina, dentre todos os filhos de Adão Ela era Filha de Deus desde o primeiro momento de sua existência.

3º. Porque Ela foi amada por Deus e enriquecida de prerrogativas em medida absolutamente excepcional. Neste sentido, pode-se dizer que Ela é Filha única de Deus.

Maria é filha não somente do Pai, mas de toda a Trindade Santíssima. No entanto, como a paternidade é atribuída à primeira Pessoa -- por apropriação, de acordo com a terminologia dos teólogos -- pode-se também dizer, por apropriação, que Maria é a Filha privilegiada de Deus Pai.

Com relação ao Filho de Deus, Maria preenche as funções e usufrui os direitos de uma mãe em relação ao seu filho. Como toda mãe -- melhor que todas elas, pois Jesus era somente dela -- Maria formou com sua própria substância a substância de seu Filho, e se prolongava nele. Depois de dar a existência humana àquele que criou o mundo, nutriu com seu leite quem alimenta todas as criaturas, vestiu quem reveste de luz os seus anjos e adorna os lírios dos campos, carregou em seus braços quem sustenta o universo. Bem mais do que isso, Ela dava ordens ao Senhor soberano do céu e da terra, pois exercia sobre Ele autoridade de verdadeira mãe. Como mãe, pouco a pouco Ela conduzia sua educação humana, fazendo o Filho de Deus atingir o pleno desenvolvimento de todas as suas faculdades. Quando amava seu Filho com amor materno, sobretudo Ela amava a Deus.

Sendo Maria verdadeira Mãe de Deus, seu Filho que é Deus cumpria diante dela todos os deveres da piedade filial: obedecia, venerava, assistia, amava com um amor único, amor filial.

Atualmente, como se confere a Maria o título de Esposa do Espírito Santo, parece contraditório denominá-la ao mesmo tempo Mãe e Esposa de Jesus, por isso se dá preferência àquele título. Mas os autores antigos atribuíram por vezes a Maria o título de Esposa do Verbo, tendo em vista que:

1º. Todas as almas fieis, sobretudo as almas virgens, apreciam seu qualificativo de esposas de Jesus, porque se dão inteiramente a Ele. A Virgem das virgens é a este título sua Esposa por excelência.

2º. Graças a Maria, de algum modo o Verbo desposou a natureza humana desde a Encarnação.

3º. Maria é a nova Eva, ao lado do novo Adão que é Jesus Cristo.

4º. Como a Igreja, Ela é a esposa imaculada de Cristo.

Graças à maternidade divina, Maria tornou-se Esposa do Espírito Santo, pois foi mediante a ação do Espírito Santo que Ela concebeu Jesus. De fato toda a Santíssima Trindade cooperou para o milagre que a tornou fecunda, no entanto essa obra é atribuída por apropriação ao Espírito Santo, porque se trata antes de tudo de uma obra de amor, e o Espírito Santo é o amor do Pai e do Filho. Consequentemente, o fato de o Pai e o Filho terem cooperado para produzir a humanidade de Jesus não subtrai nada à ação do Espírito, e é plenamente verdadeiro o que professamos diariamente no Credo:"foi concebido do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem";  e verdadeira também a saudação que fazemos a Maria como Esposa do Espírito Santo. O Papa Leão XIII, na encíclica Divinum Illud, (9/5/1897) refere-se a Maria como "Esposa imaculada do Espírito Santo".

Elevando Maria à dignidade de Mãe de Deus, as três Pessoas divinas estabeleceram com Ela relações de uma sublimidade incompreensível;  mas além disso, por essa mesma maternidade, Maria confere às Pessoas divinas uma glória nova e única, motivo pelo qual Ela tem sido por vezes chamada Complemento da Santíssima Trindade. Intrinsecamente -- ou seja, dentro de si mesma -- nada falta à adorável Trindade, pois Deus é infinitamente completo, infinitamente perfeito e infinitamente feliz. Mas extrinsecamente -- na glória e no amor que alcançam a Trindade a partir do exterior e da sua relação sobre o exterior -- Maria contribui de modo muito especial como instrumento, e não como causa principal. (A expressão Complemento da Santíssima Trindade pode gerar certa ambiguidade, implicando que a Trindade precisou ser completada, e que a Santíssima Virgem é como uma quarta pessoa da divindade.

Por isso se deve dizer Complemento extrínseco da Santíssima Trindade, o que descarta toda suposição nesse sentido.)

Graças à maternidade divina de Maria, o Pai adquire sobre o Filho -- que é igual a Ele na sua natureza e nas suas perfeições -- uma autoridade real. Recebe desse Filho encarnado manifestações de respeito, submissão e abandono, homenagens de adoração e amor superiores às que lhe são rendidas por todo o conjunto das criaturas. O Pai ouve o Filho proclamar: "Meu Pai é maior que eu";  contempla-o oferecendo um sacrifício digno dele: "Não quisestes nem sacrifícios nem oblações, porém preparastes para mim um corpo;  os holocaustos e vítimas expiatórias pelo pecado não vos foram agradáveis, portanto eu vos disse: Eis-me aqui, ó Deus, eu venho para fazer a vossa vontade". Ele sabe que ininterruptamente o Filho se dedica a revelar seu Pai aos homens, convidando-os a abandonar-se a Ele com toda confiança, a orar todos os dias: "Pai nosso que estais nos céus".

Os homens, por seu lado, compreendem melhor esse Pai depois que conheceram seu Filho nascido de Maria, e instintivamente reconhecem que esse Pai celeste é verdadeiramente seu pai ao constatarem ao seu lado a presença da Mãe celeste.

A maternidade divina de Maria confere ao Filho uma existência nova, uma existência temporal. Graças a essa maternidade, o Filho pode render ao Pai homenagens de submissão e adoração, reconhecimento e reparação, que sua natureza divina não lhe permitiria oferecer. Trata-se de homenagens reais, pois vêm de uma natureza inferior, no entanto são infinitamente agradáveis, posto que oferecidas por uma Pessoa divina.

No que se refere aos homens, a maternidade divina tornou o filho o Bem Amado da humanidade. Para o Filho dirigem-se nossos pensamentos, nossos afetos e nossas vontades, antes que ao Pai ou ao Espírito. É pelo Filho que se vive, se trabalha, se imola e se morre. Foi pelo pensamento nesse Filho crucificado que os mártires alegremente deram sua vida. É ao Filho, esposo das almas, que as virgens se sentem estimuladas a consagrar sua pureza. É ao Filho na Eucaristia que se voltam os desejos ardentes de milhares de crianças inocentes e de almas amorosas de todas as idades e condições. É aos pés do Filho consolador, força e vida, que comparecem todos os que sofrem, sentem-se fatigados ou desalentados. Ele é assim o centro de nossas almas, o centro da religião e da humanidade, e isto se deve à maternidade divina.

Sendo o Espírito Santo infecundo no que se refere à processão divina, graças à maternidade divina de Maria Ele recebeu fecundidade para gerar o Filho, contribuindo para dar-lhe um corpo. Ao mesmo tempo que torna esse Filho o grande adorador do Pai e o Bem Amado da humanidade, adquire sobre Ele uma autoridade, à qual o Filho se submete durante toda sua vida, como indica o Evangelho: "Jesus foi então conduzido pelo Espírito ao deserto";  "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção". Em relação aos homens, o Espírito Santo exerce por meio de Maria uma fecundidade análoga, gerando nas almas a vida de Jesus, fortificando-a e conduzindo-a com Ela à perfeição.

Por sua natureza, Maria é infinitamente inferior à divindade. Sem esquecer que entre Deus e Maria existe toda a distância que separa o agente principal do instrumento, devido às suas funções Maria foi introduzida, em certo sentido, na própria família de Deus, tão próximo da adorável Trindade como o canta um hino antigo:

Gaude Virgo, Mater Christi,  Quia sola meruisti,  O Virgo piissima,  Esse tantæ dignitatis  Quod sis sanctæ Trinitatis  Sessionne próxima.

O que a grandeza da maternidade divina mostra, em segundo lugar, são as relações entre esse privilégio e os outros privilégios da Mãe de Deus. Cada um deles situa Maria numa categoria à parte. Dentre todas as criaturas humanas, somente Ela foi concebida sem pecado. Só Ela foi preservada de toda concupiscência. Foi a única que sempre correspondeu plenamente aos menores desejos de Deus. A única plena de graça. A única que é virgem e mãe. Só Ela foi solicitada por Deus a dar seu consentimento para o resgate do mundo. É a única distribuidora de todas as graças.

Todos esses privilégios da Virgem decorrem estritamente da sua maternidade divina, em relação à qual eles são a preparação ou a consequência, e nenhum deles lhe teria sido concedido sem essa maternidade. Para avaliarmos quão grande é o significado dessa maternidade, basta ter em vista que cada um dos seus requisitos ou consequências constitui prerrogativa tão gloriosa e tão excepcional que torna a Virgem uma criatura absolutamente única.

5º. A Mãe de Deus e o restante da criação


A grandeza da maternidade divina se deduz, em terceiro lugar, da categoria à qual essa dignidade eleva Maria em relação ao restante das criaturas. As características singulares dessa categoria não podem deixar a menor dúvida: todas as outras criaturas, mesmo os mais sublimes serafins, são apenas servos de Deus, porém Maria é Mãe de Deus. Quantos desses servos valem uma mãe?

Quis o Criador elevar seus servos à dignidade de filhos. Por filiação adotiva, sem dúvida, mas não como as adoções humanas, que constituem uma ficção legal. Trata-se de uma realidade íntima, que atinge a profundidade do ser e nos comunica a vida de nosso Pai celeste, nos torna "participantes da natureza divina". Sem dúvida, dignidade incomparável.

Não obstante, a dignidade da maternidade divina a eleva incomensuravelmente acima da que tem um filho de Deus. Não só porque em qualquer família a dignidade da mãe é superior à dos filhos, mas sobretudo porque a elevação da maternidade divina ultrapassa de modo inconcebível a da nossa filiação. Por sua realidade, tanto quanto por sua dignidade, nossa filiação é superior a qualquer outra adoção, porém permanece uma filiação adotiva, pois só Jesus é Filho de Deus por sua própria natureza. Porém Maria não é mãe adotiva do Filho de Deus, e sim sua Mãe verdadeira.

Por sua maternidade divina, Maria pertence à ordem hipostática. Não pertence à união hipostática, e sim à ordem hipostática, ou seja, ao conjunto das realidades que se orientam diretamente para essa união, da mesma forma que a ordem da graça compreende o conjunto das realidades que se orientam diretamente para a união com Deus por meio da graça habitual. Como Mãe de Jesus, Maria contribuiu com a natureza humana de Cristo, que é um dos dois elementos da união hipostática, e desde o primeiro instante a natureza humana de Cristo esteve unida hipostaticamente à divindade do Verbo. Da mesma forma que a ordem da graça ultrapassa de modo incomensurável a ordem da vida natural, também a união hipostática ultrapassa de modo incomensurável a ordem da graça, e ainda a ordem da glória. Maria ocupa portanto um lugar destacado na criação, infinitamente abaixo de Deus, mas incomparavelmente acima de todas as outras criaturas.

Quando pela primeira vez se leem algumas expressões dos santos, onde afirmam que Deus preferiria a Santíssima Virgem ao conjunto de todas as outras criaturas, e que lhe concedeu uma graça superior à de todos os anjos e santos reunidos, pode-se ser tentado a qualificar tais expressões de exageradas. No entanto, o fato espantoso não é que a Mãe de Deus seja superior ao conjunto de todas as outras criaturas, e sim que uma criatura tenha sido elevada à dignidade de Mãe de Deus.

6º. A maternidade divina, função de amor


A maternidade divina é uma grandeza tão sublime, que nos arriscamos a ver nela somente sua sublimidade, esquecendo que ela é uma função de amor, mais ainda do que qualquer outra maternidade. Certos autores afirmam que a humilde Virgem teria preferido a este seu maior privilégio algum outro, como sua Imaculada Conceição, sua virgindade, sua participação nos sofrimentos de Cristo. O que parece justificar essa maneira de ver são algumas palavras de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem. Quando uma mulher do povo, enlevada de entusiasmo diante do poder e da sabedoria de Jesus, bradou "bem-aventurados o ventre que vos gerou e os seios que vos amamentaram", o Mestre respondeu: "Antes bem-aventurado quem ouve a palavra de Deus e a põe em prática".

Com esta retificação, não teria Ele declarado que acima da felicidade de ser Mãe de Deus está a felicidade de ser fiel à palavra de Deus? A própria Virgem, quando o anjo Gabriel anunciou que Ela seria Mãe de Deus, replicou: "Como se fará isso, se não conheço varão?".

Não terá Ela mostrado então que preferia sua virgindade à maternidade divina?

Tais interpretações não têm fundamento. A resposta de Jesus à mulher que o enaltecia só tinha por objetivo combater nela e nos que a circundavam um preconceito inveterado no espírito dos judeus, para quem os laços sanguíneos prevalecem sobre a conduta pessoal. Limitava-se a mostrar-lhes que praticar a lei de Deus tem maior valor do que ser mãe de um profeta.

Jesus não pretendia definir nada relativamente à maternidade divina de Maria, que tanto aquela mulher como a multidão ignoravam. Quanto à pergunta de Maria a Gabriel, trata-se de um pedido de explicações, não de uma objeção. Maria deseja saber como poderá cooperar com as intenções de Deus a seu respeito, tendo em vista que Ela é virgem. Não lhe vem ao espírito que Deus lhe pede para abandonar o voto de virgindade. Se tal ideia lhe tivesse ocorrido, demonstraria insensatez em preferir suas tendências pessoais aos desejos de Deus.

Não se pode portanto sustentar esses pretensos argumentos escriturais, é preciso examinar a questão em si mesma.

Se quisermos ver na maternidade divina apenas o fato fisiológico -- o qual, mesmo sob este aspecto limitado, seria superior como dignidade à filiação adotiva -- seria evidentemente preferível a ele o menor grau de graça santificante, e sem nenhuma dúvida Maria teria colocado acima de tal honra a felicidade que lhe podia trazer algum outro privilégio: a Imaculada Conceição, que lhe possibilitou ter sido sempre a bem amada de Deus, capaz de amar seu Criador desde o primeiro momento de sua existência;  sua virgindade, que lhe permitiu amar a Deus sem compartilhamento;  sua associação com Cristo sofredor, que lhe possibilitou dar a Deus a prova suprema de seu amor.

Na sua realidade concreta, tal como foi desejada e realizada por Deus e por Maria, a maternidade divina, acrescida de todos os privilégios e graças que lhe trouxe, é infinitamente amada pela Virgem. Tanto que, sob a inspiração do Espírito Santo, Izabel exclamou: "Bem-aventurada sois, por ter acreditado no cumprimento das coisas anunciadas pelo Senhor!".

E Maria, enlevada num entusiasmo divino, cantou: "Minha alma glorifica o Senhor, e meu espírito exulta de alegria em Deus meu salvador. Eis que todas as gerações me chamarão bem-aventurada".

A maternidade rejubila tanto o coração de Maria, não só porque Deus teve por bem acrescentar a ela toda sorte de favores sobrenaturais. Pelas próprias exigências da sua natureza, a maternidade divina foi fonte de infinita alegria para Maria, pois em relação ao próprio Filho de Deus encarnado ela comporta tudo o que significa uma mãe humana em relação ao seu filho. Toda verdadeira maternidade humana supõe um amor único da mãe pelo filho, e atrai como consequência um amor único do filho por sua mãe. Sem esse amor, a maternidade não passa de um ato animal, portanto uma maternidade monstruosa num ser humano.

Como mãe de Cristo por verdadeira maternidade humana, Maria devia amar seu filho, e amá-lo por inteiro. Uma mãe humana ama o corpo de seu filho, porém mais ainda a sua alma. E Maria, para amar inteiramente seu filho, não poderia limitar esse amor à humanidade de Jesus, (corpo e alma) tinha que estendê-lo muito mais à sua divindade. Portanto, devia necessariamente estar em estado de graça. E Jesus devia amar sua Mãe como Deus e como homem, pois era inteiramente seu Filho, e por mais esta razão Ela devia possuir a graça divina. Como poderia amá-la, sendo Deus, se Ela tivesse sido sua inimiga?

O que afirmamos acima é o que sempre entendeu a tradição cristã, ensinando que o Todo-Poderoso fez de Maria uma digna Mãe de Deus. Assim o afirmou Santo Agostinho, declarando que a maternidade material não teria em nada beneficiado a Virgem Maria se Ela não se alegrasse mais em ter Jesus em seu coração do que em seu seio. Ele escreveu: "Quando se fala de pecado, não admito que o assunto possa alcançar a Santa Virgem, por causa da honra de Nosso Senhor". Trata-se da honra do Senhor a propósito da maternidade divina. Santo Agostinho ainda afirma: "Essa tão grande graça foi dada a Maria porque Ela mereceu conceber Deus e dá-lo à luz".

De sancta virginitate, capítulo 3.


De natura et gratia, capítulo 36.)

A Santa Igreja o professa na sua liturgia e nos seus documentos oficiais. Na oração da festa da Imaculada Conceição: "Ó Deus, que pela Imaculada Conceição da Virgem preparastes uma digna habitação para vosso Filho". Na oração que se segue à antífona do Salve Regina: "Deus Todo-Poderoso, que preparastes pela cooperação do Espírito Santo o corpo e a alma da gloriosa Virgem Maria, para que ela merecesse tornar-se a digna morada de vosso Filho". Na bula Ineffabilis, que definiu o dogma da Imaculada Conceição: "Convinha absolutamente que uma Mãe tão venerável brilhasse sempre com os esplendores da santidade mais perfeita".

Segundo a doutrina da Igreja, a maternidade divina exigia não apenas o estado de graça, mas exigia-o no seu grau mais elevado possível. Ela o afirma expressamente, em especial na bula Ineffabilis, a propósito da plenitude de graça em Maria. Pois Deus devia amar sua Mãe imensamente mais do que a qualquer outra criatura;  e Maria devia amar seu Filho imensamente mais que às outras criaturas.

Para que Maria, em todas as circunstâncias da sua vida, pudesse amar seu Filho com toda a perfeição concebível, toda a pureza, toda a fortaleza, toda a continuidade possível, Deus lhe concedeu junto com essa plenitude de graças uma multidão de outros privilégios realmente excepcionais.

Para que pudesse amá-lo desde o primeiro momento de sua existência, criou-a imaculada;  para que pudesse amá-lo sem estar limitado o arrebatamento desse amor, isentou-a de concupiscência;  para torná-la capaz de amar sem fraquezas, preservou-a de toda imperfeição;  para poder amá-lo com exclusividade, tornou-a Virgem das virgens;  para lhe permitir amá-lo com um amor que atingisse sua manifestação suprema, associou-a à sua Paixão redentora;  para que o amasse com todo o seu ser, não tardou em unir seu corpo glorioso à sua alma bem-aventurada;  para que esse amor se comunicasse a todas as criaturas, estabeleceu-a Mãe dos homens e distribuidora de todas as graças.

Sendo função de amor, de acordo com a vontade de Deus, a maternidade divina está presente em todas as fases da sua realização, e foi o amor que preparou Maria para receber esse privilégio. Esse amor ultrapassava o dos serafins desde a sua Imaculada Conceição, e aumentou a cada instante até a vinda do mensageiro que lhe anunciou sua escolha. Pode-se dizer, de acordo com os santos e com a própria Igreja,que tal amor mereceu para Maria essa infinita dignidade. Não se trata de um mérito dela em caráter absoluto, pois uma dignidade tão sublime não podia, em estrita justiça, provir de uma pura criatura. Mérito de conveniência, portanto, pois Maria correspondeu o mais perfeitamente possível a todas as graças dessa maternidade. (Ver acima a oração do Salve Regina.)

Maria recebeu essa incomparável dignidade numa perfeita disposição desse amor. São Lucas nos mostra o anjo Gabriel anunciando-lhe os desígnios de Deus a seu respeito, e Maria pedindo explicações para bem inteirar-se de tais desígnios. Ela conhecia através dos profetas, e também pelo entendimento que Deus não podia negar-lhe, tudo que o seu consentimento acarretaria para Ela. A vontade de Deus era clara, e a Virgem só podia responder "Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra". Resposta de obediência, resposta de amor, pois amar a Deus é fazer a sua vontade. Resposta também de um amor incompreensível, que permite ao Filho de Deus realizar por meio dela sua incompreensível obra de amor.

Não foi somente por sua intensidade que o amor de Maria a Deus foi singular, mas também por tratar-se de um amor materno. Há na terra muitas almas santas, e no céu milhões de espíritos sublimes nos quais jamais houve pecado. Entretanto, o amor deles por Jesus jamais terá essa característica exclusiva do amor de Maria, que é o de ser materno. Somente Maria pode amar a Deus como seu Filho. O amor da jovem Virgem de Nazaré pelo pequeno ser que durante nove meses carrega e molda em seu seio;  o amor da terna Mãe, contemplando em seu leito ou abraçando o mais belo dos filhos;  o amor da Mãe do divino adolescente, expandindo-se durante longos anos numa inefável intimidade;  o amor da Mãe do Messias, acompanhando ansiosamente os êxitos e dificuldades do apostolado de seu Filho;  o amor da Mãe dolorosa, unindo-se ao sacrifício da divina vítima. Todos esses amores só podem ser da Mãe de Deus.

Maria os teria conhecido, sem a maternidade divina?

Poder amar a Deus por um amor tão singular, foi a primeira bem-aventurança que a divina maternidade concedeu a Maria. Eis uma segunda, não menor que a primeira: saber-se amada por Deus com um amor ainda mais singular. Se o Filho de Deus quis que Maria fosse uma digna Mãe de Deus, também quis, desde o início, mostrar-se digno Filho de sua Mãe, e por isso quis amá-la com o amor filial que cabe a um Deus. Qual não terá sido a consolação de Maria, por se ver amada com um amor tão singular!

Amor incomensurável do mais perfeito dos filhos dos homens, amor infinito de seu Deus;  amor que a escolhia e predestinava antes de todas as criaturas, juntamente com a humanidade de Cristo, que ao lado de Cristo era prometida aos homens desde a queda de Adão, e que durante toda a Aliança lhes era apresentada como sua grande consolação;  amor que, já na sua conceição, formava-a mais bela, mais pura, mais santa que todas as outras criaturas, e que continuava a cumulá-la de graças e privilégios inauditos entre os anjos e os homens;  amor que levou o Criador a receber de uma criatura, desde o início, sua substância humana;  que o levou em seguida a receber todos os cuidados exigidos no decurso de sua infância, a depender dela, a lhe ser submisso e a servi-la como uma criança bem nascida serve à sua mãe;  amor que a tornou digna de ser associada à Redenção, a própria obra para a qual o Pai havia enviado seu Filho ao mundo;

amor pelo qual Ele a encarregaria da distribuição de todas as graças;  amor que tornava a pobre serva do Senhor semelhante ao Homem-Deus durante sua vida, nas suas graças e privilégios, nas suas virtudes e disposições, nas suas funções e retribuição, em tudo o que não era incomunicável;  amor que chegou mesmo a fazer de um a imagem perfeita do outro, a Mãe e o Filho formando, por assim dizer, uma só alma;  enfim, amor que levava o Verbo de Deus a ter mais afeição por sua Mãe do que por todas as outras criaturas, mais alegria e mais glória na menor das ações de Maria, no menor dos seus pensamentos do que no nascimento e nos atos mais heroicos dos seus santos e dos seus mártires.

Entre o amor de Jesus por Maria e seu amor pelos outros escolhidos existe ainda uma diferença não só de grau, mas também de natureza. Às outras criaturas, o Filho de Deus ama como se ama a servos, irmãos de adoção. Mas Jesus ama Maria como sua verdadeira Mãe. Ele a ama, e só a Ela, com amor filial, chama-a minha Mãe desde o início, quando ainda criança, depois como adolescente, depois como adulto, demonstrando-lhe infinito amor filial. Incomensurável é essa bem-aventurança de saber que Ele a amou com esse amor filial desde toda a eternidade, e que esse amor não terá fim, pois Jesus será sempre seu Filho, e sempre Ela será sua Mãe.

Considerando pois a maternidade divina -- não sob o aspecto abstrato de uma relação física com a humanidade de Cristo, mas sem separar o que Deus uniu -- nós a contemplamos na sua realidade concreta, tal como ela é e deveria ser. Quem não conclui então que, dentre os privilégios da Virgem, é essa maternidade que goza de sua preferência? Qual outro privilégio lhe possibilita ao mesmo tempo amar tanto a Deus e ser por Ele tanto amada?(A propósito dessa preferência da Virgem pela sua maternidade divina dentre todos os outros privilégios, pode-se perguntar se ela excluiria a possibilidade de uma devoção inteiramente especial a algum outro de seus privilégios. A resposta é: de nenhum modo. A Igreja comemora com a mesma alegria e pompa a festa de Natal, o Corpus Christi, a Santíssima Trindade. Nossa sensibilidade se deixa tocar mais nas cerimônias das duas primeiras do que na obscuridade metafísica da última.

Será também legítimo, em tal época do ano, em tal santuário, em tal confraria ou sociedade religiosa, dedicar-se mais a honrar a Imaculada Conceição de Maria, as suas dores, a sua Assunção, do que honrar a maternidade divina. A aparente preferência que se dá a certos mistérios secundários pode ser desejada por Deus, para melhor atrair a atenção dos fieis sobre a inesgotável riqueza dos mistérios essenciais. Compreenderíamos menos bem a infinita caridade da adorável Trindade sem a contemplação do Filho de Deus tornado criança ou escondido sob as aparências de uma hóstia. Admiraríamos menos a inenarrável grandeza da Mãe de Deus sem a meditação de sua Imaculada Conceição, de suas dores ou de sua Assunção. Certas confrarias religiosas podem precisamente ter como missão providencial a de contemplar e fazer contemplar um ou outro dos aspectos secundários do Filho de Deus ou de sua Mãe. E a vontade de Deus deve reinar sobre todas as outras considerações.)

7º. A maternidade divina, dos pontos de vista católico e protestante


Dentre os protestantes, os que conservaram intacta a fé no mistério da Encarnação admitem a maternidade divina de Maria. No entanto, divergem de nós por não a considerarem uma fonte de grandezas incomparáveis. Para eles, Maria não passa de um instrumento físico necessário à Encarnação, pois o Verbo precisava de uma mulher para ser gerado e nascer, e Maria foi essa mulher, mas qualquer outra teria servido para a mesma finalidade. Ser chamada para esta função constituiu para Ela, sem dúvida, uma distinção especial, mas segundo eles isso não resultou em nenhum mérito real, como não foi maior o da mãe de Pascal por ter gerado um matemático genial, ou o da mãe de Napoleão por ter dado à luz o maior conquistador dos tempos modernos.

Completamente diferente é a atitude dos católicos e a de certo número de cismáticos orientais. Aos olhos destes, Maria foi escolhida não apenas como instrumento físico para uma obra material, e sim como o instrumento moral de um mistério divino, agindo de modo consciente e livre. Ela foi preparada, no que se refere ao seu corpo, para formar o corpo de Jesus. E quanto à sua alma, para tornar-se digna Mãe de Deus.

Já mostramos como a atitude católica se justifica com base na Sagrada Escritura. Também a justifica o procedimento geral de Deus em relação aos instrumentos de que se serve para suas obras de misericórdia. Quando Deus quer servir-se do homem para punir culpados, geralmente o toma como instrumento inconsciente, não o elevando por isso a uma perfeição especial. Os madianitas e os filisteus, no Antigo Testamento, serviram muito bem para castigar os israelitas por sua idolatria;  e Átila tornou-se o flagelo de Deus no mundo cristão, sem para isso tornar-se santo. No entanto, tratando-se de desígnios de misericórdia, em geral Deus não se serve dos homens como instrumentos cegos. Mesmo não precisando de ninguém para realizar sua vontade, Ele se compraz em escolher certos homens para se tornarem cooperadores livres em suas obras de amor. Nesses casos, prepara os escolhidos para tal missão por meio de graças e aptidões especiais.

Quanto mais a missão é sublime, mais as graças e aptidões são excepcionais.

Aos onze Apóstolos que escolheu para dar continuidade à sua obra, tornou-os santos. Cada vez que deseja estabelecer na sua Igreja uma grande obra de amor, suscita como colaborador um homem de virtude extraordinária, basta lembrar os fundadores de Ordens religiosas e os grandes reformadores.

Poderia Ele agir de modo diferente no que se refere àquela que viria a ser o instrumento de sua maior obra de amor aos homens? O que são todas suas outras obras, comparadas à Encarnação? Não são elas simples preparações, ou então consequências parciais? Para suas missões secundárias, Deus sempre teve a preocupação de preparar dignos ministros. O que não terá feito então no que se refere à criatura que escolheu desde toda a eternidade para essa obra infinita, em torno da qual gira toda a História do céu e da terra?

A atitude dos católicos em relação a Maria Santíssima é a única compatível com nossa ideia do amor de um filho em relação à sua mãe, sobretudo quando Jesus Cristo é esse Filho.

A mãe é a obra-prima de Deus, criatura maravilhosa, inefavelmente doce e terna, amorosa e sagrada. Para formar seu filho, a mãe dá não somente sua cooperação física. Mais ainda, põe a esse serviço sua inteligência, seu coração e sua vontade, tudo o que tem de melhor em si mesma, para transmiti-lo ao pequeno ser que é seu prolongamento. Nenhum outro dá de si tanto, nem durante tanto tempo, nem ao preço de tantos esforços, sacrifícios e angústias. Existe algum outro amor criado que possa igualar-se a este?

Ao amor materno corresponde a piedade filial. Todo filho bem nascido venera e ama sua mãe, tomando-a como um ser infinitamente santo. Pouco importam seus defeitos, ela é sua mãe, é soberanamente digna de respeito e afeição.

A criança conhecerá outros sentimentos na sua vida, alguns deles mais arrebatadores, aos quais concederá algum espaço antes destinado ao amor filial. Porém jamais conhecerá outro tão puro e desinteressado, tão durável, tão apaziguador e nobilitante, pelo menos no campo da ordem natural. Nas pessoas cuja piedade filial não teve a quem se manifestar, falta algo essencial à alma, ainda que dotada de grande retidão. Naquelas em que a piedade filial deixou de existir, toda nobreza está definitivamente extinta. Onde ela persiste, mesmo em meio ao vício, a esperança de uma ressurreição continua a brilhar.

Deus é o criador da mãe, tornando-a essa maravilha. É também o criador da piedade filial, posta no coração de todos os filhos. Para que o filho jamais esqueça seus deveres em relação à sua mãe, deixou expressamente um Mandamento no Antigo Testamento, inscrito no alto da segunda Tábua da Lei. No Novo Testamento, o Filho de Deus feito homem reivindicou altivamente para a mãe os seus direitos, contra as deformações hipócritas dos fariseus.

Acaso não teria esse mesmo Filho de Deus compreendido as infinitas delicadezas do amor materno nem as sagradas obrigações da piedade filial? Se nós, apesar de todas as nossas maldades, daríamos à nossa mãe todas as perfeições que pudéssemos, teria tido o Filho de Deus menos amor à sua Mãe do que nós pelas nossas? Não a honraria Ele tanto quanto pudesse?

O conceito católico sobre a Mãe de Deus corresponde simplesmente à convicção de que Jesus foi um Filho perfeito, no qual triunfou a piedade filial. Quanto ao conceito protestante, não passa da suposição de que a piedade filial não é uma virtude, ou então que Jesus teria sido um mau filho, pelo menos um filho que não conseguiu compreender um dos sentimentos mais delicados e mais puros do coração humano.

Apesar das posições sustentadas pelos teólogos protestantes, alguns dos nossos irmãos separados ousam venerar aquela de quem Deus se dignou tornar-se filho, ou pelo menos sentem falta da piedade católica nesse ponto, voltada para a humilde, doce, inteiramente virginal e inteiramente amorosa Mãe de Jesus.

O que procuramos contemplar nas páginas precedentes nos deixa entrever, ainda que vagamente, a glória inconcebível e a felicidade sem limites da Mãe de Deus. Dessa glória e dessa felicidade nós participamos, pois Maria nos pertence. Não foi entre os anjos, e sim na nossa raça decaída, entre as nossas irmãs em Adão, que Deus escolheu uma criatura para torná-la sua Mãe, elevando-a a tal grau, ornando-a com tal beleza, amando-a com tal amor, que ultrapassa tudo o que jamais fez por todas as inteligências celestes.

Na maternidade divina há algo que nos toca de mais perto ainda do que essa honra: a Mãe de Deus é também nossa Mãe. Veremos que é pelo fato de ser Mãe de Deus que Maria é nossa Mãe. Os Padres da Igreja afirmam: "Deus se tornou homem para que o homem se torne Deus". E podemos acrescentar: "Tornando-se homem, Deus tomou para si uma Mãe humana, para que o homem tivesse por Mãe uma Mãe de Deus".

Capítulo, 2º. MATERNIDADE ESPIRITUAL, COMPLEMENTO DA MATERNIDADE DIVINA


A Mãe de Deus é também nossa mãe, por ser mãe do Corpo Místico de Cristo. De acordo com a eterna vontade de Deus, Cristo se tornou a cabeça desse Corpo Místico que nós formamos junto com Ele. Mas Deus não o determinou assim por dois decretos sucessivos -- pelo primeiro, que o Filho se tornasse Filho de Maria;  e Chefe (cabeça) da humanidade pelo segundo. Por um único decreto, decidiu que seu Filho se tornasse Filho de Maria, a fim de ser também Chefe da humanidade. Desde o primeiro instante da sua maternidade, Maria tinha em seu seio Cristo unido a todos os membros de seu corpo místico. Este é o ensinamento do Papa Pio XI na encíclica Ad diem illum: "No próprio seio castíssimo da Virgem, Cristo se uniu a um corpo espiritual, formado de todos os que deviam crer nele;  e pode-se dizer que, tendo Jesus em seu seio, Maria portava ainda todos aqueles aos quais a vida do Salvador devolvia a vida".

Deus não faz nada pela metade, imprime em todas as suas obras um cunho de plenitude. Esse cunho, Ele o devia imprimir especialmente em suas duas obras-primas -- Cristo e Maria. Era conveniente, e quase se poderia afirmar ser imperioso, que Deus fizesse da Mãe de Cristo a Mãe de todos os que formam com Ele um só corpo, se não quisesse parar no meio do caminho. Isso se impunha tanto mais por ter Maria dado a humanidade ao Filho de Deus, precisamente para que Ele pudesse tornar-se o Chefe do gênero humano.

Tornando-nos Filhos de Deus com Cristo, ficamos em tudo identificados com Ele: Quem nos faz o bem, o faz a Cristo;  quem nos persegue, persegue a Cristo;  a vida dele é a nossa vida. Seus mistérios e prerrogativas são também os nossos: Com Ele devemos sofrer, morrer e ser sepultados;  com Ele devemos reviver e ressuscitar;  com Ele nos tornamos herdeiros do Pai, seremos glorificados, ocuparemos lugar na morada celeste. Portanto, juntamente com Ele devemos também ser filhos de sua Mãe.

É evidente que Maria não pode tornar-se mãe dos homens por meio da vida natural, como o fez com Jesus. Mas Cristo não é mesmo Cabeça da humanidade no que se refere à vida natural, e sim pela vida divina, o mesmo devendo-se dizer a respeito de Maria. Jesus recebeu de Maria a vida natural a fim de conseguir fazer-nos viver a vida sobrenatural;  e Maria tornou-se Mãe natural de Jesus para tornar-se nossa Mãe sobrenatural.

A união necessária entre a maternidade espiritual de Maria e a maternidade divina conduz logicamente a que, em qualquer tratado de Mariologia, o capítulo da maternidade espiritual deva ser colocado imediatamente em seguida ao da maternidade divina, e não no fim do tratado, como geralmente ocorre. Ainda outro motivo exige esta colocação, pois os outros privilégios de Maria lhe foram dados não somente em vista da sua maternidade divina, mas também em vista da sua maternidade espiritual, isto é, da sua função de Mãe do Corpo Místico de Cristo. Cometi também este erro de perspectiva na primeira edição deste livro.

1º. Significado da maternidade espiritual de Maria


Até os católicos menos instruídos sabem que Maria é sua Mãe. Antes mesmo de ter ouvido pronunciar as palavras Imaculada Conceição, virgindade, Assunção, toda criança que já consegue balbuciar uma oração sabe que a Mãe de Jesus é também sua Mãe. Mas qual o significado exato deste título? Grande é o número dos cristãos que, mesmo sendo devotos da Virgem, têm sobre a maternidade espiritual uma compreensão bem imperfeita e limitada. Nossa piedade filial para com Maria, que tem seu fundamento nessa maternidade, não pode deixar de ser imperfeita e limitada se ela é mal compreendida.

No entendimento de alguns, Maria é chamada nossa mãe porque nos ajuda e nos ama como se fosse nossa mãe. Esse nome suave, aplicado a Ela, exprimiria portanto apenas uma maternidade metafórica, inefavelmente doce como se quiser, mas simples maternidade figurativa e não verdadeira.

Outros veem nesse título de mãe a expressão dos cuidados que empreende para nos nutrir e ensinar. Ela nos prodigaliza tantos favores espirituais para fortificar nossa vida sobrenatural, para desenvolvê-la e preservá-la de todo perigo;  cumula-nos de tantos favores naturais em saúde e doença, em todas as circunstâncias da nossa vida, que jamais uma mãe verdadeira fez a centésima parte disso para o mais querido dos seus filhos. Porém, cabe aqui perguntar se uma enfermeira pode ser considerada mãe.

Para outros, Maria é nossa mãe adotiva. No momento em que seu Filho único agonizava, designou para ocupar seu próprio lugar o discípulo bem amado, João, e na pessoa dele todos os discípulos atuais e futuros: "Mãe, eis aí vosso filho. Filho, eis vossa mãe". Nessa hora, Maria teria adotado como filhos aqueles que o amor de seu Filho lhe confiava, e daí em diante Ela os teria tratado como se os tivesse posto no mundo.

É verdade, como mostraremos adiante, que a palavra de Cristo na cruz se referia à maternidade espiritual de Maria, mas querer procurar nessa palavra o fundamento da sua maternidade resultaria em fazer desta uma ideia bem superficial. Seria algo de puramente acidental, baseado numa palavra que Nosso Senhor teria podido não pronunciar, de qualquer forma algo extrínseco a Maria e a nós, tendo em vista que: uma adoção é apenas uma ficção legal;  a adoção confere ao adotado os direitos de um filho, mas não pode fazer dele um filho verdadeiro;  confere ao adotado os bens exteriores, mas não pode fazer com que receba as características naturais do pai ou mãe adotivos. A maternidade espiritual de Maria é de fato uma realidade bem mais íntima do que uma simples adoção humana,uma realidade ligada a toda a missão, a toda a razão de ser da Virgem. (Veremos adiante em que sentido podemos ser chamados filhos adotivos de Maria.)

2º. Maria nos transmite a vida sobrenatural


O que significa a maternidade espiritual? Por ela entendemos que Maria nos deu a vida sobrenatural, tão verdadeiramente como nossas mães nos deram a vida natural. Da mesma forma como nossas mães o fazem para nossa vida natural, Ela alimenta, protege, desenvolve e expande nossa vida sobrenatural a fim de conduzi-la à perfeição.

Todo homem compreende a realidade da vida natural, pois a vemos, tocamos, sentimos e percebemos em todas as nossas atividades exteriores e interiores. Por assim dizer, ela se confunde com a nossa identidade, e só tomamos consciência da nossa individualidade sentindo-nos viver. Ela é a grande realidade, de tal modo cara a nós que, se necessário, fazemos por sua conservação o sacrifício de todos os nossos outros bens terrestres, fortuna, prazeres, ambições.

A fé nos ensina que, ao lado dessa vida, há para o cristão uma outra, dita sobrenatural ou espiritual, ou ainda estado de graça. Porém, como esta vida não pode ser vista, tocada nem constatada diretamente, a muitos cristãos ela parece algo vago, etéreo, inconsistente, algo até negativo tratando-se da ausência de pecado grave. Ou então, se nela há algo positivo, resume-se a uma relação exterior de amizade entre a alma e Deus. No entanto, essa vida sobrenatural é uma realidade bem superior a qualquer outra realidade criada, bem superior especificamente a essa vida natural que nos é tão cara. Os mártires sacrificaram alegremente sua vida natural em favor dela, e nós também devemos estar dispostos a perder nossa vida natural ao invés do estado de graça, a exemplo do Filho de Deus, que encarnou e deu sua vida para que pudéssemos merecer essa vida da graça.

Em que consiste essa vida sobrenatural tão impalpável, no entanto tão preciosa? Ela é a própria vida de Deus, a vida de Cristo em nós. São Pedro afirma que por meio dela nós nos tornamos "participantes da natureza divina". São Paulo escreveu: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim";  "Minha vida é Cristo";  ensina ainda que nos tornamos um só corpo com Jesus Cristo, que é nossa Cabeça. Em um corpo, a mesma vida que anima a cabeça anima também os membros, e o próprio Jesus Cristo, antes de São Pedro e São Paulo, ensinou aos seus discípulos: "Eu sou a videira e vós sois os seus ramos. Aquele que permanece em mim, e Eu nele, produz muitos frutos". A mesma seiva circula no tronco e nos galhos, a mesma vida circula em Cristo e em seus discípulos.

Essa participação na vida infinita e eterna de Deus nos é comunicada por Maria. Como é que Ela o faz? A isso se pode responder: Nossa vida é Cristo, e Maria nos deu Cristo, portanto nos deu nossa vida. Pode-se responder ainda, tendo em vista que é por meio da graça que partici-pamos da vida de Cristo: Sendo nossa vida sobrenatural a graça, Maria nos dá nossa vida sobrena-tural por ter merecido para nós e distribuir-nos todas as graças.

3º. Ação de Maria no nosso nascimento sobrenatural


A fim de examinarmos mais detidamente a ação de Maria no nosso nascimento sobrenatu-ral, podemos distinguir nele três momentos. O primeiro momento é a Anunciação. Nossa regeneração espiritual começou no mistério da Encarnação, sem a qual estaríamos ainda sepultados na morte do pecado. Porém a Encarnação foi operada por Deus em Maria, que nesse mistério não foi apenas um instrumento físico e cego. Conhecia por meio dos profetas as consequências que sua resposta ao anjo Gabriel iria acarretar para Ela e para nós, e Deus certamente a esclareceu ainda mais sobre isso naquele momento. Deu o seu consentimento, ciente de que dele dependia nossa vida ou morte. Pelo seu fiat, consentia no nosso nascimento sobrenatural, consentindo naquilo em que sua maternidade nos dizia respeito.

Supondo-se portanto que Cristo não tivesse no Calvário confiado o discípulo João à sua Mãe, e supondo mesmo que a Virgem tivesse deixado a terra imediatamente depois do nascimento de seu Filho, ainda assim Ela seria em toda a realidade nossa Mãe.

Pode-se afirmar, de acordo com certos autores e com o próprio Papa São Pio X, que ao conceber Jesus, cabeça do Corpo Místico, Maria também concebeu a nós, pois somos os membros desse Corpo Místico, e os membros estão unidos à cabeça num único conjunto. À primeira vista, esse raciocínio pode parecer apenas um argumento analógico fraco, pois se passa da ordem física à ordem espiritual, como se disséssemos: Maria concebeu fisicamente a cabeça do corpo místico, e supõe-se que tenha dado aos membros a vida sobrenatural. Mas é necessário considerar que à Cabeça Ela deu diretamente a vida física, e a finalidade era que os membros viessem a receber dessa Cabeça a sua vida espiritual. A intenção se transformava assim em fato -- pois desde então se inaugurava o mistério da Redenção -- e os membros se achavam unidos à Cabeça.

Portanto não se trata de simples analogia, e sim de uma realidade que se explica pelo fato de Maria carregar todos nós espiritualmente em seu seio, com seu Primogênito.

O mistério da Encarnação se completa com o da Redenção. Foi somente por sua morte que Cristo completou "a destituição daquele que detinha o império da morte" e nos mereceu definitivamente viver da sua vida. A cooperação de Maria para a Redenção foi não menos consciente do que sua cooperação na Encarnação. Nossa regeneração espiritual, iniciada no mistério da Encarnação, foi finalizada na Redenção. Da mesma forma a maternidade espiritual de Maria, que começou na Anunciação e se completou na Redenção. Em Nazaré Maria nos concebeu, no Calvário nos deu à luz. A mesma Virgem, a quem tanta alegria foi dada no nascimento de seu Filho único, padeceu as angústias mais mortais por ocasião do nascimento dos outros filhos que somos nós.

Antes de expirar, Nosso Senhor quis dar-nos uma indicação dessa maternidade espiritual, proclamando que sua Mãe é também nossa Mãe, e confiando-a a nós na pessoa de São João. Mas sua palavra não criou essa maternidade, apenas a proclamou e a confirmou na hora mais solene de sua vida. Nessa hora, tal maternidade se consumou pela consumação do mistério da Redenção, e Maria estava então mais preparada para compreender toda a plenitude do seu significado. Sem dúvida essa palavra, eficaz como todas as palavras divinas, tornou mais profundos e mais vivos ainda os sentimentos maternos de Maria por nós.

4º. Maria dá vida a cada alma, obtendo-lhe a graça divina


A função materna de Maria não cessa com esse doloroso nascimento. Ao estudarmos a função de Mediadora universal, mostraremos que Maria prossegue no céu sua missão de co-redentora, distribuindo agora a cada alma as graças que as ajudou a merecer. Por essa mesma função, continua sendo no céu nossa Mãe -- ou seja, Mãe de cada um de nós em particular -- após ter-se tornado, em Nazaré e no Calvário, a Mãe de todos em geral.

Mesmo após nosso resgate por Nosso Senhor, não nascemos no estado em que nasceríamos se Adão não tivesse pecado. Do ponto de vista sobrenatural, somos todos natimortos no momento do nascimento, e é preciso que a vida sobrenatural conquistada para todos pela morte de Cristo seja infundida em cada um de nós individualmente. Mas a graça santificante, como todas as graças, é obtida para nós por Maria. No batismo, o filho do pecado se torna filho de Deus;  no confessionário, o cadáver espiritual se reanima, readquire a vida e se torna filho de Deus pela ação de Maria. Sem a graça de vida que Ela obtém, a morte espiritual permaneceria. Ninguém renasceria para a vida divina sem que Maria a tivesse obtido sobrenaturalmente.

Ao pé da cruz "Ela estava triste, pois sua hora havia chegado". Hora de angústias indizíveis, consequências da maldição de Eva. Mas o que existe atualmente é a inefável renovação da alegria que teve no nascimento virginal, naquela hora inesquecível em que, na gruta de Belém, deu ao mundo Jesus Cristo, seu Primogênito. Atualmente aquela alegria se renova ao dar à luz os membros do Corpo Místico.

Por sua tríplice colaboração na Encarnação, na Redenção e na distribuição das graças divinas -- a qual só é tríplice no que se refere à execução, mas que é uma só na sua intenção -- Ela nos deu verdadeiramente a vida sobrenatural e a colaboração para nosso nascimento como filhos de Deus, da mesma forma que nossas mães contribuíram, segundo a natureza, para nosso nascimento como filhos de Adão.

5º. Perfeição da maternidade espiritual de Maria


Estaremos dizendo o suficiente ao afirmar que Maria contribuiu verdadeiramente para nosso nascimento espiritual tanto quanto nossas mães para nosso nascimento natural? Não terá ela contribuído bem mais?

À primeira vista, é verdade que a maternidade espiritual de Maria pode parecer menos real que a maternidade natural de nossas mães. A vida sobrenatural da qual vivemos, foi Deus que a criou, e não Maria, instrumento secundário na comunicação que dela nos faz Deus. Respondemos que sem dúvida é assim, mas esse é precisamente o caso de nossas mães em relação à nossa vida natural. Esse ser maravilhoso que é um filho não pode ser criado por uma simples criatura humana. Só Deus cria os elementos que formarão seu corpo e a vida que o animará. Só Deus cria e infunde nesses elementos a alma racional. A mãe é apenas o instrumento secundário do qual Deus se serve para comunicar a vida natural à criança. Da mesma forma, Maria é o instrumento secundário pelo qual Ele quer nos comunicar nossa vida sobrenatural.

Como instrumento secundário, Maria desempenha uma atividade incomparavelmente superior à de nossas mães, que nem sequer sabem como elas próprias operam essa maravilha humana, nem quais serão as qualidades da maravilha que elas operam. A mãe dos macabeus disse aos seus sete filhos, no momento em que iam ser martirizados: "Não sei como aparecestes nas minhas entranhas. Não fui eu quem vos deu o espírito e a vida, nem fui eu quem juntou os elementos que compõem vosso corpo". Porém Maria conhece sua atividade sobrenatural, na qual põe toda sua inteligência, todo o seu coração, toda a sua vontade, e nisso pôs antes todas as suas angústias. Ela conhece exatamente todas as qualidades e todas as energias sobrenaturais dos que gera para a graça.

É verdade ainda que nossas mães deram uma parte da sua substância para nos comunicar a vida, e que Maria não operou desse mesmo modo para nos fazer nascer sobrenaturalmente. Admitimos, mas isso prova somente que Maria nos dá uma vida superior à vida física. No campo das coisas materiais é necessário, para dar algo, desfazer-se daquilo que se dá, mas no campo espiritual não se passa o mesmo. Sem desfazer-se do que possuem, o sábio comunica sua ciência, o orador sua emoção, o santo seu amor por Deus. Vivendo plenamente de Deus, Maria nos faz viver dessa vida divina da qual vive, embora conservando-a inteira. Não é também assim que Deus nos dá a vida? Ele nos faz viver de nossa vida natural e de nossa vida sobrenatural sem dispensar a posse de parte da sua substância, no entanto é nosso Pai verdadeiro e único, pois "de toda paternidade é titular no céu e na terra". De acordo com o ensinamento de Nosso Senhor, nós só temos "um Pai, que está nos céus".

Essas mesmas objeções já provam a superioridade da vida que recebemos de nossa Mãe espiritual, em relação à vida natural, mas resplandece sobretudo pela comparação direta entre as duas vidas. O que estabelece desde o início uma distância de algum modo infinita entre a vida que recebemos de nossos pais e a que Maria nos comunica, é que esta última é a própria vida de Deus. Sermos participantes da natureza divina, vivermos da vida de que vive a adorável Trindade, podermos dizer que por essa vida nos tornamos um com Cristo, que o princípio que o anima é o mesmo que nos anima, que seu Pai é nosso Pai -- todos estes são mistérios que nos deixarão encantados durante toda a eternidade. E quem nos gera para essa vida é Maria. Tornando-nos participantes da vida divina, Ela nos torna participantes também dos atributos dessa vida, de acordo com a medida de nossa capacidade.

Para Ela, nós vivemos de uma vida destinada a durar sem fim, como a de Deus. A vida que nossas mães naturais nos dão termina em um instante, aparece como uma centelha e logo se extingue. Que simulacro de vida esse, quando comparado a uma vida que ainda estará no seu começo após milhares de séculos!

Por essa vida sobrenatural nós vivemos de uma vida inefavelmente feliz, à semelhança da vida de Deus. Nossas mães naturais nos geram na dor e também com a dor, dando-nos uma vida que se vive num vale de lágrimas. Quem pode enumerar os sofrimentos, angústias, decepções e arrependimentos de que ela é feita? No entanto a vida que recebemos de Maria é uma vida de felicidade aqui na terra, em meio às provações da nossa vida natural. E será também de incompreensível felicidade na eternidade, quando participaremos da própria beatitude de Deus. Quão maravilhosa é essa maternidade que nos comunica tal vida!

Ao lado dessas diferenças essenciais entre as duas maternidades, há outras menos fundamentais, embora também muito importantes. A vida que Maria nos concede pode ser-nos restituída, se a perdemos. Quando morre um filho, sua mãe chora e se lamenta, mas as lágrimas e o desespero da infeliz não restituem a vida ao cadáver, pois só uma vez ela pode comunicar a vida a esse pequeno ser. Ao contrário, nossa Mãe celeste tem o poder de restituir a vida aos seus filhos inúmeras vezes, até que, por uma decisão obstinada, escolhem para si a danação eterna. Podem perdê-la cem vezes, mil vezes, até mesmo por uma falta grave, e ainda recorrer a Ela para obter seu perdão. Ela mesma é quem os incita a pedir a restauração da vida divina.

Após ter dado ao mundo seus filhos, as mães terrestres os alimentam, ensinam, cuidam de suas necessidades materiais e morais. Entretanto prodigalizam esses cuidados carinhosos apenas durante alguns anos, pois chega o momento em que eles se distanciam para iniciar uma existência independente. Não é isso o que ocorre com nossa Mãe celeste, que precisará intervir durante toda nossa vida em todas as nossas necessidades espirituais. Durante toda nossa permanência nesta terra, prosseguimos na condição de filhos que têm necessidade da mãe para qualquer movimento, pois nada podemos fazer no campo sobrenatural sem a graça, e todas as graças nos são dadas por nossa Mãe celeste. Como São Paulo, porém com maior veracidade, Ela pode nos dizer: "Meus filhinhos, por quem sofro novamente as dores do parto, até que Cristo não se tenha formado em vós".

É necessário estudar ainda outro aspecto muito importante dessa maternidade. Uma palavra pode resumir a ideia de mãe -- o amor. Mas o que pode valer o amor da mãe humana mais terna que se possa imaginar, comparado ao amor que nos tem nossa Mãe celeste? Maria nos ama como só é possível à mãe mais perfeita que a natureza e a graça puderam formar, ama-nos com o mesmo amor que dedica a Jesus, pois somos um só com Ele.

Para se elevarem das qualidades das criaturas até os atributos de Deus, os teólogos empregam um duplo método, que é o da eliminação e o da eminência. Consiste o primeiro em eliminar das qualidades tudo o que implicasse em uma imperfeição, e o segundo em levar a um grau supremo o que implicam de perfeição positiva. Guardadas todas as proporções, parece-nos que podemos também seguir método análogo para nos elevarmos da maternidade natural das nossas mães terrestres até a maternidade espiritual de Maria. Tudo que nas nossas mães constitui imperfeição, defeito, fraqueza, tudo que as impede de ser plenamente mães, está ausente em Maria. Tudo que o conceito de mãe contém de perfeição e atividade positiva encontra-se em nossa Mãe celeste, porém no grau mais alto que possamos conceber em uma criatura. Maria, e somente Maria, possui em toda sua pureza e em toda sua plenitude a maternidade, e nossas mães o são apenas na medida em que se assemelham a essa Mãe ideal.

Vemos assim o quanto é solidamente fundamentada a afirmação que fizemos anteriormente, de que somos verdadeiros filhos de Maria, não simples filhos adotivos. Pode-se entretanto aplicar este último título aos cristãos, se com isso queremos exprimir que eles não são seus filhos por natureza, como Jesus, e que só se tornaram filhos no momento em que a vida sobrenatural lhes foi infundida. Quanto a essa vida sobrenatural, não são seus filhos adotivos, pois nasceram de Maria no momento em que nasceram para a vida sobrenatural. Sabe-se que os termos humanos pelos quais exprimimos as realidades divinas não se aplicam a elas literalmente, e sim por analogia, como dizem os teólogos. Portanto, quando dizemos que Maria é nossa Mãe verdadeira, não queremos evidentemente dizer que Ela seja nossa Mãe no sentido físico da palavra. Da mesma forma com relação ao sentido da palavra Pai, que damos a Deus.


Entendemos que Ela é nossa Mãe verdadeira no mesmo sentido em que Nosso Senhor nos disse que nosso Pai verdadeiro é aquele que está nos céus.)

6º. A maternidade espiritual de Maria, verdade revelada


O ensinamento do Novo Testamento contém indicações suficientemente nítidas, que nos permitem ver na Mãe de Jesus a Mãe de todos os homens, ou pelo menos pressenti-lo. Inicialmente a palavra de Jesus na cruz, legando Maria a João e João a Maria. É o próprio São João que o relata: "De pé ao lado da cruz de Jesus estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria Cléofas, e Maria Madalena. Tendo visto sua mãe, e de pé ao lado dela o discípulo que amava, disse à sua mãe Mulher, eis vosso filho. Em seguida disse ao discípulo Eis vossa mãe. A partir dessa hora o discípulo levou-a para sua casa". Afirmamos acima que a palavra do Senhor agonizante não criava a maternidade espiritual de Maria, mas proclamava-a no momento mesmo em que tal maternidade se concluía sobre a terra.

Uma exegese rigorosa permite ver realmente nessa passagem uma alusão à maternidade espiritual de Maria em relação a nós. Ou seria a palavra de Jesus apenas um simples ato de piedade filial, confiando ao discípulo amado aquela que, viúva após a morte de São José, iria daí em diante permanecer sozinha na terra? É certo que Nosso Senhor teve essa preocupação. Mas é certo também que sua palavra teve outro sentido mais profundo, que a Tradição reconheceu após longos séculos.

Se São João nos relatou esse episódio, é porque viu nele um significado simbólico. Ele conhecia sobre o Mestre tantas coisas, que pôde afirmar: "Se fossem contadas detalhadamente, o mundo inteiro não bastaria para conter os livros necessários para descrevê-las". Menciona somente as que lhe parecem conter um mistério especial. Bem mais que os outros evangelistas, desvenda sentidos ocultos nos fatos que relata. Para limitar-nos ao relato da Paixão, ele nota uma profecia na palavra de Caifás aos representantes do Sinédrio: "Vós não entendestes nada, nem considerais que é útil e necessário um homem morrer por seu povo, a fim de que não pereça toda a nação". E acrescenta: "Caifás não o disse por si mesmo, porém, como era o sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus ia morrer por sua nação". Na própria cena da crucifixão, pouco depois da palavra de Jesus a Maria e a ele, narra como do lado de Jesus transpassado pela lança saía água e sangue.

E insiste: "Quem o viu, deu seu testemunho, e seu testemunho é verdadeiro, e ele sabe que diz a verdade a fim de que vós também o creiais". Evidentemente esse detalhe lhe parece tão importante por causa do seu significado místico.

No episódio que estamos estudando, se ele menciona o dom que Cristo agonizante lhe fez, evidentemente não terá sido para exibir-se dentro dessa cena. Quando fala de si mesmo, só o faz movido pela necessidade de explicar certos incidentes da vida do Mestre. Portanto ele via um mistério na palavra de Jesus, e sem dúvida estava consciente de que Cristo, ao confiar-lhe sua Mãe, dirigia-se a toda a coletividade dos discípulos, que ele representava.

Esta conclusão parece ainda mais natural quando notamos que nesse momento João devia ter claramente na lembrança as maravilhosas expansões do Senhor após a última ceia. Tanto o havia impressionado esse discurso e prece sacerdotal -- no qual, depois de dar aos seus discípulos seu corpo e seu sangue como alimento e como bebida, afirmava que sua própria vida era a vida deles, que seu Pai era o Pai deles, e lhe enviaria seu Espírito, -- que os relataria sessenta anos mais tarde no seu evangelho, com uma fidelidade comovida. Nesse momento em que ouvia o Mestre confiar-lhe sua Mãe, era natural que considerasse esse novo dom como o complemento dos outros dons, como a consequência natural da vida de Cristo nele e em todos os discípulos.

Quanto a Maria, tão atenta em meditar todas as palavras e ações de seu Filho desde que Ele nasceu, estava incalculavelmente mais apta do que João a penetrar esses mistérios de amor, percebendo naquela suprema recomendação de seu Filho a intenção de vê-la ocupar-se de todos os irmãos em Cristo como uma mãe. Se Jesus tivesse apenas a intenção de confiar à solicitude do discípulo amado o futuro material de sua Mãe, bastaria exprimir essa ideia uma vez, mas repete duas vezes o mesmo pensamento, dirigindo-se em cada uma delas a uma das pessoas interessadas, como querendo ressaltar a importância do dom que fazia. Dirige-se inicialmente a Maria, dizendo Mulher, eis o vosso Filho, deixando claro que confiava antes de tudo à sua Mãe uma missão. Depois, dirigindo-se a João, acrescenta Eis aí vossa Mãe, confiando também a ele uma missão.

É de se ressaltar que Salomé, mãe de João, estava presente no Calvário entre as santas mulheres, o que torna claro que a maternidade de Maria em relação a João designava uma realidade de ordem superior. É difícil avaliar até que ponto o discípulo entrevia o sentido místico dessa palavra, mas o Mestre certamente lhe dava o significado espiritual que nós lhe atribuímos. Ele não teria pronunciado essa palavra, ou não teria permitido que João a relatasse, se nelas não tivesse incluído a intenção que a Igreja viria a descobrir. Basta-nos que Jesus tenha pensado na maternidade espiritual de Maria, quando confiou sua Mãe a João, para que tenhamos o direito de nos declararmos herdeiros desse legado de amor. Depois do século 18, muitos Papas, sobretudo os mais recentes, têm frequentemente atribuído esse sentido espiritual ao testamento de Cristo na cruz.

Do mesmo modo, o ensinamento de São Paulo nos conduz a aceitar a maternidade espiritual de Maria. Paulo se alegrava ao nos descrever as maravilhas do mistério pelo qual formamos um corpo único com Jesus. Por sermos membros de Cristo, devemos participar nas diferentes fases da vida de Cristo: Sofrer com Ele, ser crucificados com Ele, ser sepultados com Ele, ressuscitar com Ele, reinar com Ele, ser com Ele filhos e herdeiros de um mesmo Pai. Nada mais natural do que procurarmos a sua intenção e concluirmos que devemos também ser concebidos e nascer de Maria com Ele, ter a mesma Mãe que Ele. Eis uma conclusão tão legítima que, de acordo com o próprio São Paulo, Cristo nos mereceu a adoção como filhos de Deus quando nasceu de Maria: "Chegada a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho nascido de uma mulher, a fim de resgatar os que estavam sujeitos à lei, e para que recebêssemos a adoção de filhos.

A maternidade espiritual de Maria foi ensinada explicitamente, mais rápido do que se poderia esperar. Em torno do ano 200, Santo Irineu de Lyon afirmou que, com o nascimento de Cristo, "o seio da Virgem fazia renascer os homens em Deus". É praticamente esta a palavra de São Pio X no início do século 20: "Ao portar Jesus no seu seio, Maria portava ainda todos aqueles para os quais a vida do Salvador continha a vida".

No século 4, ao refutar a heresia dos antidicomarianistas, (inimigos do culto de Maria) Santo Epifânio ressaltou que o grande nome de Mãe dos vivos só se refere à primeira mulher por alusão, pois Eva foi exilada do Paraíso. Na realidade, refere-se a Maria, pois "dando à luz o [Deus] vivo, tornou-se também Mãe dos Vivos". (Citam-se geralmente dois ilustres Padres da Igreja como tendo ensinado nitidamente a maternidade espiritual de Maria. O primeiro foi Orígenes, do século 3, no Comentário do Evangelho Segundo São João: "O cristão verdadeiro não vive, pois é Cristo que vive nele. Maria ouviu Cristo dizer sobre isso: Eis o teu filho, o Cristo. Mas o contexto mostra que Orígenes não pretende atribuir a Maria uma função materna em relação ao cristão perfeito, e sim provar que o cristão perfeito é um outro Cristo.

Cita-se ainda, com mais frequência, um texto de Santo Agostinho, o maior dos Padres latinos, no tratado De Sancta Virginitate: "Somente Maria, entre as mulheres, é mãe e virgem, não apenas segundo o espírito, mas ainda segundo a carne. Segundo o espírito, Ela não é mãe de nossa Cabeça, o Salvador Jesus, do qual ela mesma, mais do que isso, nasceu espiritualmente. Mas Ela é mãe de seus membros, que somos nós, pois colaborou por meio da sua caridade para que nascessem na Igreja os fieis, que são membros dessa Cabeça. Segundo o corpo, Ela é Mãe da própria Cabeça". A afirmação da maternidade espiritual de Maria é clara. Mas o santo doutor reconhece a mesma maternidade espiritual a todas as almas virgens que, "por sua caridade fecunda, dão à luz os membros de Cristo". Portanto não se trata aqui dessa maternidade espiritual própria a Maria, que se fundamenta na cooperação nos mistérios da Encarnação e Redenção.)

Entretanto o nome de mãe parece ter sido dado a Maria só raramente até o fim da Idade Média. São Bernardo ainda não o conhecia, e nesse tempo Maria era sobretudo a Dama, (Senhora) Nossa Senhora, à qual se erguiam maravilhosas catedrais, todas dedicadas ao seu nome. Porém as funções maternas de Maria -- dar-nos a vida e fazê-la crescer em nós -- eram nitidamente proclamadas. A doutrina da maternidade espiritual era portanto afirmada, mas em geral não se dava o mesmo com a palavra. Da mesma forma, nas origens do cristianismo a doutrina da maternidade divina era universalmente admitida, sem que se pensasse durante quase três séculos em aplicar à Virgem o título de Mãe de Deus.

Pouco depois de São Bernardo, o nome de Mãe dado a Maria aparece de cá e de lá, cada vez mais frequentemente. Sobretudo a partir do século 15, parece que as pessoas gostam de ver na Virgem não somente a Dama, mas também a Mãe. A piedade se junta a isso, e a denominação se difunde rapidamente. Não cessou de ganhar adeptos depois disso, a ponto de tornar-se a preferida, senão no campo da teologia, pelo menos no da devoção. Para muitos fiéis atualmente, a Mãe de Deus tornou-se não somente sua Mãe, mas sua Mamãe.

Como a ideia de mãe parece suficientemente clara, muitos se contentaram com ela, sem se preocupar em explicar o sentido exato e o fundamento da maternidade de Maria. Quando certos pregadores e autores espirituais refletiram sobre a explicação, pensaram ter encontrado um argumento fácil nas palavras de Cristo agonizante a Maria e a São João. Pelo fato de verem nessas palavras mais que a simples afirmação de tal maternidade, e seu próprio fundamento, atribuíram-lhe uma espécie de força sacramental, como se elas pudessem realizar aquilo que significavam, criando em Maria todas as características de uma Mãe perfeita. Sem dúvida isso significava reconhecer na Virgem mais que uma maternidade comum de adoção, que leva consigo apenas relações exteriores, não significando no entanto atribuir-lhe uma maternidade verdadeira, baseada na transmissão da vida.

Aconteceu neste caso o que por vezes ocorre quando queremos explicar coisas que sentimos, mais do que vemos -- uma afirmação que as pessoas sentiam ser sólida passou a basear-se em fundamentos muito fracos. Não é raro encontrar ainda essa exegese em nossos dias, na boca ou na pena de pregadores e autores espirituais.

Outros autores, no entanto, vincularam com mais acerto a maternidade espiritual de Maria ao seu papel nos mistérios da Encarnação e Redenção e na distribuição da graça. No seu Tratado da Verdadeira devoção a Maria, São Luís Grignion de Montfort explica que Maria é nossa Mãe porque formamos com Cristo um só corpo, e "uma mãe não põe no mundo a cabeça (ou o chefe) sem os membros, nem os membros sem a cabeça, e se não fosse assim seria um monstro". Para cada um de nós, Cristo é nossa vida, o fruto das entranhas de Maria, e Maria nos forma em seu seio em conformidade com Cristo. (Tratado da verdadeira devoção a Maria, números 32-33.)

No início do século 19, outro grande servo de Maria, o Padre G. J. Chaminade, julgou dever insistir mais ainda nos fundamentos da maternidade espiritual de Maria. Aos membros de suas florescentes congregações de Bordeaux, sobretudo aos religiosos do Instituto das Filhas de Maria e da Sociedade de Maria, que fundara para prosseguir por meio deles o seu apostolado mariano, expôs uma devoção essencialmente filial a Maria. Consiste na reprodução mais fiel da piedade filial do próprio Jesus em relação à sua Mãe, devendo conduzi-los, na sua missão apostólica nos tempos modernos, a se associarem a Maria da mesma forma que outrora Cristo quis associar Maria à sua missão redentora. Daí o Pe. Chaminade mostrar a necessidade de os seus discípulos compreenderem que são, em Cristo, verdadeiros filhos de Maria.

Consequentemente ele se aprofundou na doutrina da maternidade espiritual da Virgem, e a expôs com uma clareza, uma amplitude e uma força de convicção com as quais, ao que parece, jamais o assunto havia sido tratado antes dele. Na seção que expõe o significado dessa maternidade, o que fizemos foi apenas reproduzir ou resumir os seus argumentos.

Após os estudos sobre a doutrina mariana que suscitaram a definição da Imaculada Conceição, em particular os trabalhos recentes sobre o papel de Maria como co-redentora e distribuidora de todas as graças, os verdadeiros fundamentos da maternidade de Maria são cada vez mais bem compreendidos, e a realidade dessa maternidade crescentemente reconhecida.

Os Papas recentes deram à maternidade espiritual de Maria uma confirmação oficial. São Pio X, na encíclica Ad diem illum publicada por ocasião do jubileu da Imaculada Conceição, além de afirmar ante o universo a doutrina da maternidade espiritual de Maria, acrescentou sobre o assunto uma exposição que, sem pretender esgotá-lo nem tratar dele ex professo, é dotado de uma força notável dentro da sua concisão. Reproduzimo-lo a seguir, e se verá que os dois motivos apresentados como fundamento para essa maternidade são a nossa incorporação a Cristo e o papel de Maria no mistério da Encarnação:

"Sendo Maria a Mãe de Deus, é portanto nossa Mãe. É necessário reafirmar o princípio de que Jesus, Verbo feito carne, é também o Salvador do gênero humano. Enquanto Deus e Homem, Ele tem um corpo como os outros homens. Enquanto Redentor de nossa raça, tem um corpo espiritual -- ou, como se diz, um corpo místico -- que corresponde ao conjunto dos cristãos ligados a Ele pela fé: Todos nós constituímos um único corpo em Jesus Cristo. Ora, a Virgem não só concebeu o Filho de Deus a fim de que recebesse a natureza humana e se tornasse homem, mas também para, por meio dessa natureza recebida dela, tornar-se o Salvador dos homens. Essa é a explicação da palavra dos anjos aos pastores: Nasceu-vos um Salvador, que é o Cristo, o Senhor.

"Da mesma forma, no próprio casto seio da Virgem, onde Jesus tomou carne mortal, associou-se um corpo espiritual, formado por todos os que viriam a crer nele, e se pode afirmar que, portando Jesus em seu seio, Maria portava ainda todos aqueles para os quais a vida do Salvador continha a vida.

"Portanto, todos nós que estamos unidos a Cristo somos os membros do seu corpo, como diz o Apóstolo, e nos devemos considerar originários do seio da Virgem, de onde saímos um dia como um corpo ligado à sua cabeça.

"Por isso, num verdadeiro sentido espiritual e místico somos chamados os filhos de Maria, que por seu lado é Mãe de todos nós -- Mãe segundo o espírito, sem embargo Mãe verdadeira dos membros de Jesus Cristo, como somos todos nós".

Também o Papa Pio XI afirma a maternidade divina de Maria em relação aos homens como verdade admitida. Ao convidar todo o universo para participar das festas programadas para a comemoração do 15º centenário do concílio de Éfeso, que proclamou a maternidade divina da Virgem, ele explicou: "É necessário que a Igreja universal comemore esse feliz acontecimento, pois, sendo todos os homens filhos da Virgem Mãe de Deus, conforme proclamou Cristo agonizante, convém que todos se alegrem com a sua glória".

Na encíclica Lux veritatis, ao expor a imensa importância do Concílio de Éfeso, Pio XI reafirma a maternidade de Maria em relação aos homens e indica os fundamentos dessa verdade: "O que para nós é causa de alegria e doçura especiais é que a Mãe de Deus, pelo fato de ter dado à luz o Redentor do gênero humano, é também, em certo sentido,a benigníssima mãe de todos nós, que Cristo Nosso Senhor quis ter como irmãos". (Quodammodo, isto é, em sentido analógico. Ver esclarecimento em nota acima.)

No epílogo da encíclica sobre o Corpo Místico de Cristo, o Papa Pio XII lembra que, pela cooperação na Paixão, "aquela que corporalmente foi Mãe de nosso Chefe (Cabeça) tornou-se espiritualmente a Mãe de todos os seus membros, por um novo título de sofrimento e de glória".

O desejo de que a maternidade espiritual de Maria seja declarada dogma de fé tem sido manifestado nos últimos anos por muitas autoridades eclesiásticas. Ao que parece, as explicações fornecidas neste capítulo mostram que não haveria sobre isso nenhuma objeção do ponto de vista doutrinário. Por outro lado, uma proclamação solene dessa verdade, seja estabelecendo-se uma festa universal, seja promulgando uma definição, seja ainda de algum outro modo que só à Santa Sé cabe determinar, e se uma tal definição se inclui nos desígnios de Deus, seria um meio poderoso de intensificar a piedade dos fieis para com a Virgem, e assim conduzir as pessoas a Cristo por meio de Maria, Mãe dele e nossa.

7º. Harmonias entre a maternidade espiritual de Maria e suas outras grandezas


Já vimos como a maternidade espiritual de Maria decorre naturalmente da maternidade divina. Sobre esta última, dissemos que Maria, ao tornar-se Mãe do Filho de Deus, associou-se também ao Pai na geração do Filho e tornou-se Esposa do Espírito Santo. Sua maternidade espiritual lhe permite também realizar mais plenamente o alcance desses dois títulos. Ela é Associada ao Pai na geração de seu Filho, mas o Pai tem ainda outros filhos.

O Filho de Deus se encarnou para tornar-se "o primogênito entre muitos irmãos". Depois de Jesus, todos os que foram resgatados por Ele dizem "Pai nosso, que estais nos céus". Por uma sublime harmonia, a maternidade espiritual de Maria a torna igualmente associada ao Pai na geração de todos os seus outros filhos. Precisamente no momento em que o Filho nasce de Maria, nascem esses outros filhos do Pai celeste, pelo menos do ponto de vista do direito. E é também no momento em que cada alma recebe por Maria a graça santificante, a graça da adoção divina, que por isso mesmo se torna filha do Pai celeste e de Maria.

Maria é Esposa do Espírito Santo, que nos faz filhos de Deus. Ele gera em nós as disposições filiais, e pelo "Espírito de adoção bradamos: Aba, Pai". O Espírito Santo nos torna por direito filhos de Deus, ao tornar Maria fecunda. Também é assim quando, pela prece da distribuidora de todas as graças, Ele vem habitar em nós pela graça santificante. Podem-se assim aplicar a todos os filhos de Deus as palavras do Credo: "Foi concebido do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem". Veremos a seguir as harmonias que unem a maternidade espiritual de Maria aos seus outros privilégios. Como estes lhe foram conferidos diretamente para torná-la digna Mãe de Deus, tiveram também por efeito torná-la perfeita Mãe dos homens. A Imaculada Conceição, a virgindade e a Assunção tornaram Maria uma mãe mais admirável. Sua plenitude de graças e de santidade tornaram-na uma Mãe mais venerável. Seu título de Rainha do céu, uma Mãe mais auxiliadora.

Por enquanto, basta mencionarmos aqui essas relações.

Paralelamente às harmonias que há entre a maternidade espiritual de Maria e os seus vários privilégios, podem-se mencionar muitos outros que a ligam a outras verdades da fé. Para concluir, lembremos somente que essa maternidade se harmoniza perfeitamente com a própria característica da Religião que o Salvador nos revelou. Conduzidos por Jesus à vida sobrenatural, doravante devemos comportar-nos em relação ao Pai celeste como verdadeiros filhos do mais perfeito dos pais. Devemos tratar o Filho de Deus como verdadeiros irmãos tratam o filho mais velho, amando infinitamente aquele que, pelo preço de seu sangue, nos reconciliou com o Pai. Devemos amar-nos uns aos outros como filhos desse Pai e irmãos desse Filho, graças aos vínculos de caridade que o Espírito estabeleceu entre nós.

O que nos permite viver em família com Deus e com o próximo é sem dúvida a graça, mas a maternidade espiritual de Maria contribui para essa graça de modo maravilhoso, adaptando-a perfeitamente à nossa natureza. A família é constituída não somente pelo pai e os filhos, completa-se pela presença da mãe. Do mesmo modo, sobrenaturalmente nos sentimos plenamente em família, entendendo bem que o Pai do Verbo é nosso Pai, que Jesus é nosso irmão mais velho, que os homens são nossos irmãos, as mulheres nossas irmãs, ao mesmo tempo que percebemos ao lado do Pai a nossa Mãe celeste, e ao lado do Filho aquela da qual todos nascemos com Ele.

A maternidade espiritual nos faz compreender melhor outra verdade, da qual diversos trechos da Revelação constituem apenas expressões parciais: "Deus é amor". Como poderíamos deixar de crer no amor desse Deus, se Ele quis que sua própria Mãe fosse também nossa Mãe?

Capítulo, 3º. A MEDIAÇÃO UNIVERSAL


Chama-se mediador aquele que se interpõe entre duas pessoas em vista de as unir, quer se trate de obter uma reconciliação ou favores. Para preencher essa função, o mediador deve ser aceito pelas duas pessoas, e quanto mais próximo de ambas, mais sua mediação será eficaz. Na ordem sobrenatural, as duas pessoas a aproximar são Deus e o homem, que foram separados devido ao pecado.

Enquanto homem, Jesus é o mediador perfeito entre Deus e o homem, estando hipostaticamente unido a Deus e constituído por Ele chefe espiritual do gênero humano. Só Jesus é um mediador perfeito, porque só Ele podia merecer, com toda justiça, nossa reconciliação com Deus e as graças que o Deus reconciliado nos daria. São Paulo proclama que há apenas um Deus, e também que o único mediador entre Deus e os homens é Jesus Cristo, que se deu por nós como expiação. Ninguém pode estabelecer outro alicerce que não seja Jesus Cristo.

Posto este fundamento, os fieis atribuem a Maria, ao lado de Jesus, certa função de mediação. Sendo Mãe de Deus e mãe dos homens, parece também indicada para servir de ligação entre Deus e os homens. Mas a sua mediação, longe de reduzir a de Cristo, é ao contrário uma consequência e algo como uma expansão. Ela se exerce abaixo de Cristo e em união com Ele, de quem obtém toda sua eficácia.

O encargo de nosso grande Mediador é duplo: em primeiro lugar, merecer para todo o gênero humano a graça da reconciliação;  em seguida, aplicar essa graça a cada uma das unidades que compõem essa enorme coletividade. Em outros termos, de nos dar primeiramente a graça da reconciliação, adquirindo para nós um direito, em seguida efetivando-a. A primeira função, Jesus a consumou pela Redenção, a segunda pela distribuição da graça. Uma e outra são funções de mediação, porque para ambas Cristo se interpôs entre Deus e o homem, servindo-lhes de ligação.

O sentimento cristão associa Maria a seu Filho nessas duas funções. Portanto, da mesma forma que na mediação de Jesus, a de Maria é também dupla, exercendo-se no mistério da Redenção e na distribuição da graça. Portanto, age erradamente quem pretende reduzi-la à cooperação terrestre na missão de Jesus, como fazem alguns, e os que a reduzem à sua função celeste de distribuidora da graça, como querem outros. Trataremos do assunto sob ambos os aspectos.

1º. A co-operação de Maria na Redenção


A cooperação de Maria para a Redenção não foi ainda definida pela Igreja, e ainda é objeto de discussões entre certos teólogos, não geralmente quanto ao fato em si mesmo, mas quanto ao seu alcance exato. Antes de fornecer sobre o assunto o significado exato, temos de consultar o sentimento da Tradição sobre ele. Podemos desde já afirmar provisoriamente os pontos seguintes: O sentimento universal da Igreja atribui a Maria uma parte na obra de nossa salvação, ao lado do Redentor;  essa parte não se reduz ao fato físico de ter dado ao Filho de Deus a natureza humana, pela qual Ele pôde nos resgatar, mas implica certa união entre as vontades, os sofrimentos e a oblação de Jesus e Maria;  Deus acrescentou essa cooperação à obra de seu Filho e lhe atribuiu verdadeiro valor redentor;  de tal modo que podemos dizer que fomos salvos em primeiro lugar por Cristo, e secundariamente pela ação de Maria, de modo subordinado à ação de Cristo.

A noção de Redenção é uma das ideias fundamentais do Novo Testamento. Nosso Senhor começou a expô-la aos seus discípulos nos últimos meses de sua existência terrena. Como narra a Escritura, Pedro e João, e sem dúvida também os outros apóstolos, a ensinaram claramente aos primeiros fieis. São Paulo tornou-se particularmente o mestre dessa ideia, estudando-a sob todos os seus aspectos e pregando-a em todas as ocasiões. Isto porque os israelitas haviam esperado de fato um Messias redentor, mas tinham em mente uma redenção completamente diferente. Era necessário fazê-los compreender, como também aos pagãos, a verdadeira noção da Redenção que Cristo trouxe -- por meio da cruz, e que os livrava do pecado e da morte.

Nessa época não havia razões particulares para atrair a atenção dos fieis sobre a participação de Maria nessa obra. Importava fazer compreender logo de início o papel de Cristo, mas podia-se imaginar desde então a participação de Maria no mistério de nosso resgate. Através de São Lucas, sabia-se como Deus havia pedido a Maria sua cooperação para a obra da salvação, e também que Ela havia livremente consentido nessa cooperação, depois de ter examinado e refletido sobre o assunto.

Aprendia-se pela leitura da epístola aos hebreus que, desde o primeiro instante de sua Encarnação, Cristo se havia oferecido ao Pai como vítima de obediência e expiação, e que portanto o seio de Maria tinha sido o lugar em que a Redenção teve início, Via-se na cena da Apresentação de Jesus no Templo como a Virgem ouviu o profeta Simeão proclamar solenemente a missão redentora de seu Filho e a participação que era chamada a oferecer. Lia-se em São João, e sem dúvida se havia aprendido pela tradição oral antes de ser escrito o quarto evangelho, como a Virgem se havia associado ao seu Filho agonizante na cruz.

Finalmente, ouvia-se o doutor da Redenção expor o plano de Deus para o nosso resgate, e explicar que, tendo a desobediência do primeiro Adão perdido a todos nós, a obediência do novo Adão nos salvara. Não havia necessidade de muito esforço de reflexão para se passar do papel do antigo Adão ao da antiga Eva, e do papel do novo Adão ao da nova Eva.

No início dos Livros Sagrados, uma profecia bem conhecida parecia convidar os fieis a estabelecer esse paralelo. Na cena que descreve o castigo de nossos primeiros pais estava contida a previsão da vingança divina: "Deus disse à serpente: Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Ela te esmagará a cabeça". Essa profecia mostrava a Mãe e o Filho intimamente associados. Para os cristãos desse tempo, habituados a ver no Antigo Testamento o prenúncio ou figura do novo, não era difícil concluir que Cristo trazia a vitória sobre a serpente por meio de sua Paixão, e que nessa vitória Maria desempenhara ao seu lado um papel providencial.

Os cristãos chegaram logo a essa conclusão, percebendo o papel de Maria na Redenção, e o afirmaram com uma nitidez que não se esperaria nessa época. São Justino, em meados do século 2, opõe uma Eva incrédula e desobediente, que gera a desobediência e a morte, a Maria Fiel e obediente, Mãe daquele que livra da morte e do pecado. Mas é sobretudo Santo Irineu, no fim do século 2, que analisa a ação de Maria na nossa salvação e a expõe de forma que ainda não foi ultrapassada. Ele se empenha em ressaltar o paralelismo entre Adão e Jesus, e mostra como um paralelismo semelhante exigia a Virgem Maria como reparadora e advogada de Eva, pelo que ela havia feito: "Como Eva, pela sua desobediência, foi para si mesma e para todo o gênero humano uma causa de morte, do mesmo modo Maria, por sua obediência, foi causa de salvação para si mesma e para todo o gênero humano. O que Eva prendera devido à sua incredulidade, a Virgem Maria libertou por sua fé.

Da mesma forma que o gênero humano foi condenado à morte por uma virgem, foi salvo por outra Virgem".

Esse paralelismo entre Eva e Maria, que correspondia perfeitamente à doutrina de São Paulo sobre a salvação, foi reeditado por quase toda a patrística. Inventaram-se inúmeros títulos novos, por vezes estranhos, para exprimir a participação da Virgem na nossa Redenção: "Causa de nossa salvação, triunfadora dos demônios, nosso medicamento, nosso único remédio", etc. Mais do que dedicar-se a aprofundar ainda mais a doutrina, o esforço nos séculos seguintes se porá em tirar as conclusões práticas relacionadas com a invocação e a devoção à Mãe de Deus.

Os Padres da Igreja haviam insistido sobretudo na obra redentora de Maria na Encarnação. Pouco a pouco, especialmente a partir das Cruzadas, a piedade dos fieis se apoiou principalmente na Virgem ao pé da cruz. Gostava-se de participar dessa dor desmedida, e enquanto procuravam compreender seu significado profundo, cada vez mais claramente ele se manifestava na união de Maria com o Redentor.

O estudo teórico do papel de Maria na obra da Redenção avançou sobretudo nos últimos cinquenta anos, recebendo maior precisão teológica. A própria oposição que essa doutrina encontrou em certos meios serviu para expor com luz mais resplandecente a parte de Maria no nosso resgate.

No século 20, essa piedosa doutrina devia dar outro passo adiante, passando do campo da piedade e da teologia aos documentos oficiais da Santa Sé. Na encíclica Ad diem illum, São Pio X ensina que a Virgem, "associada por Cristo à obra da salvação humana, mereceu para nós de congruo o que Cristo nos mereceu de condigno". Bento XV afirmou em 1918: "Com seu Filho sofredor e agonizante, Maria padeceu o sofrimento e quase a morte. Abdicou os seus direitos maternos sobre seu Filho a fim de obter a salvação dos homens. E para aplacar a justiça divina tanto quanto lhe era possível, imolou seu Filho, de tal modo que se pode afirmar com razão que, juntamente com Cristo, Ela resgatou todo o gênero humano". Pio XI, pouco após sua elevação à cátedra de São Pedro, escreveu: "A Virgem das dores participou com Jesus Cristo na obra da Redenção".

Alguns anos mais tarde, por ocasião do Ano Santo destinado a celebrar o XIII centenário do mistério da Redenção,Que Ano Santo é esse? 1933? Seria o XIX centenário?declarou: "A augusta Virgem concebida sem pecado foi escolhida para Mãe de Cristo a fim de tornar-se participante da Redenção do gênero humano". Na sua encíclica sobre o Corpo Místico de Cristo, Pio XII retomou o argumento de Bento XV: "Foi Ela que, isenta de qualquer falta pessoal ou hereditária, sempre estreitamente unida a seu Filho, o apresentou sobre o Calvário ao Pai eterno, associando o holocausto dos seus direitos e de seu amor de Mãe, como uma nova Eva, para todos os filhos de Adão que carregam a mancha do pecado original".

2º. Como Maria colaborou na Redenção


De acordo com os dados da Revelação interpretada pela Tradição, em que consiste exatamente a cooperação de Maria na obra de nossa Redenção?

O título de Nova Eva, dado tão universalmente e desde a mais alta antiguidade à Virgem, marca bem exatamente seu papel na nossa salvação, por comparação com o papel de Eva na nossa condenação. Eva não foi a causa direta da nossa condenação, pois de Adão dependia nossa salvação ou ruína. Mesmo se Eva tivesse sido fiel, o pecado de Adão nos teria perdido;  e se Adão não tivesse desobedecido, a falta de Eva não nos teria prejudicado. Poderíamos no entanto afirmar que Eva não cooperou para a nossa ruína? O fato concreto é que ela foi a ocasião e a instigadora. Da mesma forma, não foi Maria que diretamente nos salvou, foi Nosso Senhor que operou nossa Redenção. Ele poderia ter conseguido isso sem Maria, e Maria sozinha não poderia fazer nada pela nossa salvação. No entanto Ela foi o instrumento de nossa Redenção devido à sua cooperação consciente e livre com os desígnios de Deus.

Se a Escritura pode dizer que "pela mulher o pecado começou, e por meio dela todos morremos", pode-se também dizer que pela Mulher se iniciou a libertação do pecado, e por ela todos passamos a viver. Uma diferença entre o caso de Eva e o de Maria é que Eva só procurou diretamente a sua satisfação, e não nossa ruína -- pode-se mesmo dizer que nós fomos prejudicamos apesar dela -- ao passo que Maria cooperou consciente e livremente para a nossa Redenção.

Examinando como se deu em si mesma essa cooperação de Maria, ela parece ter sido tríplice, ou se apresenta em tríplice aspecto embora seja única:

1º. no consentimento da Virgem à proposta divina no momento da Anunciação;

2º. na identificação da sua vontade com os desejos íntimos do Redentor;

3º. na união dos seus sofrimentos com os sofrimentos de Cristo.

Desde o início houve o consentimento da Virgem com a proposta divina. No momento da Anunciação Gabriel lhe revelou que Ela viria a ser Mãe do Messias-Deus. Todos os israelitas sabiam e repetiam que o Messias seria o redentor do seu povo. Maria sabia-o melhor do que muitos dos seus compatriotas, e melhor do que eles havia estudado os profetas, compreendendo o papel redentor daquele que agora pedia para nascer dela. Afinal, o próprio nome desse Messias-Deus anunciava claramente seu papel, devendo chamar-se Jesus, que significa salvador. Foi bem isso o que Ela entendeu, e alguns dias mais tarde exaltaria a misericórdia de Deus em relação aos homens, em particular ao seu povo, e encarnando-se nela esse Deus o tomava sob sua proteção de acordo com suas antigas promessas.

Consentindo com a proposta divina, Ela consentia portanto em cooperar com a nossa redenção. Não é que se tornaria mãe de um Filho de Deus, e só mais tarde este se tornaria salvador do mundo, como aconteceu a Raquel tornar-se mãe de alguém que no futuro se tornaria salvador do Egito. Jesus nasceria dela com a finalidade específica de tornar-se o Redentor, ou melhor, para começar desde então nela sua obra redentora. São Paulo ensina: "Vindo ao mundo, Cristo disse: (a seu Pai) Não quisestes nem sacrifício nem oblação, porém me destes um corpo. Não vos satisfizeram holocausto e sacrifícios pelo pecado, então eu disse (como está escrito no livro a meu respeito) Eis-me aqui, ó Deus, para fazer a vossa vontade". Não há dúvida de que foi pela efusão de seu sangue que Cristo nos resgatou, mas a ação de Cristo desde o primeiro momento de sua existência possuía já um valor redentor infinito.

Não se pode dividir a vida do Salvador em uma série de atos separados, pois toda a sua existência constituiu um longo ato de redenção, cujo ponto culminante foi sua Paixão e morte. O preço desse ato, que é o nosso resgate, só foi completado nesse último momento, porém o seu mérito começara desde o início.

Desse modo, a partir do momento em que pronunciou seu fiat, Maria já era de fato a colaboradora de Cristo na obra de nossa redenção, e mereceria esse título ainda que tivesse renunciado a essa missão após o nascimento do seu Filho. O que teria sido feito de nós, se Ela tivesse recusado essa colaboração? Deus poderia evidentemente salvar-nos por outros meios incontáveis, mas aprouve a Ele tornar dependente da cooperação de Maria a atual economia de nossa salvação, que sem dúvida é aos seus olhos a mais perfeita.

Pelo seu fiat, Maria consentia em fornecer a vítima cuja imolação nos resgataria. Mas sua ação na obra de nossa salvação não devia limitar-se a essa ajuda material. Muito mais do que pelo seu corpo, a Virgem tornou-se Mãe de Deus pela sua alma, e sua cooperação com o Redentor se daria mais pelo espírito do que pela carne. De acordo com as leis da biologia, o aspecto físico de Jesus tinha a semelhança mais perfeita com o de Maria. E a alma de Maria tinha, por consonância com o amor divino, a semelhança mais perfeita com a de Jesus. Ela pensava, sentia, e acima de tudo amava como Jesus. Como Jesus só desejava cumprir a obra da Redenção, para a qual o Pai o havia enviado ao mundo, Maria também só tinha como objetivo manter-se unida a Ele em vista dessa mesma Redenção.

A união dos seus desejos com os do Salvador começou ao mesmo tempo que sua preparação para a maternidade divina, pois só se tornaria Mãe de Deus para ser a Mãe do Redentor. A partir do momento em que praticou seu primeiro ato de amor -- sem dúvida, já no momento da sua Imaculada Conceição -- ofereceu-se para a missão à qual Deus a destinava, e esse oferecimento era implicitamente renovado a cada novo ato de amor. Já em certos momentos dos seus primeiros anos de vida, a consagração total à obra que a misteriosa vontade de Deus lhe confiaria era acompanhada de uma intensidade de vontade inteiramente particular. Por exemplo, quando foi apresentada no Templo, quando fez voto explícito de virgindade, quando se casou com São José.

Gabriel lhe revelou qual seria essa obra. A partir desse momento a Virgem entrevia as consequências consoladoras e terríveis que seu consentimento lhe acarretaria, e se deu sem reservas por meio de seu fiat salvador. Com não menor generosidade, renovava-o a cada instante de sua vida, preparando a vítima para o espantoso sacrifício. Algumas vezes Deus exigia que renovasse esse fiat de modo particularmente forte e solene, como na Apresentação de Jesus no Tempo, na partida de Jesus para o início da sua carreira pública, sobretudo na hora do sacrifício supremo. O preço de nosso resgate foi a Paixão e Morte do Salvador, e nesse ato Maria devia se identificar com seu Filho, levando assim ao extremo limite a sua colaboração com a obra do Redentor.

Não precisamos analisar detalhadamente o que deve ter sido a dor de Maria durante a Paixão. A piedade dos fieis se compraz em admirar em muda contemplação a imagem da Mater dolorosa, mas seu martírio havia começado muitos anos antes da subida ao Calvário. Antes mesmo da visita do anjo Gabriel, deve ter sofrido como jamais ser humano sofreu. Sobre estes sofrimentos, Deus nada nos revelou diretamente, mas devemos entender que ultrapassaram o que se possa imaginar. Sabe-se pela vida de muitos santos quanto eles lamentaram e sofreram ao ver que o Amor não mais era amado, quantos eram os pecados que se cometiam, quantas eram as almas que se perdiam. Analogamente, Maria deve ter sofrido imensamente desde os seus primeiros anos de vida, diante dos crimes de tantos dos seus compatriotas e de tantos idólatras.

Entretanto esses sofrimentos eram leves em vista dos que a esperavam após a Encarnação: nas hesitações de São José, no Nascimento em Belém, diante de Simeão no Templo, na fuga para o Egito, na perda de Jesus no Templo, durante a vida oculta de Cristo;  sobretudo durante sua vida pública, diante das notícias cada vez mais ameaçadoras, das contestações, dos ódios, das conspirações que Ele suscitava.

Afinal veio a hora do Calvário. A Virgem que se ocultara durante os triunfos de seu Filho achava-se ao pé da cruz. Não se incluía nos desígnios de Deus que Ela derramasse seu sangue como o Redentor, mas todos os sofrimentos físicos de seu Filho dilaceravam seu coração materno. E os sofrimentos da alma de Jesus, os mais terríveis de todos, deviam repercutir diretamente na alma de Maria. Em dois momentos da Paixão, Jesus manifestou a sua intolerável agonia interior. No Getsêmani: "Minha alma está triste até a morte. Pai, afastai de mim este cálice!". No alto da cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?". Qual foi a participação da cooperadora na sua agonia? Ela sofria tanto mais quanto mais amava, pois sofria porque amava.

E esse amor era maior que o de todos os anjos e todos os santos reunidos... Todos esses sofrimentos, Ela os uniu aos de seu Filho, e com Ele ofereceu-os ao Pai para reparar sua glória e redimir os homens.

Mais do que isso, Ela ofereceu ao Pai a vida de seu Filho, e a sua própria vida com a dele. Bento XV e Pio XII afirmam: "Ela abdicou os seus direitos maternos sobre seu Filho". Não se devem entender direitos maternos como sendo jurídicos, pois Jesus tinha maioridade;  e também não se tratava de direitos sobre suas atividades, pois Jesus devia, por sua missão, ocupar-se das coisas de seu Pai. Eram os direitos que a natureza concede a todas as mães: o filho é a substância de sua mãe;  sua vida é o prolongamento da vida da mãe;  as alegrias e sofrimentos são as de sua mãe;  ultrajar o filho é ultrajar a mãe;  fazer o filho sofrer é fazer sofrer a mãe;  suprimir a vida do filho é destruir a razão de ser da mãe.

Isto é verdade no que diz respeito a todas as mães, e muitíssimo mais à Mãe de Jesus. Sua substância só tinha sido transmitida a Ele;  Ela havia sido criada apenas para Ele;  a honra, a felicidade, a vida de seu Filho eram-lhe mais caras do que sua própria honra e felicidade;  fazê-lo morrer, era mais do se o fizessem a Ela. Maria fez o holocausto de tudo isso para a glória do Pai e para a nossa salvação. Duas vidas, dois seres em uma única oblação, pois os desígnios de Deus e a sua própria vontade eram um só com os dele.

3º. Valor redentor da cooperação de Maria com a obra de Jesus


Essa tríplice colaboração de Maria na obra de seu Filho não basta para que nela o seu papel tenha sido de mediadora. Tratava-se de reconciliar Deus com o homem, portanto é preciso ainda que Deus a tenha admitido a isso. Ele aceitou para esse efeito o fiat da Anunciação, o que é uma consequência da própria natureza das coisas, posto que fizera depender disso a Encarnação do Redentor. Mas tratava-se aí de uma cooperação longínqua para a nossa redenção. Terá Ele aceito a união dos sofrimentos e intenções de Maria com os de Jesus, tratando-se de uma cooperação direta? Ou terá sido essa união apenas um ato heroico de amor da parte de Maria, muito meritório por si mesmo, porém sem mérito para nós?

O sentimento dos fieis é que Deus aceitou essa união moral de Maria com o Redentor como uma verdadeira causa de nossa salvação. Esse sentimento se baseia inicialmente na conduta geral de Deus quando se utiliza de cooperadores humanos. De acordo com Santo Agostinho, "Deus nos criou sem nós, mas não quer salvar-nos sem nós". Cada homem deve não apenas cooperar com a graça do Redentor em vista de sua salvação pessoal, mas Deus decidiu ainda, como regra geral, não salvar os homens sem a cooperação de outros homens. Por isso, quando pregava na terra e se sacrificava pessoalmente, Jesus quis associar a si os apóstolos, para o ajudarem na sua missão. Recomendou-lhes que orassem, pedindo ao Mestre o envio de operários para a messe, e fundou uma Igreja para perpetuar sua obra.

Podemos também constatar em todos os períodos da história da Igreja que o seu sangue redentor, embora infinitamente eficaz por si mesmo, só realiza sua eficácia na medida em que as almas apostólicas pregam, rezam e sofrem.

Foi à luz dessa doutrina que São Paulo se esforçou para "completar na sua própria carne o que faltava nos sofrimentos de Cristo para o Corpo de Cristo, que é a Igreja". Inspirados nessa mesma doutrina, tantas almas nas Ordens contemplativas e penitentes rezam e se imolam para a salvação do mundo. Constitui honra infinita para elas estarem desse modo associadas à mais nobre das obras de Deus, posto que dar a um ser humano a vida divina é mais sublime do que semear no espaço milhares de mundos.

De acordo com o sentimento cristão, é para essa honra que Deus quis chamar sua Mãe a colaborar, em vista da nossa redenção, unindo suas intenções, suas preces e seu sofrimento com os de seu Filho. Mas enquanto os servos de Cristo só o ajudam na aplicação da Redenção às almas, sua Mãe o assiste na própria Redenção.

Uma consideração adequada para confirmar nos fieis o conceito de co-redentora é a função já mencionada de nova Eva naquilo que se tem denominado plano do revide.

São Paulo se dedica a mostrar a obra de Cristo como o inverso da obra de Adão. Se o pecado e a morte entraram no mundo por Adão, a vitória sobre o pecado e a morte nos foi conquistada por Cristo;  se Adão nos perdeu por sua desobediência, Cristo nos salvou por sua obediência. Esta doutrina de São Paulo conduziu em geral o pensamento cristão a considerar o plano divino de nossa salvação como a réplica da obra de nossa perda. Não somente vemos Cristo, o novo Adão, anteposto ao primeiro Adão, mas ainda a árvore da cruz diante da ciência do bem e do mal;  diante do anjo tentador, o anjo da Anunciação;  diante de Eva incrédula e desobediente, Maria fiel e submissa.

A primeira Eva colaborou para a nossa ruína, não tanto fisicamente, mas moralmente. Deus terá desejado que a cooperação da nova Eva fosse menos uma cooperação física do que o concurso das disposições de sua alma. E sua cooperação para a nossa salvação terá sido mais perfeita que a cooperação de Eva para a nossa ruína, porque "onde o pecado foi abundante, é preciso que a graça seja superabundante".

Esse sentimento dos fiéis, segundo o qual Deus aceitou a união moral entre Maria e o Redentor como uma verdadeira causa de nossa salvação, está implicitamente contido no papel importante atribuído por eles à co-redentora. Os últimos Papas o têm explicitamente confirmado, como se pode ver nos textos seguintes. Leão XIII: "Maria não somente presenciou os mistérios de nossa Redenção, mas neles tomou parte -- non adfuit tantum sed interfuit". São Pio X: "Por meio dessa união de sofrimentos e de vontades entre Maria e Cristo, Ela mereceu dignamente tornar-se a reparadora do mundo perdido".

Bento XV: "Com seu filho sofredor e agonizante, Maria suportou o sofrimento e quase a morte, a fim de conseguir a salvação dos homens". Pio XI declara que a Virgem "foi escolhida para Mãe de Cristo a fim de tornar-se participante da Redenção do gênero humano", e em seguida suplica a Ela: "Conservai em nós e aumentai sem cessar os preciosos frutos da Redenção e da vossa compaixão". (Leão XIII, Parta humano generi. Pio X, Ad diem illum. Bento XV, Inter sodalicia. Pio XI, Auspicatus, Osserv, Romano, 29/04/1935.)

Resta dizer uma palavra sobre uma dificuldade que impede certas pessoas de dar adesão firme à doutrina aqui exposta: Se a própria Virgem precisou receber a graça da Redenção, como pôde colaborar com Cristo para que essa graça fosse adquirida? Supondo-se que essa dificuldade devesse ficar sem resposta satisfatória, isso não seria motivo para rejeitar uma doutrina comumente aceita pelos fiéis e ensinada expressamente pelos Papas. Acaso deveríamos rejeitar a doutrina da presença real de Cristo na Eucaristia, devido à dificuldade para entendermos como Ele possa estar inteiro em cada uma das hóstias consagradas?

No caso que estamos estudando, a dificuldade é apenas aparente. A objeção teria força se a graça de Redenção só tivesse sido aplicada a Maria no momento em que Ela a mereceu. Porém, como o declara a Igreja no Ofício da Imaculada Conceição, Maria foi preservada de todo pecado, na previsão da morte de seu Filho, ex morte filii prævisa. Tal preservação lhe foi concedida como crédito, por assim dizer, pois Deus tinha certeza de que seu Filho pagaria superabundantemente o preço da Redenção. Desse modo, no momento da Encarnação do Verbo aquela que era cheia de graça encontrava-se nas condições perfeitas para cooperar com Cristo na reparação da glória divina e na Redenção do gênero humano.

Mas alguém ainda insistirá: Pelo menos se pode dizer então que Maria não pôde cooperar com Cristo no que se refere à sua própria redenção. Admitindo que seja assim, permanece de pé que Ela pôde cooperar com Cristo na nossa redenção, e é apenas isso que afirma o sentimento geral da Igreja. Nada se afirma -- e também nada se nega -- sobre a ação de Maria na sua própria redenção. (Terá sido impossível para Ela cooperar na sua própria redenção? Se se tratasse de pagar o preço necessário à sua redenção, ou ao menos uma parte desse preço, de fato a resposta seria negativa. Mas o preço necessário foi pago por Cristo, e de modo superabundante. Por que não teria Ela podido pagar por si mesma um suplemento de resgate, da mesma forma que veio a pagar por nós? Mas este não é o local adequado para se discutir o assunto.)

Se Deus quis aceitar a colaboração de Maria na obra de seu Filho, qual pode ter sido o gênero de eficácia de sua colaboração? A obra da Redenção apresenta dois aspectos: O primeiro se refere a Deus, e o segundo aos homens.

4º. Eficácia da colaboração de Maria na obra do Redentor


O primeiro aspecto da Redenção é a reparação oferecida a Deus, ofendido devido ao pecado. Nós corremos o risco de lançar apenas um olhar bastante distraído sobre essa tarefa de Cristo, porque nosso egoísmo só se preocupa com nossos interesses pessoais. No entanto, a primeira coisa que Jesus proclamou no momento de sua encarnação foi o seu desejo de oferecer ao Pai uma homenagem de reparação capaz de agradá-lo. "Ao entrar no mundo, Cristo diz: Não quisestes sacrifícios nem oblações, mas formastes-me um corpo;  não vos agradaram holocaustos nem vítimas expiatórias. Então eu disse: Eis-me aqui para fazer, ó Deus, a vossa vontade".

A grandeza de um insulto se mede antes de tudo pela grandeza da pessoa insultada. Uma bofetada aplicada por um operário em seu filho que mentiu, a um companheiro com o qual discutimos, ao patrão que fez uma repreensão, ao juiz que efetuou uma condenação, ao rei que recusou a remissão de uma pena, constitui em todos os casos um ultraje, mas o grau varia evidentemente de acordo com a dignidade de quem foi ultrajado. Sendo o pecado um insulto a Deus, por isso mesmo é de certa forma infinito, e somente uma reparação de valor infinito era capaz de apagá-lo adequadamente. Uma reparação assim só poderia ser oferecida por um ser cujas ações têm um valor infinito, que é o Filho de Deus feito homem. Em estrita justiça, Maria Santíssima não poderia reparar a infinita ofensa de um único pecado.

Poder-se-ia perguntar se a colaboração da Virgem com a obra de seu Filho não teria sido inútil, pois a necessária reparação infinita tinha sido feita por Ele. A resposta é que de nenhum modo ela pode ser encarada assim. Suponhamos, por exemplo, que um súdito do rei São Luís IX ofendeu gravemente o rei de Castela. Nem o culpado nem nenhum dos seus amigos estaria à altura de reparar adequadamente tal ofensa, nem mesmo a própria rainha-mãe Branca de Castela. Só o rei São Luís poderia oferecer ao seu primo de Castela uma reparação adequada. Porém, supondo-se que a rainha tenha desejado unir à reparação de São Luís o seu pedido pessoal de perdão, ninguém poderia acoimá-lo de reparação inútil. Bastava de fato a reparação apresentada por São Luís, mas quem não sente que essa reparação oferecida pela rainha, mesmo não sendo necessária, acrescentava aos olhos das pessoas uma glória para o rei de Castela, inclinando-o a perdoar de bom grado o ofensor?

Do mesmo modo, a reparação oferecida a Deus por Maria, pelos pecados de seus filhos, era insuficiente por si mesma para obter-lhes o perdão. Mas sendo oferecida juntamente com a de seu Filho, dava glória a Deus e o inclinava a esquecer mais inteiramente aqueles pecados. Além das razões que são evidentes no exemplo citado, há outras ainda mais fortes, que passaremos a analisar.

Primeiramente, devemos ter em vista a dignidade quase infinita da Mãe de Deus e o amor inconcebível que lhe votava a Santíssima Trindade. Além disso, devido à natureza intrínseca da reparação, Ela era dotada de valor incomensurável, quase infinito sob certo aspecto. Maria não oferecia a Deus apenas um pedido de perdão honroso, em dado momento de sua vida, mas também toda a sua vida de sofrimentos, de identificação com os desígnios de seu Filho. Como veremos a propósito da santidade de Maria, sua capacidade de amar ultrapassa a de todos os homens e anjos reunidos, e por consequência ultrapassa também a capacidade de ódio de todos os homens. Seu amor é maior que a maldade dos nossos pecados, e em cada ato de reparação oferecido por Ela havia mais amor do que a malícia existente em todos os pecados dos homens. Quão numerosos terão sido esses atos durante toda sua vida?

Segundo Bento XV e Pio XII, mais do que toda uma vida de amor e sofrimentos, Maria oferecia seu Filho, "abdicando seus direitos maternos e imolando-o, tanto quanto dependia dela, para aplacar a divina justiça".

Há ainda outro aspecto a considerar. Se tivesse feito essa oblação por sua própria iniciativa, e Deus a tivesse aceito, seu valor seria incomparável, como dissemos. Mas devemos notar que Maria tinha ciência de que Deus a chamara para ser associada do Redentor, e de todo coração concordou com os desígnios divinos. Desde então sua oblação era uma só com a de Jesus, e assim participava da sua eficácia. Jesus apresentava ao Pai a sua própria oblação e a de Maria, e Maria apresentava ao Pai a oblação de Jesus e a dela. Considerando-se as pessoas que a faziam, o valor era infinito no que se refere a Jesus e finito na de Maria, mas quanto ao próprio objeto, a oblação era a mesma de um lado e do outro.

Assim, durante toda a eternidade, diante dos anjos, homens e demônios, haverá mais glória para a Santíssima Trindade pelo fato de a reparação oferecida por Cristo pelos pecados dos homens estar associada à que fez Maria.

5º. Aquisição da graça para os homens


O segundo aspecto da obra da Redenção é que por meio dela os homens foram restabelecidos na condição de filhos de Deus, correspondendo à graça da salvação. Qual foi a eficácia da colaboração de Maria na aquisição dessa graça?

Duas condições devem ser preenchidas, para que se possa adquirir qualquer coisa:

1º. Que o objeto esteja à venda;

2º. Que se pague o preço estipulado. É evidente que, se falta uma das duas condições, é impossível efetivar a compra. Mesmo que se ofereça um pagamento muito superior ao valor real, ou então quando não se dispõe do necessário para pagar o preço, a aquisição é impossível.

O preenchimento dessas duas condições, especialmente da segunda, pode basear-se em um triplo fundamento:

1º. Fundamento de justiça absoluta, baseado na equivalência entre o valor do objeto e o preço pago. Quando o bem a ser adquirido tem determinado valor, e o interessado paga esse valor, a aquisição se faz a título de justiça absoluta.

2º. Fundamento de justiça relativa, baseado em um compromisso. Mesmo que o interessado não pague o valor real do bem, pode adquiri-lo quando o seu proprietário aceita o pagamento de um valor menor. Neste caso o comprador adquire um verdadeiro direito de justiça, pois paga o preço pedido, porém não se trata de justiça absoluta, pois o valor pago não equivale ao valor real.

3º. Fundamento de conveniência, quando o preço a pagar não corresponde ao valor real em razão de amizade, retribuição ou qualquer outro motivo. Neste caso não há justiça propriamente dita, simplesmente conveniência.

Sendo a graça uma participação na vida divina, Nosso Senhor podia adquiri-la para nós por justiça absoluta. Ele detinha o direito estrito de fazer tal aquisição, pois o decreto da Encarnação estipulava que o Filho se tornaria homem para salvar os homens -- Qui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de cœlis, como afirmamos no Credo. Podia ao mesmo tempo oferecer um preço não só equivalente, mas muito superior às graças que queria adquirir para nós. A graça é uma participação na vida divina, tem portanto algo de infinito, mas a participação dos homens nesse bem é limitada por sua capacidade, que não é infinita. O mérito do Redentor não tinha essa limitação, pois sendo de uma pessoa divina, era ilimitado.

Nenhum homem pode merecer os bens sobrenaturais em justiça absoluta, porque o finito não pode merecer o infinito. No entanto, uma vez conquistado o estado de graça pelos méritos de Jesus Cristo, o homem preenche de certo modo as duas condições necessárias para merecer por si mesmo a vida eterna. Ele tem o direito de merecer, resultante de um mandato -- uma promessa implícita -- de Deus, que o convidou à vida eterna, e com isso se comprometeu a concedê-la se o homem evitar o mal e fizer o bem. E pode também oferecer um preço, não propriamente equivalente, mas até certo ponto proporcional às graças que recebe pela virtude do Espírito Santo que habita nele. Esse mérito é apenas de justiça relativa, vinculado a uma livre disposição divina.

Nossos méritos não podem beneficiar aos outros em razão de justiça, pois essa função social universal não nos foi conferida por meio da concessão da graça, ao contrário do que se passava com Adão antes da queda. Entretanto, como somos irmãos uns dos outros em Adão, e sobretudo em Cristo, devemos interessar-nos pela salvação de nossos irmãos. Podemos assim merecer até certo ponto as graças de santificação e salvação para os outros, mas trata-se de simples mérito de conveniência: "Como o homem em estado de graça cumpre a vontade de Deus, convém que Deus realize a vontade do homem em relação à salvação de outro, de acordo com a proporção da amizade divina".

O que se pode afirmar quanto aos méritos da Santíssima Virgem na aquisição de graças para nós? Pode fazê-lo por direito de justiça absoluta? Respondemos que isto não lhe é possível, pois esse privilégio pertence a Cristo em virtude da união hipostática. Mas equivale isto a afirmar que, da mesma forma que nós, Ela só pode merecer por conveniência? Ou será que Ela pode merecer para nós de acordo com a justiça relativa, que cada um de nós tem em relação a si mesmo? Esta última hipótese é a que parece exprimir a verdade. E quem lhe conferiu esse direito? O próprio Deus, dispondo que Ela se tornasse nossa Mãe.

Deus quis tornar Maria nossa Mãe segundo a graça, e só é nossa Mãe porque nos faz viver da graça. Nossas mães segundo a carne devem ocupar-se da nossa vida sobrenatural, mas mesmo que negligenciem esse dever, permanecem ainda nossas mães, pelo fato de nos terem dado a vida natural. Maria, ao contrário, foi chamada a ser nossa Mãe espiritual, e só é nossa mãe se nos dá a vida da graça e a faz crescer em nós. Sendo essa a essência da sua maternidade, ela cessaria de ser nossa Mãe se lhe fosse suprimido o poder de nos conceder a graça. Ora, tendo sido realmente chamada a ser nossa Mãe, é necessariamente chamada a nos obter a graça, e o faz não em virtude de simples conveniência, mas por motivo de uma disposição divina.

A vocação de Maria para a maternidade da graça lhe confere uma função social análoga à de Cristo. A graça social de Cristo, Chefe (Cabeça, Caput) da humanidade, é chamada graça capital, e a graça social de Maria, Mãe dos vivos, será uma graça materna.

Analisando as diferenças entre o mérito da co-redentora e os do Redentor, vemos que Maria nos mereceu a graça do perdão por mérito de conveniência, e Jesus no-lo obteve por estrita justiça. Maria nos mereceu a vida sobrenatural e as graças de santificação e salvação por mérito de justiça relativa, e Jesus nos mereceu essas graças por mérito de justiça absoluta.

Se quisermos contrapor os dois méritos de modo abrangente, sem entrar nas distinções, como o faz São Pio X no texto acima citado, devemos dizer com ele que Maria "nos mereceu de congruo (por mérito de conveniência) o que Jesus nos mereceu de condigno". (por mérito de justiça absoluta) Afirmar sem matizes que Maria nos mereceu todas as graças de condigno seria usar uma fórmula parcialmente falsa, como também parcialmente perigosa: Falsa no sentido de que Maria nos teria obtido a graça do perdão de condigno;  perigosa porque pareceria ter-nos obtido as graças de vida sobrenatural por méritos equivalentes aos de Jesus, ao passo que de fato ela os mereceu por mérito de justiça relativa, e Jesus por mérito de justiça absoluta.

Por outro lado, a fórmula não matizada é exata no sentido de que Maria só nos obteve de congruo a graça do perdão, e que o mérito de justiça relativa pelo qual nos obteve as graças de vida sobrenatural repousa sobre uma graciosa disposição de Deus, que livremente a convidou a ser nossa Mãe. Repousa em última análise sobre uma conveniência, pois convinha sem ser estritamente necessário que a Mãe de Cristo fosse também nossa Mãe.

Se queremos exprimir a natureza do mérito de Maria por uma fórmula mais matizada, devemos dizer que nos obteve por mérito de conveniência a graça do nosso perdão;  por mérito de justiça relativa, nosso restabelecimento na vida sobrenatural e as graças de santificação e salvação;  ao passo que Jesus nos obteve todas essas graças por mérito de justiça absoluta.

6º. Importância excepcional de Maria como co-redentora


Seria difícil exagerar a importância da missão que fez de Maria a cooperadora de Jesus na redenção do gênero humano. Compreende-se facilmente a importância excepcional do privilégio da maternidade divina -- que eleva a Virgem "às fronteiras da divindade" -- e esta é a razão de ser de todas suas outras grandezas. Mas pode-se ser tentado a considerar equivalentes todas as outras grandezas, por serem elas consequências da maternidade divina. Sem dúvida, a função de Maria no mistério de nossa Redenção é também uma dessas consequências. Muitos nem veem nela uma razão de ser, julgando-a inútil ao lado da mediação de Cristo, nosso único Redentor necessário e suficiente. No entanto, após a maternidade divina e a maternidade espiritual, ela ocupa um papel de importância especial entre todas as prerrogativas da Virgem.

Já vimos que Maria apresentou à Santíssima Trindade uma reparação incomensurável, infinita em certo sentido, e como consequência dela uma glória incomparável diante dos anjos, dos homens e dos demônios. Confere também a Deus essas homenagens de afeto e confiança filiais que a devoção a Ela inspira aos homens em relação a Deus. O fato concreto é que a devoção a Maria só é tão eficaz devido à sua missão co-redentora, que torna Maria semelhante ao Filho de Deus feito homem. Não somente no que se refere a uma ou outra das prerrogativas pessoais de Cristo, mas ainda quanto à sua própria missão, quanto à grande obra em vista da qual "o Verbo se fez carne e habitou entre nós".

Esta função foi também para Maria a causa de uma consolação inefável. Poder participar na terrível tarefa de seu Filho;  poder trabalhar, sofrer e se imolar com Ele pelos seus objetivos;  poder contribuir para a eficácia dessa missão -- tudo isso lhe trouxe imensa alegria, que se estenderá até o fim dos tempos, pois essa colaboração lhe possibilitará ajudar a converter os pecadores, a santificar os justos, a multiplicar o número dos filhos de Deus na terra e dos bem-aventurados no céu.

A associação de Maria com o Redentor tem ainda outra importância para Maria, pois foi essa a condição para realizar suas outras funções sociais: Sua maternidade espiritual, pois só é nossa Mãe porque nos obteve a graça da vida sobrenatural;  sua função de distribuidora de todas as graças, pois tal distribuição resulta de tê-las adquirido;  sua missão apostólica no mundo, que é apenas a continuação de sua missão redentora;  sua realeza, pois um dos grandes merecimentos para essa realeza é o fato de tê-lo conquistado pela co-redenção.

No que se refere a nós mesmos, a colaboração de Maria para a nossa salvação confere sentido próprio à nossa devoção a Ela. Sem essa colaboração, Maria não seria verdadeiramente mãe, seria apenas uma mãe diminuída, e como consequência nossa devoção deixaria de ser filial. Poderia ser uma grande devoção, maior até do que aos santos, mas restrita apenas à mesma natureza desta última. Além disso, seria uma devoção facultativa. Não se trataria mais dessa devoção que nos leva a amar Maria com amor tão terno e a pôr nela uma confiança absoluta, por estarmos certos de que trabalhou tanto, sofreu tanto e tanto se sacrificou para nos gerar para a vida. Não seria essa devoção viril, ativa e apostólica, tão maravilhosamente eficaz, que todos os verdadeiros devotos de Maria praticaram.

Por não terem compreendido a missão redentora de Maria, certos católicos professam em relação a Ela apenas uma piedade sentimental, intermitente e pouco fecunda. Ao contrário, os que compreenderam o papel que Deus quis confiar-lhe na obra de nossa redenção conferem-lhe um papel essencial na sua própria vida. Quanto mais meditam sobre a missão da Virgem, mais se adestram em associá-la a todas as suas atividades espirituais e apostólicas, vendo assim a sua fé ser recompensada pelos resultados que obtêm.

Uma contraprova para a importância desse papel de Maria pode ser vista na atitude dos adversários da devoção que lhe professamos. Os protestantes que mantiveram a fé no mistério da Encarnação, geralmente reconhecem pureza, piedade e amor excepcionais na Mãe de Deus, mas se recusam a reconhecer qualquer participação consciente dela na obra de nossa redenção. Eles sentem que, se admitirem sua cooperação real na nossa salvação, isso os obrigaria a admitir toda a piedade católica em relação à Virgem. Quando deparam casualmente com Maria, inclinam-se diante da Mãe de Jesus, mas não querem abrir para Ela um papel na sua vida religiosa. Essa atitude pode nos ensinar a avaliar melhor a inefável grandeza de Maria como co-redentora do gênero humano, e assim vivenciá-la ainda mais. (Atualmente o título de co-redentora é admitido por praticamente todos os católicos. A Congregação do Santo Ofício  atual Congregação para a Doutrina da Fé) -- utilizou-o em duas ocasiões.

O Papa Pio XI deu solenemente esse título à Virgem, ao abençoar os peregrinos de Lourdes em 28/04/1935: "Ó Mãe de piedade e misericórdia, que acompanhastes vosso doce Filho quando cumpria a Redenção do gênero humano no altar da cruz, vós que sois nossa co-redentora e participante nas suas dores, nós vos pedimos que conserveis em nós e façais crescer a cada dia os preciosos frutos de nossa redenção e de vossa compaixão". Ninguém tem motivo, portanto, para protestar contra esse título e se mostrar mais católico que o Papa.)

7º. Significado da distribuição universal da graça


Dentre os privilégios da Virgem, talvez não haja nenhum outro cuja importância em conhecer seus limites seja tão grande quanto o da distribuição da graça. Não que ele represente uma verdade por demais abstrata para ser compreendida, tanto é assim que contém uma doutrina das mais populares. Porém, precisamente pelo fato de ser popular, fica exposta a deformações que ocorrem com as verdades populares, como o exagero quanto ao real e a materialização do que é espiritual. Como se trata atualmente de elevar ao grau de dogma este privilégio da Virgem, determinar o seu sentido exato constitui duplamente uma obra de piedade.

Descartemos de início um sentido herético, que consiste em atribuir a Maria o papel de autora da graça. Sem dúvida tal heresia não ocorrerá ao espírito de nenhum fiel, pois a graça é obra divina, que Maria não pode criar. O que se trata de estudar, portanto, não é a origem da graça, e sim a sua distribuição.

Descartemos também um sentido material, que pode ser erroneamente entendido por alguns devido às metáforas geralmente usadas para descrever essa função. Fala-se de Maria como distribuidora, dispensadora, tesoureira das graças, o que poderia levar algumas pessoas a imaginar a Virgem como alguém que mantém em suas mãos as graças de Deus para distribuí-las aos seus clientes, da mesma forma que o fazem os tesoureiros com moedas de ouro. A graça, bem ao contrário, não é um ser material como uma moeda, nem mesmo um ser espiritual com vida própria, como uma alma ou um anjo, e sim uma maneira de ser. Ela não pode ser contida nas mãos, mesmo que essas mãos fossem celestes, da mesma forma que a humildade e o amor não podem ser contidos nas mãos. Trata-se de uma maneira de ser, que Deus produz diretamente na alma, sem que precise ser tocada por Maria. A distribuição que Ela realiza se dá porque Deus a concede devido à sua intervenção.

Ainda outro conceito errôneo consiste em confundir a universal distribuição da graça com a necessidade de uma universal e constante invocação de Maria. Como veremos adiante, Ela distribui graças também aos que não a invocam, e mesmo aos que nem a conhecem. Por vezes até prefere que se invoque outro servo de Deus, em vez de invocá-la. Quando quer que Deus seja honrado por meio de outro dos seus servos, parece surda a quem a invoca, mas atende as súplicas dirigidas a esse servo de Deus. Faria dela uma ideia muito mesquinha e injuriosa quem a imaginasse ocupada somente dos seus devotos.

Como se deve então entender essa intervenção de Maria, pela qual distribui a graça? Não se trata aqui da intervenção geral, que consistiu na união da co-redentora com o Redentor, por meio da qual contribuiu para merecer todas as graças que viriam a ser distribuídas aos homens. Seria mesmo desnecessário fazer aqui esta ressalva, se alguns não quisessem reduzir a apenas este papel a distribuição da graça por Maria. O que se analisa aqui é a distribuição individual, isto é, a aplicação de cada graça especial a cada ser em particular.

Essa intervenção efetiva da Virgem na distribuição das graças deve ser comparada antes de tudo a uma intercessão, porém com tais características que a tornam possível apenas no céu. Não se deve imaginar a Virgem constantemente distraída da contemplação divina, para conhecer as necessidades e ouvir as súplicas de centenas de milhões de seres humanos, e ao mesmo tempo diligenciando diante de Deus Todo-poderoso pelo seu atendimento. O que de fato acontece é que a Virgem ama a Deus e o contempla face a face, e nessa contemplação e amor vê em Deus, como em um espelho de infinita pureza, o que o próprio Deus está vendo. Ela não vê tudo o que Deus vê, pois Deus é infinito, mas vê a parte que interessa à sua missão de atender as necessidades dos que a Ela recorrem.

Maria participa do conhecimento de Deus, vendo nele os homens com todas as suas necessidades e preces, e também o desejo que Deus tem de ajudá-los por meio dela. Para interceder em favor dos homens, basta-lhe contemplar a Deus, e essa contemplação lhe diz mais do que qualquer oração nossa. Se nas relações entre os homens os olhos falam mais que os lábios, não se dará o mesmo no céu? A Mãe olha para seu Filho com um sorriso de confiante súplica, e o Filho responde com um sorriso de amoroso consentimento. (Discute-se a opinião de que Maria tem na distribuição da graça não só um papel de intercessão no céu, mas também uma influência pessoal direta sobre os que recebem essa graça. A que ponto pode chegar essa influência? Que um pedido seja atendido, já é um dado essencial, mas existe ainda a maneira de dar, que por vezes vale mais que o próprio benefício. Como analogia, pode-se entender que o rei encarregue um de seus secretários de conferir o benefício.

Mas se a própria rainha vai comunicar o atendimento do pedido, quão maior será a alegria da pessoa, como também a da rainha! O mesmo ocorre quando a Rainha do céu intervém diretamente na transmissão do favor celeste. Sua ação poderá consistir em preparar a alma para receber a graça, pois se está mal preparado o terreno em que é depositada, não germinará ou não produzirá frutos. Se intervém a própria Rainha, a graça será acolhida com mais alegria, mais generosidade, fazendo-a frutificar melhor. Certos místicos que descrevem uma ação sensível de Maria na sua alma parecem supor uma atividade desse gênero. Uma questão consiste em saber se essa ação física de Maria na concessão da graça pode ser confirmada pela teologia;  e também se ela se daria em relação a todas as graças ou somente em relação às graças con-cedidas a certas almas escolhidas.

Não é este o local adequado para a discussão deste assunto, que no entanto é admi-tido por número crescente de autores conceituados.)

Essa intervenção universal e incessante da Virgem nos assuntos humanos não prejudica em nada o gozo tranquilo de sua incompreensível bem-aventurança. Mais do que isso, essa intervenção constitui parte dessa bem-aventurança. Nosso dever na terra consiste em amar não somente a Deus, mas também ao próximo, e no cumprimento desse dever consiste nossa felicidade. Como disse Nosso Senhor, há mais felicidade em dar do que em receber. Podemos então indagar se no céu a nossa felicidade seria reduzida nesse aspecto de dar, ou se, pelo contrário, ela será aumentada além do que possamos imaginar. Santa Teresa do Menino Jesus declarou antes de sua morte que passará seu céu fazendo o bem sobre a terra, e sabemos que ela manteve sua promessa. O que a santa carmelita predisse sobre si mesma, e que se aplica a todos os amigos de Jesus, vale com mais razão para Maria, estendendo-se neste caso tal afirmação a todas as graças.

Se a intercessão constante de Maria se harmoniza perfeitamente com sua bem-aventurança, harmoniza-se não menos ditosamente com a ordem de Deus. Em primeiro lugar, trata-se da execução de um decreto geral da divindade, além disso atende soberanamente aos decretos particulares relativos a cada alma individualmente. A fim de tornar mais palpável o poder de mediação de Maria, por vezes ela é apresentada como disputando com Deus, por assim dizer -- do mesmo modo que Moisés intercedendo pelos israelitas prevaricadores -- a fim de obter para algum de seus fieis uma graça que a justiça de Deus quereria inicialmente recusar. É verdade que, sem a intervenção de Maria, a justiça divina seguiria seu curso, mas o próprio Deus quer que a Virgem recorra à sua misericórdia. Proclama-se ainda que Maria obtém todas as graças que deseja, para quem Ela as deseja e do modo como deseja.

São afirmações muito justas, desde que não sejam tomadas como caprichos maternos, que prevaleceriam contra os justos desígnios de Deus.

A Virgem não pode ter outro desejo que não seja o desígnio de Deus, e só pede para seus protegidos o que sabe corresponder ao que Deus queria que Ela pedisse.

8º. Distribuição universal da graça por Maria


Explicamos até aqui o modo como se dá a distribuição das graças por Maria. Resta expor o que se deve entender pela sua universalidade, que constitui o objetivo deste estudo.

Esclarecemos inicialmente que temos em vista a graça concedida aos homens, e não as que Deus aplicou aos anjos. Em segundo lugar, dentre as graças distribuídas aos homens, esse privilégio de Maria só pode englobar as que os homens receberam depois da Assunção. Sem dúvida a Virgem contribuiu para merecer todas as graças, e consequentemente para obtê-las, mesmo as que foram dadas aos homens antes de Ela nascer. Também foi mediadora universal para estas últimas, mas em caráter geral, pois não pode ter intercedido individualmente por elas antes de Ela mesma existir. O próprio Cristo não pôde fazê-lo.

Maria é distribuidora de graças de tipos diferentes: graças ordinárias e graças sacramentais, que pedimos diretamente a Ela ou a Deus, a Cristo ou aos santos;  graças que solicitamos e graças que não solicitamos. Maria intervém em todas essas graças, mesmo naquelas que os hereges e os blasfemadores da Virgem recebem, pois também Deus "faz levantar seu sol sobre os bons e os maus, e chover sobre os justos e os injustos". Maria obtém graças para todas as almas santas ou pecadoras que vivem neste mundo.

Feitas estas restrições e colocadas estas precisões, a universalidade das graças distribuídas por Maria deve ser tomada no seu sentido estrito, não admitindo nenhuma exceção. É possível provar, ou então mostrar por meio da Revelação, que Deus confiou tal função a Maria? Respondemos que sim, pois isso é possível.

9º. Distribuição universal da graça, verdade revelada


Não se deve imaginar que os contemporâneos dos apóstolos professassem fé explícita em algum privilégio da Virgem, o que só se deveria iniciar depois da Assunção. Mas tinham indicações próprias a orientar o espírito em relação a essa fé, e isso certamente os levaria mais tarde a dar-lhe seu assentimento, na medida em que o desenvolvimento da mariologia estivesse suficientemente avançado.

O Novo Testamento ensina como Cristo nos mereceu todas as graças por meio da sua vida e morte, e como prossegue, na posse atual de sua glória, a obra de mediador e nosso advogado ante o Pai. A graça que conquistou para todos nós, e o fez para sempre, se aplica a cada alma em particular. São João nos lembra que devemos ter confiança, embora sendo pecadores, "pois Jesus Cristo, o justo, é nosso advogado diante do Pai" E São Paulo, explicando mais claramente esse papel de Cristo glorificado, proclama: "Se Deus está a nosso favor, quem será contra nós? Aquele que não poupou seu próprio Filho, e o entregou à morte por nós, como não haveria de nos dar todas as outras coisas? Quem acusará os eleitos de Deus? Se Deus os justifica, quem os condenará? Cristo morreu, mais que isso ressuscitou, está à direita de Deus e intercede por nós".

A epístola aos hebreus desenvolve essa ideia quando descreve o sacerdócio de Cristo, isto é, sua função de mediador. Mostra como Jesus mereceu essa função por meio das suas orações e por sua morte, e continua a exercê-la no céu: "Pelo fato de assistir continuamente, possui um sacerdócio eterno, podendo assim salvar para sempre os que se aproximam de Deus por meio dele, que vive eternamente para interceder por nós.

A associação constante de Maria com os diversos mistérios de Jesus na terra parece destiná-la igualmente à união com Cristo no seu papel celeste. Não seria também Ela, com Ele e abaixo dele, nossa advogada diante do Pai? Há um motivo mais direto e mais imperioso do que essa associação, para nos levar a concluir pela existência de tal função no céu. A função de Cristo enquanto intercessor celeste é apresentada, nos textos citados acima, como a consequência natural da sua função de Redentor: Ele morreu por nós, e é por isso que, depois de ressuscitado, intercede por nós;  seu sacerdócio, que conquistou na terra pelas suas orações e sua morte, é um sacerdócio eterno;  Cristo permanece sempre vivo para interceder por nós. A própria natureza das coisas indica essa relação: a distribuição da graça é apenas a aplicação individual da sua aquisição, e esta se fez por meio da Redenção.

Tendo cooperado para a Redenção, Maria colaborou para essa aquisição. Não será natural concluir que, como co-redentora na terra ao lado do Redentor, Ela também se tenha tornado no céu advogada ao lado do Advogado? Nosso espírito ficaria desconcertado se Deus tivesse disposto as coisas de modo diferente, isto é, se aquela que se associou a Ele na Redenção não se tornasse também associada dele na aplicação da Redenção, que é a distribuição das graças.

São Paulo declarou expressamente: "Os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis". Nossos desejos e métodos mudam, porque somos imperfeitos. Mas Deus, que conhece desde o princípio os caminhos mais adequados para atingir os objetivos, é imutável nos seus decretos e constante no uso dos seus instrumentos, salvo se estes o forçam a rejeitá-los. Porém a Virgem foi concebida sem pecado original, e durante sua vida nunca a manchou qualquer pecado, portanto não desmereceu sua vocação. Desde o primeiro fiat dela na Encarnação até o último e terrível fiat no Calvário, o Evangelho a mostra invariavelmente dócil à vontade de Deus. Se no mundo houve alguma adesão irrevogável à vocação, essa foi com toda certeza a de Maria. E se Cristo permanece no céu o Advogado de todos, não será Ela também, mas em grau inferior, a advogada de todos?

A própria vida da Virgem nos apresenta certo número de episódios próprios a fazer pressentir essa mesma conclusão, mostrando-nos que todas as vezes que Cristo quis conceder aos homens uma graça de gênero particular, sua Mãe serviu de intermediária.

Maria foi seu instrumento para santificar o Precursor São João Batista e encher a alma de Izabel com o Espírito Santo;  tinha-o no colo quando se revelou aos judeus na pessoa dos pastores, e aos gentios na pessoa dos Reis Magos;  entregou Jesus ao profeta Simeão e à profetisa Ana, que assim cumpriram seus desejos;  um pedido de Maria levou-o a fazer o primeiro milagre nas bodas de Caná, alegrando os convivas e poupando dissabores aos anfitriões, além de confirmar a fé dos seus primeiros discípulos;  na presença de Maria Ele quis concluir no Calvário a nossa Redenção;  a vinda do Espírito Santo no cenáculo, quando Cristo já se tornara nosso Advogado no céu, deu-se na presença de Maria, com quem os apóstolos permaneciam em oração.

Esses são dons relatados no Novo Testamento, mas todas as pessoas que tiveram a felicidade de se aproximar de Maria durante sua vida sentiram certamente sua benéfica influência. Esse conjunto de fatos não autoriza a afirmação categórica da intercessão universal da Virgem após sua Assunção, mas contém indicações que orientam o espírito nesse sentido.

Os primeiros séculos nos legaram poucos documentos adequados a constatar o pensamento cristão que caminha desses dados primitivos para a clara visão da universal distribuição da graça por Maria. Não espanta que tenha havido esse silêncio, pois a fé na intercessão dos santos se manifesta na prática pela oração, embora não a exija. Mas nos primórdios do cristianismo as orações eram assunto privado, exceto a prece litúrgica, a recitação dos salmos e do Pai nosso. Não havia fórmulas consagradas a fim de exprimi-las, mas um papiro descoberto recentemente no Egito, datado do século 3, ou 4 pelos papirólogos, contém o Sub tuum præsidium em grego, com texto quase igual ao atual. A forma geral do pedido endereçado à Mãe de Deus faz supor a convicção do seu autor e dos contemporâneos sobre a intercessão universal de Maria: "Não desprezeis nossas preces nas nossas necessidades, mas afastai-nos do perigo".

O entendimento do papel co-redentor da Virgem adquiriu bem cedo uma nitidez surpreendente, como vimos acima. Quando se chegou a entender esse papel na aquisição da graça, seguiu-se quase necessariamente o entendimento do seu papel na distribuição da graça. Quase instantaneamente se nota, a partir do século 5, que em muitos lugares se recorre à Mãe de Deus, atribuindo-se à sua intercessão os benefícios mais diversos nas necessidades mais variadas. Ela é invocada como podendo obter para os homens todas as graças. O Ave maris stella, cuja existência é mencionada desde o início do século 9, traduz bem essa atitude. Com exceção da primeira estrofe, essa prece é uma longa enumeração de todos os benefícios de alma e de corpo que esperamos da Mãe de Deus: Mala nostra pelle, bona cuncta posce -- Afastai de nós os males, implorai [para nós] todos os bens.

Posteriormente se afirmou -- de início confusamente, depois com nitidez -- que a Virgem é a distribuidora de todos os favores celestes. São Germano de Constantinopla, no início do século 8, é extremamente categórico nessas afirmações: "Ninguém se salvou, a não ser por vosso intermédio, ó Santíssima Virgem. Ninguém se livrou do mal, a não ser por vós, ó puríssima Virgem. Ninguém recebe graças, a não ser por vós, ó inocentíssima Virgem. Ninguém obtém o auxílio da graça, a não ser por vós, ó augustíssima Virgem".

No Ocidente, São Bernardo exorta todos os fiéis justos e pecadores, em termos inflamados, a esperar de Maria, nossa benigna Mediadora junto a Jesus nosso Mediador, todos os bens de alma e de corpo. Lembremos, por exemplo, suas insistentes exortações à invocação da Virgem, na sua homilia Super Missus est, a propósito do nome Maria, que ele interpreta como Estrela do mar: "Nos perigos, nas angústias, nas perplexidades, pensai em Maria, invocai Maria! Que seu nome não se distancie dos vossos lábios, não se distancie do vosso coração! E para garantir o apoio de sua oração, não abandoneis os exemplos da sua vida! Se a seguirdes, não vos extraviareis;  se a invocardes, não perdereis a esperança;  se pensardes nela, não tomareis caminhos falsos. Se Ela vos sustenta, não caireis;  se vos protege, não temereis;  se vos guia, não sentireis o cansaço;  se vos é propícia, atingireis o objetivo".

Dante Alighieri também colocaria na boca de São Bernardo estas palavras: "Mulher, és tão grande e podes tanto, que desejar a graça sem recorrer a ti é pretender que tal desejo voe sem ter asas". (A propósito da distribuição de todas graças por Maria, cita-se frequentemente esta palavra de São Bernardo: "Veneremo-la, pois essa é a vontade daquele que quis que tenhamos tudo por intermédio de Maria". Entretanto, como mostra o contexto, São Bernardo faz essa afirmação a propósito do papel de Maria na Encarnação, e não na distribuição da graça. Sem dúvida, a formulação exprimiria também seu pensamento em relação à distribuição da graça. A Divina Comédia, canto 33,13 seguintes)

Durante muitos séculos, a distribuição universal da graça foi admitida praticamente por todos os fieis. No século 18, foi atacada por alguns eruditos e gloriosamente defendida por Santo Afonso de Ligório. Com exceção de certos espíritos ainda aferrados a uma ou outra das objeções que discutiremos adiante, atualmente a mediação universal de Maria na distribuição da graça é admitida por toda a Igreja. É afirmada como doutrina corrente nas encíclicas e outros documentos de vários Papas desde Bento XIV, (século 18) especialmente de Leão XIII, São Pio X, Bento XV e Pio XI.

Leão XIII o ensina em várias encíclicas, como a Adjutricem populi, (5/09/1895) onde afirma: "De acordo com um decreto divino, a partir de sua Assunção Maria começa a velar sobre a Igreja, a nos assistir e nos proteger como Mãe. Tendo sido a colaboradora no mistério da Redenção, foi também do mesmo modo colaboradora na graça que emanaria para sempre desse mistério, confiando-se a Ela para esse efeito um poder praticamente ilimitado". Note-se que o Soberano Pontífice vincula a distribuição da graça à sua aquisição pela Redenção.

São Pio X nos dá afirmação e explicação equivalentes na encíclica Ad diem illum: (5/02/1904) "Por essa união de sofrimentos e vontades entre Maria e Cristo, Ela mereceu com muita dignidade tornar-se a reparadora do mundo perdido, e pelo mesmo motivo tornou-se também a dispensadora de todos os dons que Jesus nos adquiriu por sua morte e seu sangue".

Bento XV afirma a mesma doutrina com base nos mesmos motivos: "Por causa da união da Virgem com Jesus na sua Paixão redentora, as graças de todo gênero que recebemos do tesouro da Redenção nos são distribuídas, por assim dizer, pelas mãos redentoras da Virgem das dores". Em 1921, aprovou o ofício e a missa em honra de Maria, Medianeira de todas as graças. É oportuno lembrar que "a regra da oração é a regra da fé".

Pio XI, quando a concedeu como Padroeira da França sob a invocação da Assunção, refere-se a Maria como a Mediadora de todas as graças diante de Deus. Na encíclica Ingravescentibus malis, sobre o mistério do Rosário, faz suas as palavras de São Bernardo, acima citadas, aplicando-as à distribuição da graça: "Invocamos diante de Deus a mediação da Bem-aventurada Virgem, que lhe é tão agradável. Servindo-nos das palavras de São Bernardo, essa é a vontade de Deus, cujo desejo foi que recebêssemos tudo por Maria".

Resta-nos ainda o último passo, que é a proclamação desse ensinamento como dogma revelado. Sabe-se que tal proclamação é aguardada em toda a Igreja.

10º. Respostas a algumas dificuldades


Mostramos que vários Papas afirmaram a distribuição de todas as graças por Maria. Entretanto, certos espíritos ainda têm dificuldades sobre a universalidade dessa função. Reconhecem à Mãe de Jesus um excepcional poder de intercessão, porém não conseguem ver qual o fundamento sólido que possamos estabelecer para uma intercessão absolutamente universal. As objeções desses podem ser assim resumidas:

1º. Deus precisa de Maria para distribuir todas as graças?

2º. Não pode Ele distribuir certas graças diretamente por meio de outros santos?

3º. Como pode Maria intervir na distribuição das graças sacramentais?

Evidentemente Deus não tem necessidade de Maria para distribuir seus dons aos homens, e poderia ignorá-la para esse efeito, como também poderia dispensá-la quando quis efetivar os mistérios da Encarnação e Redenção, e ainda dispensar a Igreja para o efeito de obter a conversão do mundo. Mas o problema está mal posto, pois não se trata de saber se Deus deve, e sim de saber se quer se servir de Maria para a distribuição da graça. E não se trata de saber se a distribuição de todas as graças por Maria é intrinsecamente necessária, mas sim se ela é necessária por um livre decreto de Deus. É claro que Deus poderia conceder-nos algumas graças diretamente, e até mesmo todas as graças.

Mas há alguma indicação providencial em favor da suposição de que Deus tenha preferido agir dessa forma? Se é certo que quis a contribuição de Maria para a aquisição de todas as graças, sem exceção, por qual motivo quereria privá-la da distribuição dessas mesmas graças que Ela ajudou a merecer? Se aos outros santos Deus consente em distribuir inúmeras graças, para cuja aquisição eles não contribuíram, por que negaria a Maria a distribuição das graças para cuja aquisição Ela contribuiu com o preço de tantas orações e sofrimentos? "Se Ela participou do sofrimento, é justo que também participe da glória".

Resposta análoga deve ser dada à segunda objeção. Sem dúvida Deus pode conceder, por meio dos santos, benefícios para seus devotos. Mas surge também aí a dúvida: Será que Ele quer fazer isso? Por qual motivo?

Na base dessa segunda objeção se encontra, frequentemente de modo inconsciente, a falsa ideia de que a primeira razão para a Virgem ser distribuidora de todas as graças é sua supereminente santidade: Maria é mais santa que todos os servos de Deus reunidos, portanto distribuirá mais graças do que todos eles. Aceitemos por ora esta conclusão, para efeito de argumentação. Mas se o decisivo no caso é o grau de santidade, e os santos também têm algum grau de santidade, devem distribuir também algumas graças. O raciocínio é exato, mas o verdadeiro motivo da distribuição universal da graça por Maria não é a sua grande santidade, e sim sua cooperação na Redenção. Se algum santo tivesse cooperado nos mistérios da Encarnação e Redenção -- o que significa a aquisição da graça -- estamos no direito de concluir que esse também poderia, da mesma forma que Maria, participar na sua distribuição.

Reveste-se de caráter absolutamente único a distribuição da graça por Maria, pois sua cooperação na aquisição da graça foi também absolutamente única. Os santos nos obtêm graças, mas por meio de Maria, como foi também por meio de Maria que eles próprios conseguiram santificar-se. (Sem dúvida alguma São José cooperou nesses mistérios, por isso goza de certo poder universal de intercessão. Porém, como sua cooperação para a Redenção não foi direta, além disso foi inferior à de Maria, seu poder de intercessão é também inferior ao de sua esposa e indireto, exercendo-se por meio dela.)

Seria de temer que essa doutrina coloque em posição humilhante os outros santos? Eles também figuram diante de Deus, mas assim estariam na situação de cortesãos subalternos, sem crédito diante do rei, e teriam de recorrer a um personagem mais poderoso a fim de obter algum benefício para seus amigos. Mas o fato é que diante de Deus os santos não são cortesãos, e sim seus filhos juntamente com Jesus, que também é Filho. Mas esses filhos só querem obter os benefícios de Deus por intermédio de sua Mãe, que os conduziu a conseguiram tudo o que são. Bem mais do que isso, são felizes por recorrerem sempre a Ela, pois conhecem sua bondade e o poder de seu merecimento diante de Deus. Agindo por meio dela, apresentam-se diante de Deus com a segurança de obterem o que pedem, porque Ele também os ama, e sobretudo ama aquela que torna seus os pedidos deles.

O assunto recebeu uma solução, que quase se pode dizer oficial, por ocasião da canonização de Santa Joana d'Arc. Embora os milagres obtidos pela invocação simultânea de dois servos de Deus não possam ser usados como prova infalível da santidade de um deles, o Papa Bento XV admitiu como prova em favor da santidade de Joana d'Arc uma cura devida à invocação a ela e a Nossa Senhora de Lourdes. E a explicação foi a seguinte: "Deve-se reconhecer em todos os fatos miraculosos a mediação de Maria, por meio da qual Deus quer que nos cheguem todas as graças. Assim sendo, não se pode afirmar que a mediação da Santíssima Virgem tenha se manifestado de modo especial em um dos milagres documentados. Pensamos que Nosso Senhor dispôs assim a fim de lembrar aos fieis que jamais se pode excluir a lembrança de Maria, ainda que um milagre pareça dever ser atribuído à intercessão de um bem-aventurado ou santo".

Na sua encíclica sobre o santo Rosário, Pio XI professa a mesma doutrina como sendo uma verdade admitida. Lembrando a cura quase miraculosa que o beneficiara recentemente, afirmou: "Atribuímos esta graça à especial intercessão de Teresinha do Menino Jesus. Não obstante, sabemos que tudo o que Deus nos concede vem pelas mãos de Maria".

Pode-se perguntar se um tipo comum de graças, que são as sacramentais, está também vinculado à universal intercessão de Maria. É sabido, por exemplo, que a absolvição de um sacerdote ao pecador arrependido se realiza por virtude própria -- ex opere operato, de acordo com a expressão teológica. Haveria necessidade da intervenção de Maria também nesses casos, para que se complete o perdão de Deus ao culpado arrependido? Não se pode ver aí um tipo de graças que escapa à universal mediação de Maria?

Essa objeção parece forte para certos espíritos, a ponto de impedir seu pleno assentimento a essa doutrina, apesar de também eles a desejarem reconhecida universalmente. Porém, apesar de parecer forte, essa objeção é enganosa. Podemos dizer inicialmente que ela envolve um sofisma, pois estaria voltada também contra a universal intercessão de Cristo, não apenas contra a de sua Mãe, podendo-se aplicar aí o provérbio o que prova demais, nada prova.

Em segundo lugar, quando se examina de perto o assunto, nota-se que a intervenção de Maria no caso das graças sacramentais é a mesma de todas as outras graças, obtendo que a alma se mova no sentido de receber aquela que o sacramento confere. Para nos servirmos de um exemplo material, podemos imaginar uma pessoa que intercede junto a um amigo rico a fim de obter para um pobre uma grande esmola, e ao mesmo tempo convence o pobre a fazer pessoalmente o pedido.

Pode-se mesmo afirmar que Maria intervém mais na distribuição da graça sacramental do que na distribuição das outras graças, pois precisa atuar não apenas sobre quem recebe a graça, como mais ainda sobre o distribuidor da graça. Intercede portanto para a pessoa ter as disposições necessárias a fim de receber a graça sacramental, e ainda para encontrar um distribuidor (sacerdote, ministro) que possa e queira conferir-lhe o sacramento.

11º. Harmonias


Já insistimos sobre a estreita relação que liga a distribuição da graça à co-redenção e à maternidade espiritual. O mesmo acontece com as outras grandezas de Maria.

Examinemos inicialmente a sua plenitude de graça. Cristo possui a plenitude da graça, tanto em si mesmo como para todas as criaturas em conjunto, pois "nós recebemos tudo da plenitude que Ele tem". Guardadas todas as proporções, aquela que o anjo saudou como "cheia de graça" recebeu de Deus uma superabundância de graças tão grande, que basta para si mesma e para todos os homens, de modo que tudo nós recebemos da plenitude dela.

Já mostramos que a distribuição de todas as graças por Maria se fundamenta antes de tudo na sua colaboração no mistério da Redenção, mas a sua excepcional santidade acrescenta a esse principal motivo um outro, que é extremamente poderoso. É fácil compreender que, se a carmelita de Lisieux pode derramar sobre a terra uma maravilhosa "chuva de rosas", isso se deve ao fato de ser maravilhosamente santa. E convém à santidade única de Maria -- maior diante de Deus do que a de todos os anjos e santos reunidos -- que a ela corresponda um poder de intercessão também único.

É sobretudo a maternidade divina que confere a Maria esse poder único de intercessão. Os santos se alegram em repetir com insistência que Cristo não saberia recusar nada a Maria. E o que poderiam recusar o Pai à Filha privilegiada, e o Espírito Santo à Esposa bem amada?

Os vários privilégios que acabamos de mencionar exigiam, por motivo de conveniência, que fosse conferida a Maria a função de distribuidora de todas as graças, ou ao menos a preparavam para isso, tornando-a particularmente apta a tal função. Esta mesma função a preparava para outras prerrogativas, como sua missão apostólica e sua realeza universal.

12º. Maria Mediadora ao lado de Jesus Mediador


Na sua dupla função de Mediadora, como vimos, Maria está associada a Cristo, Redentor e intercessor. Ela não o substitui, pois só Ele permanece nosso Mediador necessário, suficiente e perfeito. Pondo-se diante de Cristo, Maria não o esconde, pois só a vemos como Mediadora à luz de Cristo Mediador. Bem ao contrário, Ela encaminha nossos olhares para Cristo, de quem recebe todo poder de co-redentora e advogada. Por essa irresistível atração materna que exerce sobre todos os homens que a contemplam na simplicidade do seu coração, Maria toma posse da alma para conduzi-la infalivelmente a Cristo. Como a experiência mostra, aproximam-se cada vez mais de Cristo, com confiança e amor crescentes, aqueles que são conduzidos pelas mãos da universal Mediadora, caminho imaculado que Ele mesmo escolheu para nos procurar. Por ser Maria Mediadora, Jesus é mais eficazmente Mediador.

Capítulo, 4º. A MISSÃO APOSTÓLICA DE MARIA


Geralmente os tratados de mariologia não mencionam uma missão apostólica da Virgem. No entanto, o conhecimento dessa função social de Maria é de muito grande importância prática, sobretudo na hora atual.

1º. Significado da missão apostólica de Maria


O que se deve entender por missão apostólica de Maria? O Evangelho narra como Nosso Senhor escolheu entre os seus discípulos doze que denominou apóstolos, significando enviados. Esses doze deveriam ajudá-lo na missão para a qual Ele mesmo havia sido enviado ao mundo: "Assim como meu Pai me enviou, eu vos envio. Todo poder me foi dado no céu e na terra. Ide, pois, ensinai todas as nações, batizando em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-as a praticar tudo o que vos mandei. Eis que estarei convosco até a consumação dos séculos".

Portanto a missão de todo apóstolo é como a de Cristo, que consiste em resgatar as almas ao demônio, santificá-las e salvá-las. O conceito de apóstolo compreende dois elementos:

1º. Ser enviado por Cristo;

2º. Em nome e pelo poder de Cristo, trabalhar para a conversão e santificação dos homens.

Missão apostólica de Maria é a função que lhe foi confiada por seu Filho, de ajudá-lo até o fim dos tempos a libertar da escravidão do demônio, santificar e salvar todas as almas que vêm a este mundo. Veremos que essa missão apostólica de Maria é única, diferente da que tiveram os apóstolos devido à sua universalidade. A ação de todos os apóstolos é limitada no espaço e no tempo, mas a de Maria se estenderá a todos os tempos e a todos os lugares, por ser universal como a de Cristo.

Outra diferença é com relação ao grau, por ser missão de dirigente, enquanto a deles é de subordinados. Maria recebeu diretamente de Deus a missão de santificar e salvar todas as almas. Os outros apóstolos eram comandados, e seu trabalho participava do trabalho de Maria, quer tivessem ou não consciência disso. Era dela a função de generalíssima, e deles a de soldados ou oficiais do exército apostólico. (Subordinados do ponto de vista da atividade apostólica direta -- que consiste em fazer a alma viver da vida de Cristo -- e não do ponto de vista do sacerdócio ou do governo, que são apenas meios nem sempre eficazes, tendo como objetivo essa ação apostólica.)

2º. A missão apostólica de Maria, verdade revelada


Terá Cristo confiado verdadeiramente tal missão à sua Mãe? Sim, sem nenhuma dúvida, pois essa missão deriva diretamente das funções de Maria que temos analisado, e se confunde com elas até certo ponto. Além disso, o sentimento da Igreja sempre reconheceu à Virgem tal missão, sobretudo nos últimos tempos.

Unida a seu Filho, Maria contribuiu para a Redenção do gênero humano, como vimos. A Redenção foi merecida por Cristo no Calvário para todos os homens, mas só se realiza para cada homem na medida em que este se acha em condições de gozá-la. Antes de ir para junto do Pai, o Salvador enviou seus discípulos a todos os povos a fim de prosseguir sua obra junto aos homens e levar-lhes a salvação. A missão da Igreja é consequência direta da Redenção, e não estaria completa sem ela. De acordo com as palavras de Cristo, a Igreja é a própria Redenção: "Assim como meu Pai me enviou, eu vos envio". Ou seja, como o Filho foi enviado para a Redenção, os discípulos o foram para o apostolado. Redenção e apostolado são portanto a mesma coisa.

Maria cooperou na Redenção, para toda a Redenção, e deverá cooperar também para toda a missão da Igreja. Em outros termos, deve cooperar para todo o apostolado católico. Sem essa segunda cooperação, a obra da co-redenção ficaria inacabada, e Cristo teria agido em relação a sua Mãe como o homem do qual se fala no Evangelho, que começa a construir uma torre e não a consegue concluir. Afirmar a missão apostólica universal de Maria no mundo significa afirmar que Deus é fiel e constante em relação à sua Mãe;  que "seus dons e seus chamados são sem arrependimento";  que mantém para a co-redentora a missão que lhe confiou, associando-a à obra de seu Filho.

A missão apostólica de Maria mantém relações muito estreitas com a missão de Mãe dos homens. Cada mãe é a primeira apóstola de seu filho, tendo como missão preservá-lo do pecado e fazê-lo viver a vida sobrenatural. Se ela o confia a outros educadores, estes se tornam seus auxiliares, permanecendo ela a primeira responsável por essa missão.

Por motivo ainda mais forte, Maria é a primeira apóstola de seus filhos. Não só por ser a mais perfeita das mães, mas sobretudo por ser mãe sobrenatural. Uma mãe comum que negligencia a alma de seu filho será considerada má, mas apesar disso continuará sendo sua mãe, pois lhe deu a vida física. O caso de Maria é completamente diferente, pois sua maternidade se limita à vida sobrenatural. Se não nos faz viver a vida de Cristo, deixa de ser apóstola e o título de mãe perde seu sentido. Se Deus quis que o título de Mãe dos homens se tornasse realidade e não apenas uma palavra vã, tem que ter confiado a Maria uma missão apostólica universal.

A vocação para as funções de co-redentora e Mãe dos homens mostra que Maria precisa ter recebido de Deus uma missão apostólica, e seu papel de distribuidora de todas as graças mostra que de fato recebeu tal missão. Com efeito, nenhum trabalho apostólico é eficaz sem a graça: a vocação de um cristão para o apostolado é uma graça;  sua fidelidade em responder a essa vocação é uma graça;  sua boa disposição para exercer o apostolado em favor da alma é uma graça;  o sucesso junto à alma é uma graça. Quando uma alma é posta em contato com o apóstolo, quando ouve docilmente sua palavra, quando se deixa converter, quando persevera no bem -- tudo isso se deve a graças sucessivas concedidas à alma.

Porém todas essas graças, sem exceção, vêm para o apóstolo e para a outra alma por intermédio de Maria. Se a graça deixar de agir, por um momento que seja, a ação do apóstolo perderá sua eficácia. Portanto, quando Maria concede constantemente tais graças, está exercendo uma supereminente obra de apostolado. A missão apostólica de Maria é assim um aspecto, e o mais importante, da sua missão de distribuidora universal da graça. Afirmar uma coisa equivale a afirmar a outra.

Essas diversas funções da Virgem mostram igualmente por que pudemos afirmar acima que seu apostolado se exerce a um título único, pela sua universalidade e pelo seu grau. Por sua universalidade, porque é Mãe de todos os homens, além de co-redentora universal e distribuidora de todas as graças. Por seu grau, devido à sua posição de chefe, sendo de subordinados a missão dos outros apóstolos. Com efeito, somente Ela foi cooperadora de Cristo na obra da Redenção, portanto será somente dela a missão de completar essa obra, e os demais apóstolos só a ajudam nessa missão. Sendo a distribuidora de todas as graças, dela dependem todos os apóstolos para a eficácia do seu apostolado. Sendo a mãe das almas, as outras mães são apenas suas auxiliares na educação dos filhos.

Depois de Cristo, e por meio dele, Maria é portanto a verdadeira apóstola. Os outros homens que merecem esse título são simplesmente seus instrumentos. Quer percebam ou não, o que fazem é complementar a obra de Maria, a Ela confiada desde o início por Deus. No seu limitado raio de ação, e por tempo limitado, executam a missão da qual Maria foi incumbida em todo tempo e lugar, são soldados ou oficiais batalhando no exército de Cristo, cuja generalíssima é a Virgem.

Esses paralelos entre a missão apostólica de Maria e suas funções de Mãe, co-redentora e distribuidora de todas as graças possibilitam reconhecer nela o caráter de missão revelada. De fato ela não se reduz a uma simples consequência lógica daquelas três funções, que são reveladas, mas constituem um aspecto particular ou uma de suas partes constitutivas, a ponto de confundir-se com elas. Corresponde, com outro nome, à sua função de co-redentora, especialmente sua função de Mãe e distribuidora de todas as graças. Como consequência, essa missão participa com toda a certeza nessas três funções, e se poderia afirmar que é revelada tanto quanto essas funções, mesmo se a tradição jamais tivesse mencionado explicitamente uma missão apostólica de Maria. Desde que a ideia seja revelada, não é necessário que a denominação o seja.

A Sagrada Escritura e a Tradição atribuem a Maria uma atividade junto às almas, que se apresenta sob o aspecto de apostolado. Logo nas primeiras páginas, uma profecia clara explicita essa missão da Virgem. A maldição de Deus contra Satanás afirma: "Porei inimizades entre ti e a mulher, entre tua descendência e a dela. Ela te esmagará a cabeça, e armarás ataques ao seu calcanhar". Se este texto pôde ser invocado a justo título como prova da Imaculada Conceição, também estabelece de modo geral o papel claramente vitorioso de Maria. A Imaculada Conceição é um momento, solene entre todos, da sua luta contra a serpente, mas essa luta não é profetizada como devendo reduzir-se a um momento. Pelo contrário, trata-se de uma inimizade, portanto de uma situação durável, que se estende da Mulher e da serpente à posteridade de ambas.

Quanto à última parte -- armarás ataques ao seu calcanhar, -- não se realizou na Imaculada Conceição, mas somente mais tarde na Paixão de Cristo e nas derrotas parciais da Igreja.

O texto hebraico vincula o sujeito da oração -- Ela te esmagará a cabeça -- à posteridade da Mulher, e não à própria Mulher, mas é também verdade que proclama entre a Mulher e a serpente uma inimizade extensiva à posteridade de ambas. Nessa inimizade a Mulher aparece unida à sua posteridade -- Cristo e seus outros filhos -- que deve esmagar a cabeça da serpente. Nossa afirmação é precisamente que, por sua união com seu Filho e conosco, Ela esmagou e esmagará sempre o inimigo infernal. (Para sustentar essa luta prolongada, não se poderia tomar como ponto de apoio o plural inimicitias, que se encontra na Vulgata, pois o texto hebraico usa o singular.)

O último livro da Escritura faz eco ao primeiro, confirmando nossa interpretação. O capítulo 12 do Apocalipse descreve uma vez mais a guerra da Mulher e da sua posteridade contra o dragão, que inicialmente é todo-poderoso, e finalmente vencido. São João afirma expressamente que esse dragão é a antiga serpente.

No seu simbolismo oriental, o Antigo Testamento nos faz pressentir aquilo cuja realização o Novo Testamento deixa entrever. Este relata que Maria praticou livre e conscientemente um ato apostólico de valor infinito, do qual resultaria todo o apostolado futuro, e que nos deu Jesus Cristo, o Apóstolo por excelência;  faz-nos ver ou adivinhar a ação de Maria junto aos principais dentre os que participariam no apostolado de Jesus;  por uma visita de Maria, foi santificado e ungido pelo Espírito Santo o maior dos profetas, que deveria caminhar adiante do Senhor a fim de preparar-lhe as vias.

Diante de Maria, os pastores de Belém tornaram-se os primeiros apóstolos do Messias junto aos judeus, e os magos o foram junto aos gentios;  quando afinal os profetas Simeão e Ana puderam ter o Menino Jesus em seus braços no Templo, receberam-no de Maria, e proclamaram para as almas piedosas de Jerusalém o surgimento do Cristo que elas tanto aguardavam;  o milagre que Maria obteve em Caná confirmou na fé os cinco primeiros apóstolos;  Jesus agonizante confiou a Maria o apóstolo São João, num ato em que este representava os doze apóstolos e os apóstolos de todos os tempos;  enfim, foi junto a Maria que os apóstolos receberam no cenáculo o Espírito Santo, que consumou-lhes a formação apostólica e os enviou, poderosos em palavras e obras, a todo o universo.

Os cristãos dos primeiros séculos mantiveram o sentimento da missão de Maria na Igreja. Comprova-o, por exemplo, o relato de São Gregório de Nissa sobre a aparição da Virgem a São Gregório Taumaturgo, para lhe dar por meio de São João o símbolo da fé. Esse sentimento tornou-se mais vivo à medida que o pensamento da nova Eva atraía mais a atenção dos fieis. No início do século 5, São Cirilo proclamou em Éfeso, na tarde em que se definiu a maternidade divina de Maria, o papel da Teotokos na conversão e santificação do mundo:

"Honra e glória a ti, ó Santa Trindade, que nos convidaste para esta celebração! Honra também a ti, Santa Mãe de Deus! Por ti a Trindade é venerada, por ti a cruz preciosa é celebrada e adorada em todo o universo. Por ti o céu exulta, os anjos e os arcanjos se rejubilam, os demônios são postos em fuga e os homens são convidados ao céu. Por ti todas as criaturas mergulhadas nas trevas da idolatria são conduzidas ao conhecimento da verdade, os que creem atingem o santo batismo, e em todo o universo se constroem igrejas. Por teu auxílio as nações praticam a penitência. O que mais? Por ti o Filho único de Deus, luz verdadeira, brilhou diante dos que jaziam nas trevas e nas sombras da morte. Por ti os profetas previram, os apóstolos pregaram a salvação aos povos. Quem poderá enumerar todas as tuas grandezas, ó Maria, Mãe e Virgem?"

Nesse panegírico, o grande defensor da maternidade divina intercala as maravilhas realizadas por Maria durante a vida do Redentor com as que Ela pratica depois da sua morte. De fato essas maravilhas provêm da mesma fonte, que é a cooperação de Maria na nossa Redenção.

Os Padres da Igreja e os escritores eclesiásticos dos séculos seguintes dão a Maria os títulos mais variados e mais curiosos -- muitos deles intraduzíveis, devido à sua concisão enérgica -- para exaltar sua ação universal e totipotente em favor das almas: terror dos demônios, destruidora do inferno, nosso escudo de defesa, proteção do mundo, fortaleza do povo cristão, nosso único remédio, curadora da miséria humana, nossa âncora, nosso asilo, nossa advogada, padroeira dos pecadores, retorno dos desgarrados, solução de todos os problemas, etc.

Desde o século 9, encontramos na liturgia a célebre aclamação: "Alegrai-vos, ó Maria, pois sozinha esmagastes todas as heresias no mundo inteiro!". Essa vitória de Maria sobre todas as heresias não se limita ao seu papel nos mistérios da Encarnação e Redenção, é vista como uma vitória em todos os tempos. Por isso, cada vez que surge um erro novo, o povo cristão, estimulado por seus pastores, recorre àquela que é a Guardiã da fé, pedindo-lhe que novamente esmague a cabeça da antiga serpente. Da mesma forma, quando a Igreja é ameaçada pelos inimigos externos do nome cristão -- os turcos em particular, -- volta-se para Maria, com a segurança de que obterá por meio dela triunfos miraculosos. Lembremos, neste sentido, as vitórias de Lepanto em 1571, de Viena em 1683, de Peterwardein em 1716, como também as festas do Santo Nome de Maria e do Rosário, instituídas para comemorar as intervenções daquela que é sempre vitoriosa.

Em vários países da cristandade, apóstolos converteram milhares de pagãos e pecadores, e o mais notável é que todos eram grandes devotos da Virgem, atribuindo a Ela os sucessos mais brilhantes quando pregavam suas misericórdias e grandezas. Um dos mais famosos é São Luís Grignion de Montfort, que nos primeiros anos do século 18 exerceu maravilhosa influência apostólica na Vandéia e na Bretanha, pela pregação do Rosário e da santa escravidão a Maria.

No texto do Gênesis sobre as inimizades entre a Mulher e a serpente, compartilhadas pelas descendências de ambas, ele percebe a afirmação de uma luta eterna entre o demônio e a Virgem, entre o exército de Satanás e os servos de Maria: "Deus formou uma única inimizade -- a mais irreconciliável, que permanecerá e aumentará até o fim do mundo -- entre sua digna Mãe e o diabo, entre os filhos e servos da Santa Virgem e os filhos e sequazes de Lúcifer, de tal modo que a mais terrível inimiga que Deus criou contra o demônio é Maria, sua santa Mãe.

O poder de Maria sobre todos os demônios brilhará particularmente nos últimos tempos". Dele é uma profecia célebre sobre os apóstolos dos últimos tempos, quando a Santíssima Virgem suscitará grandes santos, apóstolos irresistíveis porque estarão entregues a Ela de corpo e alma e participarão do seu poder. (São Luís Grignion de Montfort, Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, nos 47-59.)

Um século mais tarde o Pe. Chaminade, que não conhecia os escritos de Montfort, ensinou doutrina similar: "A vida da Igreja foi sempre assinalada pelos combates e gloriosos triunfos da augusta Maria. Depois que Deus insuflou a inimizade entre Ela e a serpente, foi sempre dela a vitória sobre o demônio e o inferno. Todas as heresias, segundo a Igreja, tiveram de curvar-se diante da Santíssima Virgem, e pouco a pouco foram por Ela reduzidas ao silêncio do nada. Em nossos dias a grande heresia dominante é a indiferença religiosa, adormecendo as almas no torpor do egoísmo e no marasmo das paixões". Em seguida, apresentando o quadro das devastações feitas pela impiedade no início do século 19, o Pe. Chaminade prossegue: "Esta descrição tristemente fiel da nossa época está longe de nos desanimar. O poder de Maria não diminuiu, e cremos firmemente que Ela vencerá essa heresia, como venceu as outras.

Hoje como ontem, Ela é a Mulher por excelência, prometida para esmagar a cabeça da serpente, e Jesus Cristo nos ensina que Ela é a esperança, a alegria, a vida da Igreja e o terror do inferno. A Ela está reservada em nossos dias uma grande vitória, pois lhe pertence a glória de salvar do naufrágio a fé ameaçada".

A fé do Pe. Chaminade na missão conquistadora da Virgem Imaculada inspirou-lhe, como consequência prática de grande porte, a fundação de muitas associações, verdadeiros batalhões de soldados de Maria destinados a colaborar com Ela na conquista das almas, em sua luta secular contra Lúcifer. Inicialmente foram as congregações de Bordeaux, "santas milícias que avançam em nome de Maria e são conduzidas por Ela, com o propósito de combater as potências infernais em obediência a quem esmagou a cabeça da serpente".

Após afirmar aos seus discípulos a sua fé na "vitória reservada a Maria em nossos dias", o Pe. Chaminade prossegue: "Compreendendo esse pensamento celeste, apressamo-nos em oferecer a Maria nossos fracos serviços, para trabalhar sob suas ordens e combater ao seu lado. Alistamos-nos sob sua bandeira, como seus soldados e ministros, e nos engajamos por um voto especial a ajudá-la na sua nobre luta contra o inferno, com todas as nossas forças, até o fim de nossas vidas. Uma Ordem célebre assumiu o nome e o estandarte de Jesus Cristo [jesuítas], e como ela assumimos o nome e o estandarte de Maria, prontos a voar para onde Ela nos chamar, a fim de difundir seu culto, e por meio dele o reino de Deus nas almas".

A voz de Roma confirmou o sentimento da Tradição sobre a missão apostólica de Maria, e o fez de modo muito claro. Além das festividades do Santo Nome de Maria e do santíssimo Rosário, acima mencionadas, outras como a de Nossa Senhora da Piedade e Maria Auxílio dos Cristãos foram instituídas por razões análogas, e também aprovados a missa e o ofício de Maria Rainha dos Apóstolos. Sobretudo os últimos Papas se dedicaram a inculcar no povo cristão o papel de Maria nas lutas e conquistas do apostolado católico.

Na encíclica Adjutricem populi, (1895) Leão XIII explica: "Não parece exagerado afirmar que foi principalmente sob a direção da Santíssima Virgem, e com a sua ajuda, que a sabedoria e a lei do Evangelho, apesar de extremas dificuldades, se expandiram tão rapidamente a toda a terra, levando consigo nova ordem de justiça e paz". Passando às consequências práticas desse pensamento, afirma: "Há muito tempo desejamos tornar a salvação da sociedade humana dependente da expansão do culto a Maria, fazendo-a repousar assim sobre uma cidadela inexpugnável". Ordenou ainda a recitação pública do Rosário, "a fim de que no nosso tempo de grandes provações e tempestades prolongadas a Santíssima Virgem, que tantas vezes foi vitoriosa sobre os inimigos terrestres, nos faça também triunfar dos inimigos infernais". (Ofício do Santíssimo Rosário.)

São Pio X, com seu propósito de restaurar tudo em Cristo, indicou desde o início do seu pontificado, como grande meio dessa restauração, um aumento da piedade em relação à Virgem: "Quem não considera ainda estabelecido que não existe caminho mais seguro nem mais rápido do que Maria, para unir os homens a Jesus Cristo a fim de obter por meio dele essa perfeita adoção de Filho, que nos torna santos e sem mancha diante de Deus? A partir do momento em que o Filho de Deus é o autor e consumador da nossa fé, é totalmente necessário que Maria seja reconhecida como participante dos divinos mistérios, de algum modo sua guardiã, e sobre Ela repousa a fé de todos os séculos, como seu mais nobre fundamento abaixo de Jesus Cristo.

Tendo em vista que aprouve à Divina Providência dar-nos o Homem-Deus por meio da Virgem, que se tornou fecunda pela virtude do Espírito Santo, o que existe para nós mais natural do que receber Jesus das mãos de Maria? Ninguém no mundo conhece Jesus tanto quanto Ela, ninguém é melhor mestre nem melhor guia para tornar Jesus conhecido. Daí se conclui que ninguém consegue unir os homens a Jesus tanto quanto Ela". (Ad diem illum, 2/02/1904.)

Bento XV, por ocasião do primeiro centenário da Sociedade de Maria, escreveu ao Pe. Hiss, Superior geral, uma carta que corresponde a uma aprovação dos conceitos do Pe. Chaminade sobre o apostolado mariano: "Não foi sem uma aprovação divina que o Pe. Chaminade se exilou em Saragoça. Visitando lá o santuário de nossa augusta Soberana, compreendeu que o desígnio da misericórdia divina é reconduzir sua pátria a Jesus por meio de Maria. Sem sombra de hesitação, sentiu que lhe estava reservada uma parte importante nesse apostolado, e pela meditação e a prece preparou-se para tal missão aos pés da augusta imagem. Não constitui vão elogio, sem dúvida, distinguir Maria pelo título de Rainha dos Apóstolos. Do mesmo modo que assistiu com seus conselhos e sua ajuda os Apóstolos, educadores da Igreja nascente, é necessário afirmar que Maria sempre auxilia os herdeiros do trabalho apostólico, que na Igreja adulta se esforçam para preparar as conquistas ou reparar os desastres".

O Papa Pio XI, que "desde o início de seu pontificado volveu os olhos e o coração para a dulcíssima Virgem, como esperando por meio dela a salvação universal", não somente aproveitou todas as ocasiões para demonstrar sua devoção à celeste protetora, como ainda reafirmou o papel apostólico de Maria em duas encíclicas nas quais fala do apostolado -- uma sobre as missões, outra sobre a unidade da Igreja. A primeira dessas encíclicas conclui com esta prece: "Que desçam sobre todos os empreendimentos [missionários] o sorriso e o favor da santíssima Rainha dos Apóstolos, cujo coração materno, tendo recebido no Calvário a responsabilidade sobre todos os homens, cubra com sua solicitude e seu afeto aqueles que ignoram ter sido redimidos por Cristo, como também os felizes beneficiários dessa Redenção".

Na encíclica sobre a unidade da Igreja, depois de exprimir o desejo de que retornem ao seu regaço todos os cristãos separados, Pio XI acrescenta: "Em assunto de tanta importância, tomamos e queremos que todos tomem como advogada a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe da divina graça, destruidora de todas as heresias e socorro dos cristãos, para que nos obtenha o quanto antes a vinda desse dia tão desejado em que todos os homens ouvirão a voz de seu Filho, chamando-os à unidade de espírito nos vínculos da paz". Na sua carta ao Primaz da Espanha, por ocasião do congresso mariano de Sevilha, retorna à mesma ideia, acrescentando a afirmação de que, particularmente em nosso tempo, é somente de Maria que o povo cristão deve esperar sua salvação.

Quanto a Pio XII, quem não se lembra do ato solene de 31 de outubro de 1942, pelo qual consagra o mundo ao Coração Imaculado de Maria? Trata-se de uma afirmação explícita do papel vitorioso de Maria em todas as lutas da Igreja contra os sequazes de Satanás e em todas as atividades de apostolado católico: "Rainha do santíssimo Rosário, socorro dos cristãos, refúgio do gênero humano, triunfadora em todas as batalhas de Deus, nós nos prosternamos suplicantes diante de vosso trono, certos de obter misericórdia e encontrar graça e socorro oportuno para as calamidades atuais".

Em seguida suplica à Virgem que envie aos homens "as graças que em um momento podem converter os corações humanos;  fazer com que o Sol de Justiça ilumine os infiéis e todos os que ainda permanecem nas sombras da morte;  reconduzir ao único aprisco de Cristo os povos separados pelo erro ou a discórdia;  obter paz e liberdade completas para a Igreja de Deus;  estancar o dilúvio invasor do neopaganismo;  aumentar nos fieis o amor à pureza, a prática da vida cristã e o zelo apostólico, a fim de que os povos que servem a Deus aumentem em merecimento e em número".

Conclui por um ato de fé no triunfo do reino de Deus pela intervenção de Maria: "Que vosso amor e vosso patrocínio apressem o triunfo do reino de Deus, e que todas as gerações humanas, pacificadas entre si e com Deus, vos proclamem bem-aventurada e convosco entoem de um extremo a outro do mundo o eterno Magnificat de glória, amor e reconhecimento ao Sagrado Coração de Jesus, único em que se podem encontrar a verdade, a vida e a paz".

3º. Consequência prática


Não é este o momento de detalhar as consequências práticas da doutrina exposta neste capítulo, mas é fácil entrever sua extrema importância. Se Cristo confiou à sua Mãe a alta direção do apostolado católico em todo tempo e lugar, convém a todos os que se ocupam do apostolado entrar nas intenções divinas e exercer sua atividade sob a dependência de Maria. Trabalhando em favor das almas na união mais estreita possível com a Virgem imaculada, podemos contar com infalíveis sucessos, pois estaremos atraindo as bênçãos de Deus e participando da grande vitória daquela que deve, para todo o sempre, esmagar a cabeça da serpente. Nossa época, que é a da Ação Católica, é por excelência a época do apostolado. Para dar à atividade apostólica seu máximo de rendimento, é importante exercê-la sob a direção da Rainha dos Apóstolos e aplicar-nos a instaurare omnia in Christo, Maria duce. (restaurar tudo em Cristo sob a direção de Maria)

Essa ideia, que já no século 13 se encontra na base do apostolado dos Servitas de Maria, é como o leit-motiv da atividade de certo número de associações apostólicas recentes. Ela inspira o apostolado dos religiosos e religiosas fundados por São Luís Grignion de Montfort, Pe. Chaminade, São Vicente Pallotti, e tende a renovar o espírito de outras congregações, há muito satisfeitas com uma piedade um tanto preguiçosa. A mesma ideia deu nascimento a três grupos de apóstolos principalmente leigos, fundados em diferentes pontos do globo, independentemente uns dos outros, mas todos movidos pela mesma confiança em Maria, a celeste antagonista de Satanás.

Realizam maravilhas absolutamente espantosas, nos mesmos locais onde os esforços do clero se tornaram aos poucos impotentes diante de obstáculos aparentemente intransponíveis: Ação Mariana, fundada há uma dezena de anos na África do Sul;  Milícia de Maria Imaculada, que surgiu na Polônia em 1917 e se difundiu na Itália e no Japão;  Legião de Maria, criada na Irlanda em 1921, que depois de 1927 se expandiu com extrema rapidez nos cinco continentes, contando hoje (1945) na França com 350 centros e continua se expandindo, como também prossegue nos outros países sua marcha conquistadora. Além disso, nos movimentos especializados de Ação Católica uma proporção crescente de jovens apóstolos se convence da eficácia notável do apostolado resultante da consagração a Maria, Rainha dos Apóstolos.

Capítulo, 5º. A REALEZA DE MARIA


Os títulos de rainha, soberana e senhora foram dados a Maria pelos padres, teólogos e santos. A antiga iconografia se comprazia em representar a Mãe de Jesus com as características de rainha ou imperatriz, mais até do que com as características de mãe. A Idade Média viu surgir maravilhosas catedrais nos países cristãos, além de inúmeras outras igrejas, quase todas dedicadas a Maria sob a invocação de Notre Dame, isto é, nossa Soberana. Na ladainha lauretana a Igreja invoca Maria como rainha sob onze títulos. Os Papas, em particular Leão XIII e São Pio X, conferem-lhe com frequência esse título. Pio XI enviou seu legado para consagrar com o título de Rainha do mundo a catedral de Port Saïd.

Pio XII, em carta de 15/04/1942 ao Cardeal Maglione, pede uma cruzada de orações à Santíssima Virgem durante o mês de maio seguinte, a fim de obter a paz: "Como todos sabem, da mesma forma que Jesus Cristo é Rei dos reis e Senhor dos senhores, assim também sua augusta Mãe é honrada por todos os fieis como Rainha do mundo".

1º. Fundamentos da realeza de Maria


Cristo é rei como Deus, por ser o Senhor soberano de todas as coisas;  e também como homem, em virtude da união hipostática que torna sua humanidade e sua divindade uma só Pessoa. Pio XI afirma na encíclica Quas primas, sobre Cristo Rei: "Os anjos e os homens não devem adorar Cristo apenas como Deus, mas também obedecer e submeter-se a Ele pela autoridade que possui como homem, pois sua própria união hipostática lhe confere poder sobre todas as criaturas".

A realeza de Maria se fundamenta, como a de seu Filho, na sua participação nos mistérios da Encarnação e Redenção, e ainda na sua função de Mãe de todos os homens. Maria é Mãe do Homem-Deus, que é rei;  e a mãe do rei é rainha, participando em certa medida da sua soberania. Este princípio, que é verdadeiro no caso das mães de reis comuns, é ainda mais verdadeiro no que se refere a Maria. Inicialmente porque Jesus, no seu infinito amor por sua Mãe, a fez participar em todas as suas prerrogativas, na medida em que podem ser transmitidas a uma criatura: Conceição imaculada, isenção do pecado e da concupiscência, plenitude de graça, glorificação antecipada de seu corpo, etc. Por que a deixaria sem participação na sua realeza? Em segundo lugar, porque Maria deu Jesus ao mundo para ser rei, de acordo com a mensagem do anjo afirmando que "Ele reinará para sempre".

Dependeu do consentimento de Maria para adquirir essa realeza, tornando-se rei no momento em que se tornou filho de Maria, não depois do seu nascimento. Daí resultou para Ele a obrigação especial -- não de estrita justiça, mas de piedade filial -- de partilhar com Ela sua soberania.

Toda realeza pertence ao Pai, juntamente com o Filho e o Espírito Santo. Por sua ação na Encarnação, Maria foi associada ao Pai na produção do Filho de Deus feito homem. Efetivou assim o poder de Cristo sobre toda a criação, que Deus havia feito em vista do Filho. Ninguém pode estranhar, portanto, que Deus tenha desejado e concedido a Maria a participação com seu Filho no poder sobre toda a criação. Sendo o Espírito Santo autor e rei de toda a criação, juntamente com o Pai e o Filho, é natural que também Ele tenha levado a participar na sua realeza aquela que o seu poder tornou Mãe de Cristo-Rei.

Na encíclica Quas primas, Pio XI ensina: "Cristo reina sobre nós, não apenas por direito de natureza, mas ainda por direito adquirido, isto é, pelo direito de redenção. Não se esqueçam os homens do alto preço que nossa salvação custou a nosso Salvador. Nós não pertencemos a nós mesmos, pois Cristo nos resgatou por alto preço".

Maria participa com seu Filho desse segundo título de soberania, pois é co-redentora ao lado do Redentor. Associada por Cristo à obra da salvação humana, mereceu para nós, por conveniência, o que Cristo mereceu por justiça, como afirma São Pio X. Esse título conquistado coloca-a em posição destacada em relação à de todas as rainhas, (que se limitam a gozar as prerrogativas pertencentes a seus filhos ou esposos) pois conquistou sua soberania em união com seu Filho, ao custo de não sabemos quantos sacrifícios.

A função de Mãe dos homens confere igualmente a Maria a dignidade de Rainha do mundo. Toda mãe é rainha no pequeno reino da sua família, e nesse reino governa, julga, pune, recompensa, faz reinar a ordem na paz e no amor. Maria é Mãe da imensa família humana, e como sua rainha quer fazer reinar a ordem e a paz de Cristo.

2º. Como se exerce a realeza de Maria


Pertencendo a realeza de Maria a uma mãe, trata-se antes de tudo de um reinado de bondade e misericórdia. A celeste Rainha exerce suas funções difundindo alegria e benefícios aos seus súditos fieis, tanto no céu como na terra.

No céu, Maria contribui para a alegria dos anjos: Eles são felizes por se verem ultrapassados em pureza e glória pela Mãe de seu Rei;  felizes por ter sido escolhido um dentre eles para tratar com Ela em nome de Deus;  por terem sido seus guardiães em diversas circunstâncias da sua vida terrestre;  por serem escolhidos atualmente como mensageiros para execução dos seus desígnios de amor aos homens;  felizes talvez por se lembrarem de que no início dos tempos eles foram admitidos às alegrias celestes por terem consentido em adorar o futuro Filho de Maria.

Para a alegria dos bem-aventurados: Dos patriarcas e profetas que previram e anunciaram sua vinda;  dos pagãos fieis à sua própria consciência;  dos que na terra a amaram e serviram com presteza;  de todos, sem exceção, pois todos reconhecem que, depois de Deus, devem a Ela sua bem-aventurança, e o céu seria menos belo sem Maria.

Na terra Maria distribui socorro, confiança e vitória à Igreja militante. Na religião dos cristãos que ignoram ou esquecem a Virgem, falta um elemento de simplicidade, abandono e alegria, que dilata a alma. Como a vida celeste é o prolongamento e aperfeiçoamento da vida na terra, tanto lá quanto aqui a presença de Maria acrescenta uma nota de suavidade especial à nossa bem-aventurança.

Além de Rainha da Igreja triunfante e militante, Maria o é também da Igreja padecente, levando consolo, alívio e libertação ao Purgatório.

A realeza de Maria não se reduz a essa incessante distribuição de graças e alegrias. Em relação aos seus súditos, as rainhas terrestres limitam sua atuação a obter-lhes favores, não costumam participar no governo. Mas devemos observar que Deus quis associar Maria a todos os mistérios de seu Filho, por meio de uma participação tão ativa quanto fosse compatível com sua condição. Consequentemente, devemos esperar que também participe ativamente na realeza de seu Filho, resultante desses mistérios. Reinar consiste em exercer dominação sobre os súditos, e Cristo reina sobre as inteligências, os corações, as vontades, como também sobre os corpos dos fieis, além de distribuir benefícios.

Maria exerce influência análoga sobre seus súditos. Reina sobre as inteligências, fazendo-as compreender melhor a doutrina de Cristo, sobretudo a que se relaciona com a devoção ao Pai e seu amor aos homens;  reina sobre os corações, atraindo-os pelos encantos do seu afeto materno a fim de conduzi-los a Jesus;  reina sobre as vontades, inclinando-as suavemente a observar todos os mandamentos de seu divino Filho, mesmo os mais rigorosos;  reina sobre os corpos, ensinando os homens a submeter-se à lei de Deus pela prática da temperança e da castidade. Quanto mais Maria reina numa alma, tanto mais domina nela a realeza de Jesus.

Reinar consiste ainda em lutar para ampliar o domínio sobre todos os que, por direito, devem estar submissos à autoridade do soberano, tanto os que dela se distanciaram quanto os que ainda não lhe estão submissos. A realeza de Cristo está longe de ser proclamada em todo o mundo. Mal conhecida, e até combatida em nações cristãs, é ainda desconhecida completamente por dois terços da humanidade. Cristo deve submeter todas essas multidões, e nesse trabalho de conquista Maria tem seu papel a desempenhar. Sua realeza sobre a terra é sem dúvida de amor, mas também militante e conquistadora. Da mesma forma que os pastores e os reis magos, os hereges e idólatras encontrarão Jesus junto a Maria. É preciso que Maria reine para que venha o reinado de Cristo, a fim de realizar-se plenamente a prece que o Senhor nos ensinou a repetir diariamente: Adveniat regnum tuum. Apressar a vinda do reino de Maria é apressar a vinda do reino de Cristo.



PARTE, 2º. OS PRIVILÉGIOS DE MARIA


Como já vimos, as grandezas de Maria podem ser divididas em dois grupos. O primeiro é constituído pelas que representam sobretudo funções: maternidade divina, maternidade espiritual, mediação universal, papel de Maria no apostolado católico, realeza universal. O segundo grupo engloba as grandezas que representam privilégios concedidos a Maria em razão de suas funções, ou como consequências delas: Imaculada Conceição, virgindade, plenitude de graça, etc. Esta divisão didática que fazemos não tem nada de absoluto, pois as funções de Maria são também privilégios, e os seus privilégios são também funções. Porém algumas dessas grandezas são sobretudo funções, e outras se afiguram principalmente como privilégios. Já abordamos as funções de Maria na primeira parte deste livro, e passaremos a abordar nesta segunda parte os privilégios de Maria.

Capítulo, 6º. IMACULADA CONCEIÇÃO


Não é raro encontrar pessoas, mesmo instruídas, com ideias estranhas sobre a Imaculada Conceição de Maria. Paras alguns, trata-se da conceição virginal de Jesus por Maria. Outros pensam que Maria foi concebida de Santa Ana e do Espírito Santo, do mesmo modo como Jesus foi concebido de Maria e do Espírito Santo. É evidente que tais conceitos são reprovados pela Igreja.

Para se entender a Imaculada Conceição, é necessário conhecer duas afirmações de fé: a justiça original e o pecado original.

A justiça original consistia na retidão e harmonia de todas as potências do homem. Compreendia em primeiro lugar a submissão da razão e vontade do homem a Deus, por meio da graça santificante. Ao dom da graça santificante acresciam-se as virtudes ditas infusas e os sete dons do Espírito Santo, que acompanham sempre o estado de graça e nos são dados para podermos participar da vida sobrenatural. Além disso havia os dons de integridade, definidos pela teologia como dons particulares destinados a aperfeiçoar a própria natureza humana. Enquanto a razão e a vontade de Adão se mantinham submissas a Deus, as potências inferiores de sua alma eram perfeitamente submissas à razão e à vontade. Seu corpo era também submisso à alma, devendo ser preservado de toda doença e também da morte.

Nosso primeiro pai havia recebido essa justiça original não só para si mesmo, mas também para todos os seus descendentes, aos quais devia transmiti-la como herança, da mesma forma que um rei transmite sua situação à sua posteridade.

Tendo cometido o pecado, Adão perdeu a justiça original. Sua razão e vontade livres se revoltaram contra Deus. Ao mesmo tempo, suas faculdades inferiores se revoltaram contra sua razão e vontade, e o corpo cessou de agir como instrumento dócil da alma. Daí as denominadas chagas do pecado original: ignorância do espírito, fraqueza da vontade, desordem ou concupiscência das faculdades inferiores, sofrimento e morte do corpo. Essas chagas não se identificam com o pecado, representam seu aspecto material e suas consequências, consistindo o pecado na perda voluntária da amizade de Deus.

Perdendo a justiça original, Adão não mais podia transmiti-la aos seus descendentes, da mesma forma que um rei não pode transmitir aos filhos um reino que perdeu. Como consequência, todos os homens nascem no estado em que se encontrava Adão depois do seu pecado. A diferença é que a situação de Adão decorria da sua culpa pessoal, ao passo que a nossa se deve à culpa de Adão, equivalendo à situação de príncipes destituídos do direito ao reino pelo fato de o rei tê-lo perdido. É verdade que Adão se penitenciou e mereceu reencontrar a amizade de Deus para si mesmo, mas não para sua posteridade. Exemplo semelhante é o de Saul, cujos filhos perderam o direito ao reino por culpa dele, embora ele mesmo o tenha mantido até o fim da vida. Quanto a Adão, jamais pôde reaver os dons especiais que lhe haviam sido concedidos com o estado de justiça original, e cuja perda fora consequência do seu pecado.

A Imaculada Conceição de Maria consiste essencialmente na sua isenção do pecado original. Ela jamais esteve nesse estado de inimizade em relação a Deus, no qual todos os homens se encontram antes do batismo. Desde o primeiro momento de sua existência, sua alma foi ornada pela graça santificante, que a tornava filha amada de Deus.

Examinaremos a seguir como Maria se tornou isenta da lei do pecado. Esclareçamos desde já que esse privilégio lhe foi dado por pura liberalidade de Deus, e não como consequência de um direito próprio. A Igreja define que esse privilégio lhe foi concedido por Deus "na previsão dos méritos do seu Filho". (Ver a oração da festa da Imaculada Conceição e a bula Ineffabilis.)

Antigamente alguns teólogos rejeitavam a Imaculada Conceição sob o pretexto de que, se Maria tivesse sido concebida sem o pecado original, não teria participado dos frutos da Redenção que seu Filho mereceu para todos os homens, e isso estaria em contradição com o fato de Jesus ter morrido para a redenção de todos os homens, sem exceção. Mas o fato é que a Imaculada Conceição não anula nem contradiz a universalidade da Redenção. Maria foi também redimida, e até mais completamente do que nós, pois sua graça de redenção foi mais eficaz que a nossa, sendo nós libertados de um pecado efetivamente cometido, e Ela sendo preservada de um pecado que teria sido cometido sem a intervenção de Deus.

Os defensores da Imaculada Conceição apresentam uma metáfora que torna mais compreensível a afirmação acima. Segundo eles, pode-se socorrer de duas maneiras quem é vítima da lama: a primeira é ajudá-lo a sair da lama em que caiu;  a segunda, em evitar que ele caia na lama. Evidentemente esta segunda maneira é muito preferível. Transpondo o exemplo para o caso da Imaculada Conceição, vemos que Nosso Senhor nos resgatou depois que fomos atingidos pelo pecado original, e Maria foi resgatada antes de ser por ele atingida.

Outra comparação ressalta a mesma ideia. De acordo com a lei antiga, todos os filhos de escravos nascem escravos. Um benfeitor pode libertar os escravos depois que nasceram, mas pode também escolher um para ser libertado antes de nascer ou de ser concebido. Neste último caso, se fossem aplicadas as normas do direito, essa criança seria escrava, mas de fato a escravidão nunca a atingiu. Nossa libertação em relação ao pecado se deu do primeiro modo, no momento do batismo. Maria foi libertada do segundo modo, por meio da sua Imaculada Conceição.

1º. Imaculada Conceição, verdade revelada


A revelação sobre Maria, feita aos primeiros cristãos, não continha explicitamente a Imaculada Conceição, mas permite supô-la e predispõe o espírito a afirmá-la. O que aparece imediatamente nos relatos sobre a origem humana de Jesus é a pureza virginal de sua Mãe, claramente desejada por Ela e ainda mais fortemente por Deus, que fez um milagre absolutamente único para preservá-la.

Aos olhos dos primeiros fieis, como também aos nossos, a pureza de corpo é um meio e um símbolo de outra pureza incomparavelmente mais necessária, que é a pureza de alma. Jesus se opôs várias vezes aos escrúpulos hipócritas dos que atribuíam tanta importância às purificações legais, e afirmou que a verdadeira pureza deve residir no coração, sendo a condição essencial para se aproximar de Deus: "Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois verão a Deus". Portanto, a pureza virginal de Maria -- desejada por Ela e por Deus em função de seu Filho -- era antes de tudo o meio e o símbolo da pureza que devia reinar na sua alma.

O Evangelho não induz a restringir a pureza de Maria ao momento da Encarnação. Como ocorre com os outros benefícios que recebeu de Deus, essa pureza pode ser entendida naturalmente na sua mais ampla extensão, a partir dos seus primeiros instantes e durante toda a sua vida. Para os contemporâneos de São Paulo, que insiste com frequência na ideia da predestinação e do chamado, Maria é apresentada como chamada e predestinada desde suas origens para ser a Mãe do Deus de pureza. O Evangelho mostra as quedas ou imperfeições dos apóstolos, ainda que momentâneas, mas não deixa transparecer em Maria nenhuma mancha.

Sem dúvida, uma pureza assim representa algo de excepcional. A maternidade divina contém em relação a Jesus uma dignidade e intimidade verdadeiramente excepcionais.

Bem mais ainda, a Sagrada Escritura permite conjecturar em Maria, antes mesmo da Encarnação, uma santidade excepcional:

O anjo a saúda com deferência inaudita;  proclama-a cheia de graça, o que significa que está cheia da pureza de alma, que é a graça mais necessária para se aproximar de Deus;  declara que o Senhor está com Ela, evidentemente para torná-la uma criatura privilegiada;  repete que encontrou graça diante de Deus, isto é, que diante de Deus é objeto de favor especial;  a maternidade divina exige condições muitíssimo especiais;  Izabel, cheia do Espírito Santo, a exalta como bendita entre todas as mulheres, portanto única entre elas, bendita como é bendito o fruto de suas entranhas, Deus de toda pureza;  sob a inspiração do Espírito Santo, Maria louva a Deus, que fez nela grandes coisas;  não apenas uma grande coisa, que é a maternidade divina, mas grandes coisas, o que inclui além dessa maternidade todos os privilégios que ela supõe.

Quando descreve no Apocalipse a luta do dragão contra a mulher que daria à luz um filho, São João explica que o dragão é "a antiga serpente, o demônio e Satanás, o sedutor de toda a terra". Essa visão do último livro inspirado lembra a profecia do primeiro, a propósito da mesma serpente. Antes de condenar nossos primeiros pais prevaricadores, Deus diz à serpente: "Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Ela te esmagará a cabeça". Nesta profecia, que mostra de um lado Satanás e seus asseclas, de outro Maria e Jesus, logo no início a Mulher não está do lado de Satanás, passando depois para o lado do Filho, mas surge decididamente do lado de Jesus, oposto a Satanás e à sua raça, portanto não tendo nunca estado sob seu domínio. (Os judeus do Antigo Testamento viram nessa mulher e na sua descendência apenas Eva e sua posteridade, mas isso não reduz em nada para os fieis a força da profecia, cujo autor é Deus.

O significado que nela colocou ultrapassa o sentido óbvio das palavras, de acordo com a interpretação abalizada da Igreja, que tem a assistência do Espírito Santo. São João, autor inspirado, nos convida a reportarmo-nos à história da antiga serpente, sedutora de toda a terra.)

A revelação nos mostra Maria como uma criatura totalmente pura, para que sua pureza perfeita a torne digna Mãe de Deus. Reconhece em Maria uma pureza excepcional, da mesma forma que são excepcionais sua vocação e suas graças. Mostra ainda uma pureza constante, que permanece durante toda a vida.

Teriam as primeiras gerações de cristãos reconhecido a Virgem como puríssima desde o primeiro momento de sua conceição? Esse assunto não se levantava nessa época, porque a doutrina do pecado original não ocupava ainda o espírito dos primeiros cristãos, ainda que ensinada por São Paulo. De qualquer forma, o ensinamento existente nessa época não fornece nenhuma indicação que permitisse supor alguma mancha nessa pureza da Mãe de Deus, seja no início ou em qualquer outro momento de sua existência. Mais ainda, se uma graça excepcional era necessária para que Maria fosse pura já nesse primeiro momento, o próprio Evangelho nos ensina que Deus lhe concedeu graças excepcionais, sendo uma delas um milagre inaudito em favor de sua pureza.

Durante muitos anos, as gerações cristãs continuaram a considerar a pureza de Maria genericamente, sem se dedicarem a contemplá-la especialmente no primeiro momento da sua existência. No entanto houve progresso na afirmação da sua Imaculada Conceição, no sentido de que se insistia com mais contentamento nessa pureza da Mãe de Jesus. Sua virgindade teve de ser posta em relevo, para defender contra os hereges a divindade de seu Filho, resultando daí um esforço maior para mostrar Maria como criatura totalmente pura. Enquanto isso, sob a influência do ascetismo nascente, a castidade virginal foi exaltada como o meio e o símbolo de toda pureza e santidade, e a virgindade miraculosa de Maria levou a venerá-la como a criatura pura por excelência. Ela era chamada Virgem pura, Virgem santa, Santíssima Virgem, etc. Depois se acrescentaram palavras novas: toda pura, toda imaculada, absolutamente imaculada Virgem, etc.

Por outro lado, as características inteiramente excepcionais de Maria, situando-a quase fora da humanidade e totalmente próxima de Jesus, surgiram com evidência cada vez mais resplandecente, à medida que as lutas cristológicas atraíram mais a atenção sobre seu papel nos mistérios da Encarnação e Redenção, fazendo ver nela a nova Eva ao lado do novo Adão, que era Jesus.

Desse modo estavam postos todos os elementos para ser reconhecida sem hesitação a sua pureza original, quando a questão fosse levantada. Essa ocasião surgiu quando, em alguma igreja do Oriente, foi instituída uma festa em honra da sua conceição. Sem dúvida o objetivo direto da festa não era afirmar a ausência de pecado original em Maria, o que se queria era simplesmente honrar a sua origem, da mesma forma que se honrava a de seu Filho com a festa da Anunciação, e o fim da existência terrena de Maria com a festa da Dormição. Porém, tendo em vista que a Igreja não estabelece uma festa para honrar o que não seja puro e santo, afirmava-se implicitamente por meio dessa festa litúrgica que Maria tinha sido totalmente pura desde a sua origem. A festa se difundiu no Oriente, logo depois no Ocidente, e durante muitos séculos não encontrou oposição.

A partir do século 12, muitos grandes teólogos levantaram dúvidas e contradições sobre essa doutrina, ou ao menos contra a oportunidade da festa da Conceição de Maria. Entre eles havia santos muito devotos da Virgem, sustentando ser necessário atribuir à Mãe de Deus todos os privilégios que não fossem incompatíveis com a fé, mas não viam como se poderia atribuir-lhe o da Imaculada Conceição. Para alguns, esse privilégio exigiria também a conceição virginal de Santa Ana;  para outros, excluiria Maria da Redenção, que foi universal. No entanto, a Tradição não autoriza nenhuma destas duas alegadas exigências. Isso gerou grande desentendimento entre os estudiosos, mas o povo em geral não se embaraçava com essas dificuldades, continuava venerando Maria como toda pura. A própria festa da Imaculada Conceição não cessou de se propagar.

Outros teólogos sustentavam esse privilégio de Maria, afirmando que a Imaculada Conceição não a excluía da Redenção universal. Pelo contrário, supunha uma redenção bem mais perfeita, tal como convinha à Mãe de Deus.

A oposição serviu para fazer brilhar ainda mais a pureza original da Virgem: Algumas universidades assumiram o compromisso de defendê-la;  Ordens religiosas foram erigidas em sua homenagem;  a própria corte pontifícia começou a celebrar essa festa;  concílios ecumênicos a afirmaram ou a supuseram, embora sem defini-la com autoridade infalível;  os Papas proibiram que ela fosse atacada. Assim a Imaculada Conceição se tornou o grande privilégio da Virgem, da mesma forma que sua virgindade o fora durante os quatro primeiros séculos, e sua maternidade divina depois do ano 431.

A piedade e a teologia se ocuparam do assunto de modo cada vez mais constante e amoroso. Como o Antigo Testamento foi a prefigura do Novo, foram nele encontradas inúmeras alusões, profecias, símbolos e tipos da Virgem Imaculada. Um franciscano compôs com esses dados uma graciosa compilação, denominada Pequeno Ofício da Imaculada Conceição, recitado ainda hoje nas Congregações Marianas e nas sociedades religiosas especialmente dedicadas ao culto de Maria Imaculada.

A glória da Imaculada brilhava assim desde a origem do mundo, atravessando os séculos do Antigo e do Novo Testamento. Com o passar do tempo já não se ouviam vozes discordantes entre os fieis, quando o Papa Pio IX decidiu acrescentar a essa piedosa convicção a distinção mais sublime, elevando-a à dignidade de dogma. Após consultar os bispos do mundo inteiro, e tendo encomendado o exame do assunto por vários grupos de teólogos, em 8 de dezembro de 1854 declarou, pronunciou e definiu: "A doutrina que sustenta que a Bem-aventurada Virgem Maria foi preservada de toda mancha e culpa original no primeiro instante de sua conceição, por uma graça e privilégio singular de Deus Todo-Poderoso, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi revelada por Deus, e deve consequentemente ser firme e constantemente admitida por todos os fieis".

Este triunfo da Imaculada Conceição foi sem igual, pois os dogmas anteriores, inclusive o da maternidade divina, haviam sido proclamados para refutar as heresias, enquanto a Imaculada Conceição foi definida diretamente para a glória de Maria.

Resumindo:

1º. Desde a origem do cristianismo, a Mãe de Jesus se apresenta aos fieis como uma Virgem toda pura durante toda sua vida;

2º. Em seguida se pensa em honrar de modo particular sua pureza no primeiro momento de sua existência;

3º. Depois alguns contestam, com base em argumentos a priori, que nesse primeiro momento Ela era também portadora da mancha original;

4º. Examinando mais atentamente, descobre-se que não está aí nenhuma mancha, e sim um ponto particularmente brilhante;

5º. Todos se dedicam então a comemorar ostensivamente a pureza imaculada da Mãe de Deus;

6º. A Igreja define a Imaculada Conceição como dogma de fé.

2º. Harmonias entre a Imaculada Conceição e os outros privilégios de Maria


Maria foi criada a fim de tornar-se Mãe de Deus. Portanto sua maternidade divina goza de anterioridade de vocação em relação à sua condição de filha de Eva. Consequentemente, deveria ser imaculada como Mãe de Deus, e não manchada como filha de Eva.

Já vimos que todas as graças adequadas a quem mereceu a condição de Mãe de Deus devem ser atribuídas a Maria. Evidentemente é mais próprio à Mãe de Deus não ser concebida no estado de inimizade com Deus, e sim no de amizade. Para avaliarmos a importância deste argumento, lembremo-nos de que Maria se tornou, como consequência da maternidade divina, associada do Pai no nascimento do Salvador, Mãe do Filho de Deus e Esposa do Espírito Santo.

Se cada um de nós tivesse o poder de tornar nossa mãe inteiramente pura, é claro que o faríamos. Sendo Maria Mãe do Filho de Deus, Jesus Cristo tinha esse poder, portanto criou-a totalmente imaculada: Potuit, decuit, ergo fecit -- podia, era adequado, logo fez, segundo a fórmula de Duns Scot. Jesus Cristo tinha mesmo motivos especiais para agir desse modo. Inicialmente, porque seu amor filial é infinitamente maior que o nosso;  se tivesse sido concebida no pecado, Maria estaria assim em estado de inimizade em relação ao seu Filho, o qual teria um motivo de aversão à própria Mãe;  se a Mãe de Cristo devia servir de modelo para nossas mães, como poderia realizar-se isso, caso Ela própria não tivesse gozado sempre o estado de graça?

Sendo Mãe do Filho de Deus, Maria é Mãe do Salvador, que veio para resgatar o gênero humano. Convinha que o resgate da sua própria Mãe se fizesse de modo mais excelente que o do resto da humanidade, e esse modo excelente consistiu numa preservação, em lugar de uma libertação. Maria é a esposa do Espírito Santo, cuja obra é de santificação. Era justo que o Espírito de amor santificasse a alma de sua Esposa de modo mais sublime que o das outras almas, isto é, impedindo que o pecado entrasse nela, em vez de removê-lo depois.

Maria é superior aos anjos. Tendo sido os anjos criados em estado de pureza, como poderíamos supor que a Rainha dos anjos fosse criada em estado de pecado? Maria é superior aos homens. Tendo sido nossos primeiros pais criados em estado de inocência, Maria seria em algo inferior a eles, se fosse criada em estado de pecado. Maria é cheia de graça, e isso exige que tenha recebido também a primeira graça de santificação.

Na Imaculada Conceição, admiramos a pureza absoluta de Maria no primeiro momento da sua existência, e a maternidade divina é de certo modo a extensão da sua pureza a um segundo momento da vida. A virgindade durante o parto excluiu Maria da maldição recebida por Eva: "Darás à luz mediante a dor". Isso exige também que tenha sido isenta do pecado original, causa dessa maldição.

Maria tem como missão ser a grande adversária do demônio, portanto não devia jamais ter estado sob sua influência. Seria inadmissível que o demônio pudesse lançar contra Ela: Houve um tempo em que eu era superior a vós, pois fui criado sem mancha, ao passo que fostes concebida com a mancha do pecado.

Maria deveria ser mediadora entre uma raça pecadora e um Deus ofendido. Como poderia desempenhar essa missão, se tivesse começado como inimiga desse Deus e cúmplice do ofensor? Maria estava destinada, juntamente com Cristo, a resgatar os homens do pecado e do demônio, por isso deveria ser inteiramente livre dessa escravidão. Maria foi chamada a ser nossa Mãe em todas as nossas necessidades e tentações. Portanto é necessário podermos recorrer a Ela com essa veneração e confiança absolutas que só podem ser inspiradas por uma alma inteiramente pura e amiga de Deus.

Todo pecado é consequência de um egoísmo, e a pureza perfeita é o esquecimento completo de si, o dom total de si mesmo a Deus, e às almas por causa de Deus. Se em nossa Mãe tivesse havido em algum momento menos força e frescor no seu amor, se não tivesse sido inteiramente pura em algum momento de sua existência, nós o sentiríamos. A Imaculada Conceição faz de Maria uma Mãe mais amorosa.

Maria foi elevada ao céu em corpo e alma, pois sua Imaculada Conceição a preservou da corrupção do túmulo.

Outras harmonias podem ainda ser encontradas num exame cuidadoso da Imaculada Conceição de Maria e dos seus outros privilégios, mas os que acima apresentamos dão uma ideia da sua beleza e grandeza.

3º. Consequências da Imaculada Conceição


Como a Imaculada Conceição consiste essencialmente na ausência do pecado original e na posse da graça santificante desde o primeiro momento da existência, nesse momento a alma de Maria tinha as características da alma de uma criança batizada. Essa graça inicial foi nela de tal plenitude, que ultrapassa tudo que possamos imaginar. Trataremos deste ponto a propósito da santidade de Maria.

Juntamente com essa graça inicial foram concedidos a Maria inúmeros outros favores. Em primeiro lugar a posse dos principais dons de integridade concedidos ao primeiro homem, e como consequência a ausência das lesões do pecado original. Em Maria jamais houve concupiscência, essa "lei do pecado", que São Paulo lamentava encontrar nos seus membros, a qual o levava ao mal que não queria e o impedia de fazer o bem que queria. Não existiu para Maria essa lei, que nos faz gemer devido a tantas fraquezas, tentações, dificuldades e lutas. Em Maria tudo era ordem, harmonia e paz divina. Convinha que assim fosse, pois a carne, que para nós é o maior obstáculo à vida sobrenatural, iria tornar-se nela instrumento da divina maternidade e era destinada a tornar-se a carne de um Deus.

Na Imaculada, nenhuma ignorância moral ou religiosa que estivesse em desordem. Não sendo infinita, não sabia tudo, porém sabia todas as coisas que lhe convinha saber, em particular tudo o que lhe era necessário ou útil para evitar todo erro de conduta, e para sempre agradar a Deus o mais perfeitamente possível. Sobretudo no que se refere às verdades divinas, sua inteligência era dotada de poder de penetração, que lhe permitia entender mais os mistérios eternos do que qualquer outra inteligência criada, com exceção da de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Sem nenhum desequilíbrio na sensibilidade, Maria amava com ternura e suavidade, e ao mesmo tempo com ardor e veemência superiores aos amores mais doces ou mais fortes que jamais tenham abrasado um coração humano. Entretanto, em nenhum momento sua afeição impedia ou perturbava a razão ou a graça.

Fraqueza, hesitação ou desvio da vontade jamais a desviaram do bem, pois seu querer a orientava somente para o soberano Bem, desejando-o suaviter et fortiter -- mais suavemente do que a mais terna das criaturas, e mais fortemente que todos os santos e todos os mártires.

Jamais a alcançaram desordens corporais, doenças ou enfermidades propriamente ditas. Entretanto Ela podia sofrer, e quis sofrer como seu Filho: no corpo, sofrer fome e sede, calor e frio, cansaço e esgotamento;  sobretudo na alma, sofrer angústias indizíveis, mais do que todos os mártires, a ponto de tornar-se sua rainha. Não se tratava de sofrimentos desordenados, tais como lamentos, escrúpulos, remorsos. Eram sofrimentos de amor ao seu Filho, que desejava resgatar-nos por meio de suas dores, e de amor também por nós, de quem desejava ser a co-redentora.

Maria deveria morrer, pois também seu Filho morreu, embora a justiça original do gênero humano, que Ela possuía, lhe garantisse a imortalidade. Teve a morte como nós, não porém da mesma maneira nem pelas mesmas razões: Sua morte não foi uma luta, uma agonia, mas um êxtase de amor;  não uma expiação por pecado pessoal ou herdado, mas um ato de conformidade com Jesus, que morreu por nossos pecados. Em suma, se Maria não recebeu certos dons de integridade que Adão havia recebido, isso se fez em vista de maior perfeição: a possibilidade de amor e merecimento ainda maiores.

Estas consequências da Imaculada Conceição não estão claramente contidas no ensinamento primitivo, e também não fazem parte da definição do dogma por Pio IX, porém se baseiam na convicção católica de que Deus concede aos seus amigos dons em toda a sua extensão, e assim agiu com sua Mãe. Portanto, se adornou a alma de Maria com a justiça original, como a de nossos primeiros pais, conferiu-lhe também dons de integridade, como fez com eles.

Além disso, essas consequências podem ser deduzidas diretamente de um texto da bula de Pio IX sobre a Imaculada Conceição. Não fazem parte da definição infalível, mas exprimem nitidamente a universal convicção da Igreja católica. Eis o que afirma Pio IX: "Deus cumulou Maria da abundância de todos os favores celestes extraídos do tesouro da divindade, mais do que a todos os espíritos angélicos e mais que ao conjunto dos santos. De modo tão maravilhoso que, sendo preservada absolutamente de toda mancha, inteiramente bela e perfeita, teve em si tal plenitude de inocência e de santidade, que não se pode conceber outra maior abaixo de Deus, e nenhum pensamento que não seja o de Deus pode alcançá-la".

Seria possível afirmarmos que Maria foi mais cumulada de favores do que os espíritos angélicos e o conjunto dos santos, caso não tivesse recebido também os dons de integridade? Poderíamos afirmá-la inteiramente bela e perfeita, e que não se pode conceber maior plenitude de inocência e santidade? Se assim fosse, haveria a possibilidade de conceber maior perfeição, que seria a de quem unisse os dons da integridade aos seus outros dons.

Conforme uma opinião generalizada, outro dom excepcional concedido a Maria, como consequência de sua Imaculada Conceição, foi o uso da razão desde o primeiro momento de sua existência. Não há acordo unânime dos teólogos sobre este ponto, que só foi explicitado claramente após o século 16. Alguns teólogos pensam que a alma de Maria despertou para a vida psicológica algum tempo após seu nascimento, como a das outras crianças. Outros supõem que gozou miraculosamente o uso da razão no momento de sua conceição, mas que em seguida talvez só o tenha possuído durante alguns intervalos, até o momento em que sua consciência psicológica atingiu seu desenvolvimento normal. Ainda outros admitem que Ela a possuía de modo contínuo depois da sua Imaculada Conceição, e que desde esse primeiro momento conheceu Aquele que a criou assim perfeita, correspondendo ao amor infinito de Deus por Ela com um arrebatamento de amor inconcebível, que cresceu sempre em pureza e intensidade.

Adiante exporemos as razões pró e contra esta opinião.

De acordo com as leis da psicologia, o conhecimento racional não pode preceder o conhecimento sensível, pois nada existe na inteligência que não tenha inicialmente estado nos sentidos.

Além disso, vemos pela História que frequentemente Deus deixa seus amigos numa certa ignorância que, embora incompatível com a perfeição do céu, não prejudica sua perfeição terrestre. Assim aconteceu com os apóstolos, que durante muito tempo tiveram ideias falsas sobre a realeza de Jesus, sua paixão, sua ressurreição, seu retorno à terra;  e também com Maria, que não compreendeu desde o início a razão de Jesus ter ficado em Jerusalém na idade de doze anos, nem o significado de sua resposta nessa ocasião. Por que Deus não teria agido do mesmo modo com Ela por ocasião da sua conceição, quando sua perfeição não se havia desenvolvido tanto?

Enfim, para se poder afirmar um privilégio como esse, seria necessário encontrar pelo menos alguma indicação nesse sentido na Sagrada Escritura. Parece que o Evangelho não a contém, e até indica o contrário. Independentemente desse desconhecimento de Maria no que se refere à perda de Jesus no Templo, o Evangelho nos dá a entender que Ela não foi, na sua condição natural, diferente do resto da humanidade. Somente na sua perfeição sobrenatural Ela era uma criatura especial.

Deixemos claro inicialmente que a posse da razão desde a conceição não deve ser considerada em Maria como um fenômeno natural, e sim como um dom sobrenatural. Não supõe uma ciência experimental adquirida pelo uso prévio dos sentidos, mas uma ciência infusa, posta na alma em determinado instante pela ação divina. Não teria Deus podido fazer um dom assim à Imaculada? Negá-lo, seria negar tal possibilidade para o próprio Jesus, tendo em vista que, do ponto de vista natural, o desenvolvimento fisiológico e psicológico de Nosso Senhor era semelhante ao nosso. Esse dom teria sido concedido a Maria, não em vista da sua perfeição humana, mas em vista da sua perfeição sobrenatural.

O uso da razão é necessário para alguém amar ou merecer. Se Maria não tivesse o uso da razão no momento de sua conceição, estaria inconsciente das maravilhas que nela operou a graça de Deus, portanto lhe seria impossível amar a Deus e agradecer-lhe, ficando assim numa situação inferior, neste aspecto, à dos anjos;  inferior também à dos homens em estado de graça, que podem praticar atos de amor a Deus. Ser-lhe-ia então impossível adquirir méritos e crescer em graça e santidade. Muito diferente disso é a aparente ignorância que se manifestou na perda de Jesus no Templo, que em nada desmereceu sua santidade.

Parece que Deus concedeu o uso da razão a certos santos, muito antes da idade normal. Como narra o Evangelho, no momento da Visitação São João Batista exultou de alegria no ventre de Izabel, três meses antes do nascimento. Fato semelhante ocorreu com outros santos, como narram seus biógrafos. E é perfeitamente possível que Deus tenha querido conceder privilégio semelhante a Maria no momento de sua conceição. Se criou os anjos e nossos primeiros pais na posse da razão e do livre arbítrio, por que teria concedido menos a Maria, futura rainha dos anjos e a nova Eva? Pode-se argumentar que os anjos são puros espíritos, e que nossos primeiros pais foram criados já na condição de adultos, portanto em ambos os casos o uso da razão era natural, ao passo que no caso de Maria não era natural o uso da razão no momento da conceição. Argumenta-se em sentido contrário que em Maria isso seria um privilégio, e ninguém pretende afirmar que se tratava de condição natural.

Verifica-se aqui o mesmo que se deu em relação ao pecado original, pois nos nossos primeiros pais e nos anjos esta era uma condição natural, mas em Maria foi um privilégio. (Por exemplo, o suíço São Nicolau de Flue, quando ainda no seio de sua mãe;  Claires Noes, [1823-1895] no dia seguinte ao do seu nascimento, por ocasião do batismo.)

Deus concedeu a Maria privilégios sem conta, muitos deles pelo menos tão extraordinários quanto este. Por exemplo, levou Maria para sua companhia no céu, muitos séculos antes do momento fixado para a glorificação dos corpos dos outros homens. Por que não poderia ter-lhe concedido o conhecimento e o amor consciente a Deus antes do prazo fixado para o uso da razão pelos homens? A Mãe de Deus é uma criatura de tal modo superior ao resto da criação, que um privilégio excepcional não tem por que nos surpreender. Julgar a sua psicologia sobrenatural pela nossa, equivale a pretender submeter às nossas mesquinhas medidas aquela que Deus fez incomensurável.

Os argumentos apresentados são apenas razões de conveniência, que nos levam a presumir, e não a afirmar uma certeza. O que diz a Revelação sobre o assunto? Seguramente não nos fornece ensinamentos explícitos, no entanto nos permite adivinhar que em tudo Maria é uma criatura excepcional, superior a todas as outras criaturas, tão perfeita quanto possível. Ela é semelhante a Jesus em todos os seus privilégios e funções, exceto no que se refere à união hipostática.

Sobre Jesus, a teologia nos ensina que teve o uso da razão e do livre arbítrio desde sua conceição, de acordo com indicações da Sagrada Escritura. Parece portanto que a Revelação nos orienta de preferência para a aceitação do ponto que estamos tratando. Grande número de santos e teólogos modernos são favoráveis a essa piedosa crença, mas ela não foi ainda proposta aos fieis de modo tão generalizado que o sentimento universal pudesse manifestar-se. Sem dúvida os fieis a acolherão favoravelmente, como estando mais em harmonia com a ideia da Igreja sobre a liberalidade de Deus em relação a Maria, e também sobre a conformidade da Mãe com o Filho. Parece portanto que a opinião a favor do uso da razão em Maria desde sua Imaculada Conceição é pelo menos muito provável, e pode-se acreditar que as gerações futuras lhe conferirão a certeza.

A certeza sobre esse ponto parece poder-se depreender da bula Ineffabilis, quando afirma que Deus concedeu à sua futura Mãe "tal plenitude de inocência e santidade, que não se pode conceber de nenhum modo outra maior abaixo de Deus, e só o pensamento de Deus poderia abarcá-la". Admitindo-se que Maria não gozou o uso da razão desde sua Imaculada Conceição, ou que só o gozou transitoriamente enquanto permanecia no seio de sua mãe, estaria aberta a possibilidade para se conceber uma situação de maior plenitude de inocência, santidade e mérito, ao contrário do que afirma o texto citado da bula Ineffabilis. Qual seria essa situação? Aquela que estamos discutindo, ou seja, que Ela de fato gozou constantemente o uso da razão e do livre arbítrio desde sua Imaculada Conceição, pois somente o gozo deste privilégio constitui "plenitude de inocência e santidade maior abaixo de Deus".

4º. Grandeza desse privilégio


A Imaculada Conceição é em primeiro lugar um mistério de pureza singular. Existem no céu e na terra almas totalmente puras, entretanto a pureza da Imaculada foi única, pois só Maria foi pura desde a sua conceição;  é também única pela revogação da lei universal decorrente do pecado original, que só existiu neste mistério. É verdade que nossos primeiros pais e os anjos foram criados imaculados, mas neles a ausência do pecado estava de acordo com a lei da sua condição. Maria, pelo contrário, foi sempre imaculada apesar da sua condição, que a sujeitaria ao pecado original da mesma forma que se aplicou aos outros seres humanos. As consequências desse privilégio único foram também únicas: plenitude de graça, dons de integridade, perfeição espiritual e corporal. A Imaculada Conceição foi também uma preparação para a maternidade divina, que em Maria é outra dignidade única.

Por ser a Imaculada Conceição um mistério de pureza, é também um mistério de amor, pois a pureza é uma condição para o amor a Deus. Desse ponto de vista, a pureza original de Maria deve agradar sumamente a Deus, mais ainda do que sua pureza virginal, pois poderia não ofender a Deus se sacrificasse a segunda, ao passo que sem a justiça original Ela estaria privada dessa pureza sem a qual a amizade com Deus não é possível. Graças à sua pureza original, seu amor a Deus adquire uma característica inteiramente singular. Compare-se isso com a diferença de sentimentos entre uma esposa que admitiu um pensamento de infidelidade a seu marido durante um momento e outra que sempre manteve inviolável a fidelidade;  ou ainda a que existe entre uma alma que num só instante consentiu numa sugestão má, e outra que, em meio a todos os ataques de Satanás, conservou sua pureza batismal.

Por mais que as duas primeiras de ambos os exemplos tenham reparado suas faltas, nos corações das outras duas há uma satisfação íntima que lhes dá a consciência de terem sido sempre fieis. Uma satisfação assim, porém incomparavelmente maior, deve ser a de Maria, por jamais ter permanecido em estado de inimizade com Deus. Como Imaculada, Ela se sente a filha bem amada do Pai, abraça seu Filho e se une ao Espírito Santo, com simplicidade, confiança e delicadeza de amor que só pertencem a Ela, pois somente nela não existe a lembrança de um momento em que tal atitude foi permitida.

Nós participamos da alegria da Imaculada, exultamos ante o pensamento de que uma criatura humana livrou-se inteiramente das tentações de Satanás, e sabemos também que essa criatura é nossa Mãe, nascida de uma raça universalmente manchada, mas se manteve mais pura e brilhante do que o mais sublime dos anjos.

Pelo mistério da Imaculada Conceição, Maria triunfou sobre Satanás, autor de todo mal, com um triunfo sem precedentes. Sob o calcanhar dela, Satanás sofreu sua primeira derrota completa, absoluta e irreparável, como jamais sofrera desde o início do mundo. Foi um triunfo a própria proclamação desse mistério, apesar de tantos obstáculos. Pela sua proclamação, a solene afirmação do reino da graça triunfou contra o materialismo invasor, que parecia desfechar os últimos golpes sobre a fé em realidades sobrenaturais;  e ao mesmo tempo reafirmou a autoridade pontifícia, num momento histórico em que todos os poderes humanos e infernais estavam conluiados contra Ela.

A Imaculada Conceição não faz lembrar apenas o longínquo triunfo da Virgem no dia de sua conceição no seio de Santa Ana, ou sua glorificação por todo o universo católico em 1854. Trata-se do símbolo e anúncio de um triunfo mais amplo e mais durável. Somos interessados nesse triunfo, pois pertence também a nós a causa de Maria, que juntamente com sua posteridade deve esmagar a cabeça da serpente, e essa posteridade somos nós, começando por Jesus. A guerra entre o demônio e a raça da Mulher, que começou no início do mundo, durará até o fim dos tempos, e a glorificação da Imaculada Conceição deu realce surpreendente ao papel da Mulher nessa guerra. Cada vez mais manifestamente, é sob a direção dela -- Maria duce -- que a luta deve prosseguir;  e para sermos vencedores, é em seu nome que os soldados devem combater. Com Ela a vitória é certa, pois debaixo dos seus pés a serpente se contorce impotente.

Portanto, a Imaculada Conceição é um triunfo para Maria, mas também para nós.

A definição desse privilégio foi a proclamação do reino de Maria nos tempos atuais e do apostolado mariano completo, que é o apostolado por meio dela e sob o seu comando. Isso é o que todos os católicos sentiram, pelo menos vagamente. Alguns o compreenderam claramente, inspirando-se nessa indicação providencial para imprimir orientação francamente mariana à sua vida e ao seu apostolado. E os fatos deram razão à sua fé.

Capítulo, 7º. A VIRGINDADE DE MARIA


Nos últimos séculos, a pureza de Maria na sua conceição entusiasmou de modo particular os fieis. Nos primeiros séculos, sobretudo sua pureza virginal atraiu os olhares dos cristãos. Para eles, Maria era a Virgem-Mãe, e assim permanecerá para sempre. O que a Igreja sempre ensinou é que Maria foi virgem antes, durante e depois do parto -- ante partum, in partu, post partum.

1º. Significado da virgindade antes do parto


A virgindade antes do parto ou na conceição de Jesus é explicada no Evangelho. Maria era virgem no momento da vinda do anjo Gabriel e permaneceu virgem ao se tornar Mãe de Deus, pois concebeu Jesus sem nenhuma cooperação humana, tornando-se miraculosamente fecunda pela ação do Espírito Santo, para cujo poder nada é impossível. São José foi o guardião providencial e testemunha da sua virgindade.

A virgindade antes do parto foi explicitamente revelada aos primeiros cristãos. Quando tomaram conhecimento de que era Filho de Deus eterno aquele Jesus que foi crucificado e ressuscitou, muito provavelmente manifestaram curiosidade em saber qual tinha sido sua origem humana. Interrogando sobre isso os que viveram na intimidade de Maria ou de José, e talvez a própria Virgem Maria, foi-lhes revelada a história maravilhosa da conceição sobrenatural. Ela está consignada, com todas as circunstâncias concomitantes, nos evangelhos de São Mateus e São Lucas, cujos relatos são absolutamente independentes um do outro. (As diferenças aparentes entre os dois relatos se explicam plenamente pela diferença de pontos de vista dos dois evangelistas.

Os racionalistas e certo número de protestantes atuais rejeitam os testemunhos de São Mateus e São Lucas, sob o pretexto de que não são concordantes um com o outro, mas o motivo real dessa atitude em relação à conceição virginal de Jesus é a mesma que manifestam em relação à divindade e a tudo o que significa uma característica sobrenatural. Na realidade, todos os que aceitam a filiação divina de Nosso senhor e a possibilidade do milagre aceitam também a conceição virginal.)

Os primeiros cristãos provavelmente encararam essa revelação com toda naturalidade, como um corolário lógico da divindade de Jesus. Ademais, certamente se lembraram de uma profecia do maior dos profetas messiânicos: "Uma virgem conceberá e dará à luz um filho, que será chamado Emanuel". (Deus conosco) Para honra de sua Mãe, sem dúvida Deus não quis deixar neste ponto os fieis expostos às hesitações e perplexidades que podem surgir de uma revelação puramente implícita, nem permitir que sequer uma sombra de dúvida lhes aflorasse ao espírito em matéria tão delicada.

As gerações seguintes não tiveram que explicitar uma convicção que era tão clara desde o início. Tiveram no entanto que defendê-la contra certos hereges, tais como cerintianos e ebionitas, que rejeitavam a divindade de Cristo, e nessa lógica atribuíam a Jesus um nascimento comum. As afirmações da ortodoxia tiveram como efeito natural destacar ainda mais a virgindade de Maria, e consequentemente sua pureza, sua santidade e seu papel na nossa redenção.

Desde a introdução dos catecúmenos na fé cristã, eles eram instruídos no conhecimento desse privilégio da Mãe de Deus, ocasião em que aprendiam a recitar o Símbolo dos Apóstolos. Nas suas diversas formulações, este sempre continha invariavelmente este artigo: "Creio em Jesus Cristo, que nasceu da Maria Virgem". Rapidamente a palavra Virgem tornou-se o nome próprio da Mãe de Deus, mais usado até do que seu nome de Maria.

Harmonias da virgindade antes do parto


Por que era necessário Maria conceber seu Filho permanecendo virgem? Inicialmente, devido à própria divindade desse Filho. Sempre foi instintivamente admitido, tanto por crentes quanto por não crentes, que um homem-Deus deveria nascer de modo diferente de um homem comum. Mesmo sendo semelhante a nós por sua humanidade, Jesus deveria, sendo Deus, ter origem temporal que de algum modo fosse divina. Os Padres da Igreja repetiam exaustivamente: "Deus só poderia nascer de uma virgem, e quem nascesse de uma virgem só poderia ser Deus".

Em teoria, Deus teria podido nascer de um pai e de uma mãe de acordo com sua humanidade. Não se vê o que poderia impedir o Todo-Poderoso de contrair união hipostática com uma natureza humana assim formada. Mas na prática, a própria divindade de Jesus corria o grande risco de não ser reconhecida, se sua origem não tivesse sido virginal. A história dos hereges, desde os ebionitas do século 1, até os modernistas do século 20, deixa claro que todos os adversários da virgindade de Maria foram igualmente adversários da divindade de Jesus. Quanto aos que se empenharam em sustentar a virgindade da Mãe, eles o fizeram principalmente por sentirem que, ao defendê-la, estavam também defendendo a divindade do Filho. A correlação entre a virgindade de Maria e a divindade de Jesus pode não ser estritamente lógica, mas é profundamente psicológica.

Dentre os atributos da divindade, é sobretudo a pureza que exige essa origem virginal. Na realidade o matrimônio é puro em si mesmo, mas uma impressão de desordem se mistura instintivamente às características do seu uso, por efeito da nossa natureza corrompida pelo pecado original. Mesmo que se descarte essa impressão, paira sempre acima da pureza matrimonial, que é uma pureza terrestre, o brilho resplandecente, incomparavelmente mais radioso e mais delicado da pureza virginal, que é também um brilho celeste. Para a humanidade do Deus de pureza infinita era necessária a pureza mais perfeita que se possa conceber.

Quantos homens conseguiram, antes de Jesus, observar até mesmo a castidade conjugal? No entanto Ele vinha propor a esse mundo assombrado o ideal de uma castidade absoluta. O pensamento de que Cristo quis nascer de uma Virgem deve ter contribuído poderosamente para fazer seus discípulos compreenderem e amarem seus ensinamentos sobre a virgindade. Do pensamento de Jesus emana instintivamente a impressão de pureza perfeita, e pelo menos em parte essa impressão resulta da lembrança da conceição virginal. Esse pensamento levou inúmeras almas amorosas a deixar todo amor terreno para possuir inteiramente a pureza, como afirmou Santa Inês: "Sou noiva de Cristo, de quem partilharei o aposento nupcial, daquele cuja Mãe é virgem e cujo Pai não conheceu mulher. Tendo-o amado, sou casta;  quando o tiver tocado, serei pura;  quando o tiver recebido, serei virgem".

Acaso essa lembrança da pureza de Cristo seria tão delicada, tão forte, tão eficaz, se Jesus tivesse nascido de acordo com as leis comuns do matrimônio, ao invés de ser o fruto virginal de Maria?

Outros motivos análogos requerem de Maria a conceição virginal. Poderia Jesus, que se compraz entre as virgens, excluir de sua companhia preferida essa Mãe que Ele amava mais que a todas as virgens reunidas? Ele a queria superior a todas as criaturas, e sem a conceição virginal Ela teria sido, no campo da pureza, inferior às virgens cristãs.

Tornando-se Mãe de Jesus, Maria se tornou também nossa Mãe, e nessa condição devia ser capaz de socorrer seus filhos nos perigos e necessidades. Mas quem não sabe que, dentre todos os perigos que nos ameaçam, o mais fatal para a maioria são as tentações impuras? É exatamente o pensamento da virgindade de Maria que nos ajuda tão eficazmente a recusá-las. Como mostra a experiência, a lembrança da Virgem nos faz imediatamente adquirir confiança em meio às tentações, o que frequentemente basta para desfazer toda solicitação malsã. A imagem daquela que é tão pura nos faz amar mais a pureza e desprezar toda baixeza, ao mesmo tempo que a sentimos pronta a obter facilmente de Deus a graça de a Ele nos assemelharmos.

2º. Significado da virgindade durante o parto


Maria concebeu seu Filho de modo totalmente puro, e foi também de modo totalmente puro que o deu ao mundo. Não tendo participado do pecado de Eva, não participou da sua maldição, pois concebeu sem concupiscência e deu à luz sem dor. Ao nascer dela, o Filho de Deus não rompeu o selo de sua virgindade, consagrando assim sua pureza virginal, e de inviolada a fez inviolável. Este é o ensinamento da virgindade durante o parto, sobre o qual assim se exprime o Concílio de Trento:

"Se a conceição do Salvador está acima de todas as leis da natureza, também se dá o mesmo com o seu nascimento, que é divino. E o fato extremamente prodigioso, que ultrapassa todo pensamento e toda expressão, é que Ele nasceu de sua Mãe sem prejudicar em nada sua virgindade. Mais tarde Jesus saiu também do seu túmulo sem romper o selo que o mantinha preso, e com as portas fechadas entrou na casa em que estavam seus discípulos. Para limitar nossas comparações aos fenômenos comuns, sem romper o selo da virgindade Jesus Cristo saiu do seio de sua Mãe assim como os raios do sol atravessam o cristal, sem o romper nem danificar, porém o fez de forma ainda mais maravilhosa. Honramos nela, com toda razão, uma perpétua virgindade e uma integridade perfeita. Esse privilégio inaudito foi obra do Espírito Santo, que dessa forma a assistiu na conceição e no parto de seu Filho, comunicando-lhe a fecundidade da Mãe e conservando-lhe a integridade da Virgem". (Parte 1, capítulo 4, § 11.)

Virgindade durante o parto, verdade revelada


Pode-se afirmar com suficiente verossimilhança que a virgindade durante o parto foi revelada aos primeiros cristãos ao mesmo tempo que a virgindade antes do parto. Para satisfazer a piedosa curiosidade dos primeiros cristãos sobre a origem humana de Cristo, Maria ou outros a quem Ela informou sobre esse mistério ensinaram sobre a conceição miraculosa do Salvador, e ao mesmo tempo devem tê-los ensinado sobre seu nascimento não menos miraculoso. Sem essa revelação, não se conseguiria compreender a unanimidade com a qual a virgindade durante o parto é afirmada desde os primeiros séculos. Não se poderia explicá-la com base apenas na difusão do Livro de Tiago, apócrifo do século 2, que menciona expressamente o nascimento virginal, pois tal virgindade é admitida por pessoas que parecem ter ignorado a existência desse livro, ou que o tacharam de fábula. (Ver E, Neubert, Marie dans l'Église anténicéenne, pg, 159-190.

Santo Efrém, que não conheceu os apócrifos nem os escritos dos Padres gregos, afirma e enaltece a virgindade durante o parto, com ainda maior força e entusiasmo do que alguns desses últimos. Ver Hammersberger, Die Mariologie der Ephremischen Schriften, 47-49.)

Os evangelhos não mencionam em termos formais a virgindade durante o parto, mas de fato não havia necessidade dogmática de mencioná-la, ao contrário da que existe no caso da virgindade antes do parto. São Lucas relata o nascimento de Jesus, dizendo que Maria "deu à luz seu primogênito, envolveu-o em panos e o colocou numa manjedoura", e essa descrição se harmoniza muito mais com a virgindade durante o parto do que com a condição de uma mulher esgotada pelas dores e fraquezas de um primeiro parto.

Seja como for, mesmo supondo-se que o fato só tivesse chegado pouco a pouco ao conhecimento da maioria, todos estavam preparados para aceitá-lo. A conceição de Jesus e seu nascimento constituem dois momentos do mesmo ato, que é a origem humana de Jesus. Essa origem foi miraculosamente pura no primeiro momento, e devia sê-lo também no segundo. Mais do que em qualquer outro assunto, deve-se aqui considerar os favores divinos em seu sentido mais amplo, e acreditar que Deus agiu com largueza. Por outro lado, a própria palavra do profeta que predisse a conceição virginal anunciou seu nascimento virginal: "Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho".

As gerações seguintes provavelmente não tiveram que explicitar sua convicção da virgindade durante o parto, e puderam contentar-se em transmiti-la tal como a receberam. Em todo caso, professaram-na unanimemente e por meio de grande variedade de formas: alusões, afirmações, explicações, comparações, provas e figuras. Logo depois ela acompanhará quase sempre a referência à virgindade antes do parto. Será cantada e introduzida no ofício litúrgico. O Papa Martinho -- a fará constar numa definição dogmática do Concílio de Latrão, em 649, a propósito da condenação dos monotelitas: "Se alguém não confessa, de acordo com os Padres da Igreja, que a santa, sempre virgem e imaculada Maria é propriamente e verdadeiramente Mãe de Deus, pois concebeu do Espírito Santo  o Verbo de Deus  e o deu à luz sem corrupção, permanecendo sua virgindade indissolúvel mesmo após o parto, que seja anátema".

O Concílio de Trento igualmente o ensina, ao condenar os erros dos unitarianos.

Grande número de nossos hinos e preces a Maria mencionam esse privilégio;  o prefácio de todas as festas da Virgem o canta;  o ofício da Circuncisão e da véspera da Epifania o celebra várias vezes.

Harmonias da virgindade durante o parto


As conveniências da virgindade durante o parto são quase as mesmas que as da virgindade antes do parto, da qual ela é apenas a conclusão. Convinha melhor à divindade e pureza infinita de Jesus, e mostrava quanto valor atribuía à virgindade. Convinha a Maria por ser mais digna de uma Mãe de Deus, de uma criatura superior a todas as outras, a Mulher chamada a ser o ideal da pureza e a protetora dos seus filhos nas tentações e lutas.

A virgindade durante o parto mostra, melhor em certo sentido do que a virgindade antes do parto, a estima em que Jesus tem a pureza virginal, e sobretudo a infinita delicadeza de seu amor à sua Mãe, pois conservava nela, por meio desse milagre, não somente o que constitui a verdadeira essência da virgindade, mas também aquilo que constitui da virgindade apenas a perfeição material. Para os primeiros cristãos, esta era uma prova evidente daquilo que sentiam de modo mais ou menos obscuro: Jesus queria que sua Mãe fosse perfeita em todos os sentidos, mesmo em seu corpo, tanto quanto seja possível a uma criatura, ainda que para isso fosse necessário um milagre inaudito.

Era também uma indicação da incorruptibilidade do seu corpo, na qual se inspirarão quando vierem a afirmar essa incorruptibilidade e a gloriosa assunção. Para todas as gerações, este é um motivo de admiração e alegria, um convite também para irmos, em companhia de Jesus, tão longe quanto possível na veneração à sua Mãe.

3º. Significado da virgindade depois do parto


Por virgindade depois do parto, ou virgindade perpétua, entende-se o fato de que, sendo virgem na conceição e no parto de Jesus, Maria permaneceu virgem até o fim de sua vida, portanto não deu à luz nenhum filho além de Jesus.

Virgindade depois do parto, verdade revelada


A virgindade perpétua de Maria deve ter sido claramente conhecida de muitos dos primeiros cristãos. Não era difícil aos discípulos da Galiléia e da Judéia interrogar os parentes de Jesus, e certamente uma piedosa curiosidade os levava a isso, daí conhecerem que Maria jamais teve outro filho além de Jesus. Quanto aos cristãos de fora da Palestina, alguns dentre eles devem ter perguntado sobre isso aos apóstolos e aos cristãos provenientes da Palestina, obtendo deles essas informações. Além disso, a tradição mais antiga é unânime sobre este ponto.

A virgindade perpétua não é explicitamente relatada nos Evangelhos, mas isso não exclui que ela tenha sido claramente conhecida pelos cristãos da época. Não havia nenhuma razão para relatá-la formalmente, pois o fato era sobejamente conhecido, além de não representar, por si mesmo, nada de miraculoso.

A virgindade depois do parto pode ser deduzida indiretamente, mas com certeza, a partir dos dados encontrados no Evangelho. Antes de examiná-los, convém explicar certos termos do Novo Testamento, os quais parecem não estar em harmonia com a afirmação da virgindade perpétua. Alguns os interpretam separando-os do contexto, ou então de acordo com nossas línguas atuais ou clássicas, e não com o significado que tinham no hebraico.

São Lucas narra nestes termos o nascimento de Jesus: "E Maria deu ao mundo seu Filho primogênito". A dúvida que se levanta é que, se Jesus foi o primeiro filho, (este é o significado de primogênito) houve outros filhos depois dele. De nenhum modo isso se pode afirmar, pois na Sagrada Escritura as palavras filho primogênito aplicam-se apenas a um filho que nasceu antes de qualquer outro, mas não afirmam que houve outro depois dele. A expressão consta no texto de Moisés, prescrevendo que todo filho primogênito seja apresentado ao Senhor quarenta dias após seu nascimento. Acontece que era impossível saber, quarenta dias depois do nascimento, se nasceria outro filho,portanto a expressão não envolve nenhuma afirmação sobre outro filho. São Lucas refere-se a filho primogênito exatamente na perspectiva da apresentação de Jesus no Templo, de acordo com a prescrição de Moisés. (-- Mesmo atualmente isso ainda é muito difícil, com as técnicas modernas.)

A mesma expressão foi usada por São Mateus, embora os manuscritos mais seguros não a contenham. Parece que se trata de acréscimo tomado como empréstimo a São Lucas. Mesmo nos dias atuais, fala-se correntemente que uma mulher deu à luz seu primeiro filho. E também se costuma dizer que uma mulher morreu ao dar à luz seu primeiro filho. (que obviamente foi o único)

De acordo com São Mateus, Maria engravidou antes de Ela e José habitarem juntos. Seria possível concluir daí que ambos conviveram depois que Jesus nasceu? Mais adiante ele observa que José não conheceu Maria até Ela dar à luz seu Filho. A consequência seria que ele a conheceu depois do parto? Em ambos os casos, o objetivo do evangelista é relatar o que aconteceu antes do nascimento de Jesus. Não se ocupa do que aconteceu depois, estando fora da sua perspectiva fatos posteriores. Muitas outras expressões ou descrições são feitas com perspectivas semelhantes, não tendo por objetivo relatar o que veio ou não depois: Desde a conceição até sua morte, Maria jamais cometeu a menor imperfeição;  o corpo de Maria foi reunido à sua alma antes que a corrupção do túmulo a tocasse.

No primeiro caso, não se pretende insinuar que Ela cometeu imperfeições após sua morte;  nem no outro, que a corrupção atingiu seu corpo depois que este se reuniu à sua alma. (Provavelmente a expressão habitar juntos designa apenas a circunstância de morarem na mesma casa, o que representava o sinal próprio do casamento.)

Outra expressão que à primeira vista pode parecer mais desconcertante é irmãos e irmãs do Senhor, que encontramos várias vezes no Novo Testamento. Tanto quanto as anteriores, essa expressão não pode servir de argumento sério contra a virgindade perpétua de Maria, pois as palavras irmão e irmã são usadas livremente no hebraico para designar filhos do mesmo pai e da mesma mãe, como também todo tipo de parentesco: sobrinhos, sobrinhas, tios, tias, cunhados, cunhadas, primos, primas, etc. O hebraico dessa época não possuía palavras adequadas para designar esses diversos graus de parentesco. Os irmãos do Senhor poderiam ser quaisquer parentes de Jesus, e veremos adiante que se tratava de seus primos. O Novo Testamento foi escrito em grego, língua que possui palavras especiais para delimitar os diversos graus de parentesco. Porém, sendo irmãos do Senhor uma expressão consagrada do hebraico, os judeus convertidos a usavam e os evangelistas a traduziram literalmente.

Essas diversas expressões são destituídas de valor contra a afirmação da virgindade depois do parto. Por outro lado, outros textos permitem estabelecer com segurança tal convicção.

O Novo Testamento apresenta frequentemente Jesus como Filho de Maria, ou em termos equivalentes. Esta expressão só é aplicada a Ele, nunca aos outros irmãos. São Marcos relata que os de Nazaré perguntam: "Não é este o filho de Maria?". Se faltasse o artigo masculino, poder-se-ia pensar em algum outro, porém eles sabiam que Jesus era o único filho dela. O texto é tanto mais significativo quando se considera que em grego o uso do artigo antes de um substantivo qualificativo tem caráter excludente.

São Mateus e São Marcos nos informam os nomes dos irmãos do Senhor, ao mencionarem o espanto dos habitantes de Nazaré quando Jesus pregava no meio deles: São Mateus: Não é este o filho do carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria, e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs não se acham todas entre nós? São Marcos: Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas, Simão? E suas irmãs não se acham aqui entre nós?

Outras passagens dos Evangelhos referentes à crucifixão e à ressurreição de Jesus nos permitem identificar a mãe de pelo menos dois desses irmãos: São Mateus: Havia lá muitas mulheres que observavam de longe. Entre elas se encontravam Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu. São Marcos: Havia também mulheres que observavam de longe, entre elas Maria Madalena, Maria mãe de Tiago o menor e de José,e Salomé. São Lucas: Todos os amigos se mantinham à distância, e as mulheres que o haviam seguido a partir da Galiléia. São João: Perto da cruz de Jesus estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria Madalena. (São Marcos usa a forma abreviada José nas duas vezes que cita a dupla Tiago e José, e somente nesses casos. Em outros, fala de José de Arimatéia.)

São Mateus: Depois do sabbat, desde o raiar do primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram visitar o sepulcro. São Marcos: Depois que passou o sabbat, Maria [mãe] de Tiago e Salomé compraram aromas. São Lucas: Voltando do túmulo, elas anunciaram tudo isso aos onze e a todos os outros. Eram Maria Madalena, Joana e Maria mãe de Tiago.

Note-se inicialmente que São Mateus e São Marcos mencionam como presente no Calvário uma certa Maria -- mãe de Tiago e José, segundo Mateus;  de Tiago e José, segundo Marcos -- isto é, dois homens portadores dos mesmos nomes que os dois primeiros dentre os irmãos do Senhor, que os evangelistas mencionam mais acima. Essa Maria evidentemente não é a Santíssima Virgem, pois se fosse, os evangelistas a teriam designado como a mãe de Jesus. São Lucas menciona essa mulher simplesmente como mãe de Tiago e Marcos faz o mesmo na narração da ressurreição. Tiago e José, sobretudo Tiago, deviam ser dois personagens bem conhecidos dos primeiros cristãos, para que o seu simples nome fosse suficiente para distinguir sua mãe.

Conhecemos dois Tiagos célebres: Tiago filho de Zebedeu e irmão de João;  Tiago irmão do Senhor, o primeiro bispo de Jerusalém, que representou papel tão importante na Igreja primitiva, ao lado de São Pedro e São Paulo.

A mulher em questão não era a mãe do primeiro Tiago, pois esta se chamava Salomé e é mencionada como presente no Calvário ao lado da mãe de Tiago. A alternativa que resta é identificá-la como a mãe do segundo Tiago, irmão do Senhor. Portanto, Tiago e José, os dois primeiros dentre os que são identificados como irmãos do Senhor, não eram filhos da Santa Virgem. Os dois últimos também não o eram, pois se o fossem, seriam mencionados antes dos dois outros. O segundo dentre eles, Judas, se apresenta no início de sua epístola católica como irmão de Tiago e servo de Jesus Cristo.

Entre as mulheres que permaneciam ao pé da cruz, São João assinala a irmã da Mãe de Jesus, Maria de Cléofas, mas não menciona a mãe de Tiago. Não seria essa Maria de Cléofas aquela que os outros evangelistas chamam Maria, mãe de Tiago e José? Sendo irmã -- ou cunhada -- da Virgem, pode-se compreender por que seus filhos seriam chamados irmãos do Senhor, pois seriam seus primos. Veremos adiante que o historiador Hegesipo confirma esta hipótese.

Além disso, sabemos por São João que Maria lhe foi confiada pelo Senhor agonizante, e que daí em diante ele a levou para sua casa. Essa atitude de Jesus teria sido estranha se sua Mãe tivesse outros filhos, dos quais Ele a teria separado para confiá-la a um estranho;  só se compreende no caso de, por sua morte, Ele a ter deixado sozinha.

O próprio testemunho de Maria nos garante sua perpétua virgindade. Quando o anjo lhe anuncia que será mãe do Messias, Ela menciona sua resolução de permanecer virgem: "Como se fará isso, se não conheço varão?". Fica sabendo então que Deus conservará intacta sua virgindade por meio de um milagre. Tendo decidido permanecer virgem antes mesmo de tornar-se Mãe de Deus, não seria concebível que violasse sua resolução depois que Deus, por um milagre tão surpreendente, consagrou sua virgindade e escolheu sua carne para tornar-se a carne puríssima do Verbo encarnado.

A obra da Tradição no caso da virgindade perpétua de Maria deve ser encarada sob duplo aspecto: Em primeiro lugar, quanto à própria afirmação da virgindade perpétua;  depois, no que se refere à solução da dificuldade criada pela referência aos irmãos do Senhor.

No que se refere à virgindade perpétua, a Tradição foi explícita e unânime na Igreja Católica desde as origens. Somente foi contrariada por alguns espíritos transviados, que a Igreja devidamente condenou.

Não houve propriamente avanços quanto ao objeto dessa afirmação, mas avançou-se muito no que se refere à sua frequência e veemência. Ante o entusiasmo crescente pela prática da castidade virginal e pelo culto à Virgem Maria, a perpetuidade da sua virgindade foi mencionada quase sempre que se mencionava sua própria virgindade, chegando-se mesmo a criar para isso uma expressão nova -- Sempre Virgem Maria, em vez de simplesmente Virgem Maria. Além disso, as blasfêmias dos detratores da virgindade de Maria provocaram as refutações mais indignadas dos Padres da Igreja e da Santa Sé. A virgindade perpétua de Maria foi incorporada em várias definições dogmáticas e em grande número de símbolos ou de profissões de fé. (Concílios de Constantinopla, [553] Latrão;  [649] profissões de fé de Leão IX, do 4º Concílio de Latrão, [1215] Concílio de Lyon, [1274] etc.)

A solução da dúvida sobre os irmãos do Senhor se deu na Tradição após algum tempo de hesitação. Ninguém duvidava de que os irmãos do Senhor não eram filhos de Maria. Mas quem eram eles?

Entre os cristãos da Palestina nos primeiros séculos, a dúvida nem se punha, pois entendiam que se tratava de parentes próximos de Jesus, de acordo com o significado da palavra irmão em aramaico, por eles bem conhecida. Um deles era Hegesipo, que realizou pesquisas especiais sobre os parentes de Jesus, e nos informa que Cléofas era irmão de São José. Isso explica o motivo de Maria, mulher de Cléofas, ser apresentada como irmã (isto é, cunhada) da Santíssima Virgem, e também o motivo de os filhos dessa Maria serem irmãos do Senhor. (isto é, seus primos) A propósito de um desses últimos, chamado Simão ou Simeão, Hegesipo menciona expressamente que ele era primo do Senhor. (Não se compreenderia que o mesmo nome Maria fosse dado a duas irmãs vivas.)

Para os cristãos de origem grega, que nessa época já deviam constituir a imensa maioria, o assunto oferecia alguma hesitação. Na língua grega há uma palavra para designar primos, e a palavra irmão tem o sentido restrito que lhe dão as línguas modernas. Daí, como explicar a presença desses irmãos do Senhor? Como não se tratava de filhos de Maria, só uma explicação era possível: deviam ser filhos de José, nascidos de um primeiro casamento. O Protoevangelho de Tiago (apócrifo) inventou ou consigna esta interpretação, que pouco a pouco foi adotada em muitos lugares durante os séculos 3, e 3, e ainda é admitida na Igreja grega.

No século 4, o monge infiel Helvidius, muito relaxado para suportar o jugo do celibato, pôs-se a exaltar o casamento em prejuízo da virgindade. Para apoiar sua tese, divulgou que Maria tinha tido outros filhos, os irmãos do Senhor, depois do nascimento de Jesus. Deu-se muito mal, pois São Jerônimo -- entusiasmado panegirista da vida virginal, exegeta sem igual dos tempos antigos -- tomou da pena e lhe respondeu. Seus argumentos, de força invencível e eloquência implacável, reduziram a nada as argúcias e a reputação do monge imprudente. São Jerônimo deixou vitoriosamente estabelecido que Maria permaneceu sempre virgem, e que também São José praticou a virgindade, sendo os irmãos do Senhor apenas primos de Jesus. Este ensinamento prevaleceu desde então em toda a Igreja latina. Em resumo, eis o que a Igreja ensina:

1º. No Novo Testamento, só Jesus é Filho de Maria.

2º. A expressão irmãos do Senhor pode aplicar-se a alguns parentes próximos de Jesus.

3º. Os mais ilustres desses irmãos do Senhor, sobre os quais se conhecem indicações de parentesco, têm outra mãe que não é a Virgem Maria.

4º. Essa outra mãe parece ser a irmã ou a cunhada da Virgem, mulher do irmão de São José. Os irmãos do Senhor seriam então primos de Jesus.

5º. A tradição católica foi hesitante durante algum tempo sobre a identidade dos irmãos do Senhor, mas não vacilou na afirmação da virgindade perpétua de Maria.

Harmonias da virgindade depois do parto


A virgindade depois do parto completa a virgindade antes do parto e a virgindade durante o parto. Da mesma forma que elas, a dignidade e pureza de Jesus e Maria a exigem.

O respeito pela pessoa de Jesus exige que um cálice sagrado que conteve o corpo ou o sangue de Cristo não seja usado para nenhuma finalidade profana. Seria admissível que servisse para outras conceições e partos de homens pecadores o seio de Maria, vaso incomparavelmente mais sagrado que qualquer cibório ou cálice de ouro? Esse vaso foi preparado pelo próprio Espírito Santo, não só para conter o corpo de Cristo, mas também para lhe fornecer sua carne e seu sangue;  é um vaso tão puro, que o próprio Deus o conservou miraculosamente intacto na sua conceição e no seu nascimento.

Na antiguidade, o Papa Siricius disse sobre Bonosius, detrator da virgindade perpétua: "A consciência cristã recua com horror ante o pensamento de que outros filhos tenham saído do mesmo seio virginal do qual nasceu Cristo segundo a carne".

Se alguns cristãos chegaram ao ponto de levantar uma hipótese como essa, o motivo sempre foi a antipatia contra a doutrina de Jesus sobre a superioridade da virgindade sobre o casamento. Helvidius e Bonosius, na antiguidade, são nisso predecessores dos protestantes modernos. Todos eles sentem muito bem que na Mãe de Cristo a virgindade perpétua não representa apenas um fato único. Muito mais do que isso, tem o valor de uma doutrina, e o que eles não querem aceitar é exatamente essa doutrina. Todo esse esforço deles para enfraquecer os argumentos em favor da virgindade perpétua de Maria tem como objetivo conseguir a qualquer preço negar a virgindade.

Há ainda outro conceito que eles conhecem muito bem: Se Maria sacrificou voluntariamente sua virgindade depois do nascimento de Jesus, não passa de uma mulher vulgar, e toda a devoção dos católicos a Ela desmorona pela base. Para alguns protestantes, é indispensável que Maria tenha sido não mais que uma mulher comum, por isso se aferram a toda palavra ou hipótese suscetível de interpretação em sentido desfavorável à virgindade perpétua. É curioso constatar como alguns deles, depois de terem defendido o artigo do Símbolo dos Apóstolos natus ex Maria virgine, contra seus correligionários racionalistas, o que fizeram com bastante zelo e ciência, tenham se esforçado para provar que a Mãe de Jesus perdeu sua virgindade depois do parto do Filho único de Deus,como se quisessem desculpar-se por essa ortodoxia marial.

Estranha atitude! Será que alguém já indagou deles o motivo de se empenharem tanto contra a reputação de Maria? Se é certo que cada um de nós se empenharia, caso isso fosse possível, em conseguir que nossa mãe fosse dotada de toda dignidade, por que se empenham tanto em afirmar que o próprio Filho de Deus teve por sua Mãe menos piedade filial do que nós?

A atitude dos católicos é completamente outra, e sustentam com todas as forças de sua alma esse privilégio da Mãe de Deus. Grande parte deles não consegue compreender que é melhor não se casar. Muitos nem mesmo entendem na prática que só podem ser verdadeiros discípulos de Cristo se observarem a castidade no seu estado. Mas todos compreendem que Maria permaneceu virgem até o fim de sua vida. Todos, mesmo os menos fervorosos, se revoltam ante o simples pensamento de que se ponha em dúvida essa prerrogativa da Mãe de Deus.

O triunfo da virgindade


À medida que a doutrina marial progrediu, os fieis puderam admirar outras prerrogativas da Mãe de Deus. Mas a sua virgindade manteve-se para eles como um dos seus grandes privilégios. A Virgem, a Santa Virgem, ou a Santíssima Virgem, é sempre assim que gostam de chamá-la. Em uma das mais populares orações a Maria, a Ladainha Lauretana, mais de um quarto das invocações lembra sua pureza virginal, também celebrada nos cânticos mais variados, que a louvam incansavelmente -- Inviolata, integra et casta es, Maria.

Maria não é apenas virgem, é a Virgem das virgens. Antes da conceição de Jesus, sua virgindade já era incomparavelmente superior a toda outra virgindade. A partir da Encarnação, tornou-se uma virgindade absolutamente única, miraculosa, fecunda -- e fecunda de um Deus.

Por amor à sua pureza virginal, Maria renunciara às alegrias da maternidade. Por causa dessa mesma virgindade, conheceu as alegrias de uma maternidade que devia elevar-se infinitamente acima de toda outra maternidade. Sendo virgem, tornou-se Mãe de Deus e de uma incontável multidão de filhos de Deus.

Capítulo, 8º. A SANTIDADE DE MARIA


No homem, a santidade exige vários elementos. Inicialmente um trabalho negativo, que é a purificação do pecado;  em seguida um trabalho positivo para se aproximar constantemente do ideal de toda santidade, que é Deus tornado visível em Cristo, e por isso mais fácil de ser imitado. Esse trabalho se faz de dois modos: a parte do homem, que é o esforço de vontade para se desvencilhar do pecado e praticar a virtude;  e a parte de Deus, que por meio da graça ajuda o homem no seu esforço e lhe permite realizar o que, se o homem estivesse sozinho, jamais conseguiria completar.

Neste capítulo analisaremos:

1ª. ausência em Maria de toda mancha de pecado;

2ª. sua plenitude de graça;

3ª. suas virtudes;

4ª. sua santidade até o fim da vida.

1º. -- Significado da isenção de todo pecado


A convicção universal da Igreja Católica é que Maria jamais cometeu pecado, seja mortal ou venial, nem imperfeição voluntária, como seria a resistência a uma inspiração da graça em assunto não obrigatório, nem mesmo imperfeições involuntárias, tais como atos de irreflexão, primeiros movimentos de impaciência ou vaidade, que em nós escapam antes até de serem percebidos, e que imediatamente recusamos.

Essa impecabilidade de Maria devia-se à conjugação de três fatores, o primeiro dos quais era a ausência de concupiscência, pois não era assaltada por essas tentações que dão origem à maioria dos nossos pecados. Esse primeiro fator não bastava, pois os próprios anjos se revoltaram contra Deus, embora por sua natureza fossem inacessíveis à concupiscência;  e nossos primeiros pais desobedeceram a Deus antes de experimentarem essa lei do pecado sob a qual todos gememos. Para que alguém se oponha aos preceitos divinos, basta abusar de sua vontade livre, sem orientar-se pela evidência do bem.

Para permanecer isenta de todo pecado, Maria precisou de outros recursos, que foram o pensamento constantemente voltado para Deus, e ainda graças inteiramente especiais. Nós caímos no pecado depois que perdemos Deus de vista. Os bem-aventurados do céu não podem mais pecar, porque veem Deus face a face. Maria não contemplava Deus como os bem-aventurados, mas vivia sempre em presença de Deus. Muitos santos puderam permanecer conscientes da presença de Deus, quase sem interrupção durante toda sua vida, como se pode ler em sua hagiografia. Não há dificuldade, portanto, em acreditar que Maria estava sempre com o pensamento voltado para Deus, o que a impedia de encontrar prazer em qualquer coisa fora dele.

Maria era também acompanhada constantemente por graças particulares. Deus a cumulou com superabundância de luz e fortaleza, que a tornavam praticamente incapaz de cometer a menor imperfeição. Todo pecado é cometido por um erro, que consiste em pensar que o bem ou a felicidade podem ser encontrados onde não estão, mas as graças especiais faziam Maria ver que todo verdadeiro bem e toda verdadeira felicidade só podem ser encontrados em Deus. Como consequência do caráter vacilante da nossa vontade, podemos escolher o erro apesar de sabermos que se trata de erro. Mas as graças davam à vontade de Maria retidão absoluta e inabalável.

A graça é evidentemente o fator mais importante, alçando a pureza da alma de Maria incomparavelmente acima da que foi dada ao homem em estado de inocência, e também da que tinha o anjo mais sublime antes de sua admissão à visão beatífica.

Ausência de todo pecado em Maria, verdade revelada


Os primeiros cristãos, sem terem a visão dessa total pureza interior de Maria, certamente tinham sobre Ela essa impressão. Em primeiro lugar, não viam pecado em nenhuma ação dela, ao passo que foram constatadas fraquezas em todos os que conviveram intimamente com Jesus, com exceção talvez de São José e São João Batista. Na Mãe de Jesus, nenhuma imperfeição, mantendo-se inabalavelmente fiel nos momentos em que vacilaram os mais meritórios dos seus amigos. Zacarias duvidou da palavra do anjo, e por isso foi punido;  Maria acreditou, e sua fé foi recompensada pelo cumprimento das promessas divinas. Os apóstolos fugiram quando Jesus foi aprisionado, e até o chefe deles renegou o Mestre;  Maria se manteve de pé junto à cruz;  São João Evangelista também estava junto à cruz, mas havia fugido por um instante, e Jesus o havia mesmo advertido: "Não sabeis de que espírito sois feitos".

Além disso, os primeiros fieis sabiam que a pureza do corpo de Maria, em razão de seu Filho, havia sido consagrada por um milagre absolutamente único. Como vimos acima, a pureza miraculosa de seu corpo constituía aos olhos deles um meio e um sinal da pureza maior e ainda mais miraculosa de sua alma. Por outro lado, sentiam que a intimidade com o Filho de Deus, santidade infinita, exigia um certo patamar de igualdade. Deveria ser uma pureza maior que a humana, cujo limite corresponde à de um pecador ou infeliz pedindo perdão ou cura. Sabiam que Jesus quis receber de Maria sua humanidade inteira, com todos os cuidados que sua condição de Filho exigia;  quis amá-la como mãe;  quis ser submisso a Ela;  quis passar ao seu lado trinta anos de sua vida. Para ser digna de tal intimidade com o Deus de toda pureza, era necessário a Virgem ser sempre isenta da mínima mancha de pecado e até de imperfeição.

As experiências pessoais dos primeiros cristãos lhes mostravam que uma pureza como essa não estava ao alcance das forças humanas, e que para atingi-la eram necessárias graças especiais, o que os levava a ver em Maria uma criatura inteiramente excepcional e cheia de graça. Sem dúvida não avaliavam deste modo as diversas indicações da pureza de Maria, mas pelo menos era esse o seu sentimento em relação a Ela, daí a convicção de que para Maria não se punha a possibilidade de pecado.

Esta impressão foi também a das gerações seguintes, e até se intensificou à medida que a virgindade de Maria foi cada vez mais contemplada e admirada, associando-se ao nome da Virgem os qualificativos de pura, santa, imaculada.

Entretanto, um ou outro escritor eclesiástico entendeu descobrir alguma fraqueza na vida de Maria: certo movimento de vaidade em Caná, alguma falta de fé no Calvário. Mas não falavam em nome da Tradição, apenas recorriam a argumentos de sua própria invenção, elucubrados a partir de textos da Escritura que não haviam compreendido. Não passavam de opiniões isoladas e dispersas ante o imenso exército de Padres da Igreja e fieis, que professavam a total ausência de pecado em Maria devido às suas singulares relações com Jesus.

No século 4, Santo Efrém a enaltecia no Oriente: "Em verdade, Senhor, vós e vossa Mãe sois os únicos inteiramente belos, pois em vós e em vossa Mãe não se encontra nenhuma mancha, nenhum pecado". No Ocidente, Santo Agostinho lhe fazia eco por meio de uma formulação teológica: "Para honra do Senhor, não quero que de nenhum modo se fale de pecado em Maria, pois sabemos que lhe foi conferida uma graça excepcional para vencer o pecado em qualquer lugar, merecendo conceber e dar à luz aquele que evidentemente era sem pecado". (Santo Agostinho, De natura et gratia, capítulo 36.)

Os séculos seguintes só fizeram confirmar essa tradição, e o Concílio de Trento, embora sem erigi-la em dogma formal, reconheceu-a como a expressão da convicção comum, consagrando-a com esta declaração: "Se alguém disser que o homem, após sua justificação, pode evitar durante sua vida todo pecado, mesmo venial, sem depender de um privilégio especial de Deus, como a Igreja acredita no que se refere à Bem-aventurada Virgem, que seja anátema!".

Mencionamos acima a ausência em Maria de toda imperfeição voluntária ou mesmo involuntária. Não nos deteremos mais sobre o assunto, pois a solução se acha implicitamente contida em outras afirmações. Na prática, as imperfeições voluntárias são frequentemente faltas veniais, e sua ausência é uma decorrência da ausência de todo pecado. A ausência de imperfeições involuntárias é uma consequência natural da ausência da concupiscência, além do socorro de graças superabundantes. Se em Maria nunca houve concupiscência, se tudo era ordem e harmonia nas suas potências inferiores, na sua inteligência, vontade e sensibilidade, e se a todo momento uma graça maravilhosa a sustentava, como poderia haver nela condições para imperfeições desse gênero?

Voluntárias ou involuntárias, essas hipotéticas imperfeições são contrárias à ideia que os fieis têm da santidade de Maria, convictos de que Deus a fez tão perfeita quanto lhe era possível. É sob este aspecto positivo que a piedade dos fieis gosta de contemplar a Virgem. Menos preocupados com silogismos sobre o que pode não ter havido nela, preferem admirar o dom que o Espírito Santo de fato lhe deu, conforme Ele mesmo profetizou: "Sois toda bela, minha amada, sois toda bela".

2º. -- Significado da plenitude de graça


Sobre a plenitude de graças, devemos dizer que Maria possuía todas as que lhe era possível possuir. Não eram as mesmas que as de Jesus, fonte primeira de todas as graças. Tanto Maria como nós recebemos as graças dessa plenitude que é de Jesus.

Como consequência da união hipostática, em Jesus a plenitude era completa desde o primeiro momento, portanto sem possibilidade de acréscimo. Em Maria ela era limitada, mas suscetível de aumento. A alma de Maria era como um vaso que se dilatava indefinidamente à medida que ia sendo enchido. Por ocasião de sua morte, era também plena de graça, mas a capacidade da sua alma nesse momento era indefinidamente maior que no momento da saudação angélica, por exemplo. Pode-se aqui fazer uma analogia com os rios, que estão cheios na nascente e também na foz, mas com volumes muitíssimos diferentes.

Estabelecidas essas distinções, a plenitude de graça em Maria ultrapassa toda concepção e desafia toda comparação.

Plenitude de graça em Maria, verdade revelada


A doutrina da plenitude de graça em Maria não se encontra explícita na Revelação evangélica, que de fato contém a saudação do anjo Ave, gratia plena, mas esta expressão latina significa mais um comentário do que uma tradução literal do texto grego de São Lucas, sendo que os primeiros fieis só conheciam a saudação de Gabriel sob sua forma grega ou aramaica. Entretanto, o particípio perfeito usado pelo evangelista, significando fundada ou estabelecida na graça, indicava para eles ao menos uma superabundância de graças que lhe preenchiam a alma.

Outras indicações se somam a esta, reforçando a impressão que ela produzia no espírito dos fieis. Na mesma entrevista com a Virgem, o anjo repetiu: "Encontrastes graça diante de Deus". A insistência não deixava de ser significativa, pois o anjo anunciava uma manifestação particular dessa graça que era um prodígio inaudito -- uma maternidade virginal -- fazendo supor que a graça concedida por Deus revestia-se de características absolutamente únicas.

Porém, o que sem dúvida dava aos discípulos da primeira geração o sentimento mais vivo da plenitude de graça na alma de Maria era a vocação para a maternidade divina. De acordo com a observação muitas vezes repetida, a ideia que tinham sobre o procedimento de Deus com relação aos seus instrumentos de amor, e de Maria em particular, os predispunha naturalmente a concluir que, chamando a Virgem para tal função, Deus deve tê-la preparado dignamente, isto é, por meio de uma superabundância excepcional da graça.

Na Igreja latina, a convicção da plenitude de graça em Maria encontrou desde logo sua formulação na tradução das palavras do anjo, Ave, gratia plena. Certamente ela não criava tal convicção, pois se o fizesse, estaria também atribuindo igual plenitude de graça ao diácono Santo Estêvão, de quem a Escritura diz expressamente, inclusive no texto grego, que era cheio de graça. A expressão foi adotada por exprimir adequadamente a ideia que a primeira geração tinha legado às subsequentes. Como a Igreja grega não dispunha de tal formulação, importou-a da Igreja latina nos primeiros séculos, movida por seu zelo e entusiasmo em celebrar a riqueza sobrenatural da Teotocos.

Cada nova geração se sentia mais atraída a contemplar a doce figura de Maria;  seus privilégios se manifestaram aos olhos dos fieis com uma luz sempre mais clara;  seu papel na obra de nossa Redenção tornou-se cada vez mais evidente;  o amor do Filho de Deus por sua Mãe foi sentido e compartilhado com perfeição crescente;  compreendeu-se cada vez melhor que Deus tinha dado a sua Mãe todos os dons que seu poder e sua sabedoria podiam conceder.

A convicção da plenitude de graça em Maria, sem estar ainda formalmente definida, foi mesmo expressamente ensinada pela Igreja em um documento da mais alta autoridade, a bula Ineffabilis, que proclamou o dogma da Imaculada Conceição. Transcrevemos acima parte desse texto, que aqui incluímos na sua íntegra:

"O Deus inefável, desde o início e antes de todos os séculos, escolheu e deu a seu Filho uma Mãe da qual, fazendo-se homem, nasceria na feliz plenitude dos tempos. Dentre todas as criaturas, Ele a amava com amor singular, e nela se alegrou com toda a complacência de sua vontade. Cumulou-a da abundância de todos os favores celestes tirados do tesouro da divindade, bem mais ainda do que todos os espíritos angélicos e o conjunto dos santos, e de maneira tão maravilhosa que, sempre preservada absolutamente de toda mancha do pecado, toda bela e toda perfeita, teve em si plenitude tal de inocência e santidade, que não se concebe de nenhum modo maiores abaixo de Deus, nem pode concebê-la nenhum pensamento, exceto o de Deus. Era inteiramente conveniente que uma Mãe tão augusta brilhasse sempre com os esplendores da santidade mais perfeita, e que, isenta também do pecado original, obtivesse triunfo completo sobre a antiga serpente".

Portanto o Papa reconhece:

1ª. Em Maria houve uma plenitude de santidade que não pode ser concebida maior abaixo de Deus;

2ª. Essa santidade lhe foi concedida por ter sido escolhida para ser Mãe de Deus.

Alguns aspectos especiais dessa plenitude


Não podemos, nesta terra, contemplar todas as incomensuráveis riquezas dessa plenitude. Entretanto não nos é proibido considerar à distância um ou outro aspecto particular dela.

A graça, como se sabe, distingue-se em habitual e atual. A graça atual é um socorro transitório concedido por Deus em vista de um ato especial a praticar, destinada a esclarecer a inteligência, animar o coração ou excitar e fortificar a vontade a fim de tornar sua realização possível ou pelo menos mais fácil. É evidente que Maria possuía em cada momento todas as graças de luz, fortaleza e amor necessárias para praticar a ação do momento com a maior perfeição concebível. Sem isso teria faltado algo à sua plenitude, e Ela não teria atingido "plenitude tal de inocência e santidade, que não se concebe de nenhum modo maiores abaixo de Deus".

A graça habitual é uma maneira de ser permanente, divina, que nos torna participantes da própria natureza de Deus, um poder de vida que nos faz viver da vida divina. O poder de vida pode ser maior ou menor, e a participação em qualquer coisa pode ser mais completa ou menos. O poder de vida de um tuberculoso não é o mesmo de um homem robusto, e um raio de sol não tem o mesmo brilho quando visto através de um vidro sujo ou de um diamante límpido. Qual era, em Maria, esse poder de vida divina, essa participação na natureza de Deus? Examinaremos o assunto a propósito sobretudo de dois momentos da sua existência terrena: a Imaculada Conceição e a elevação à maternidade divina.

Como poderia ter sido a graça inicial da Imaculada? Quanto mais pudermos compreender esse privilégio, melhor poderemos admirá-la e amá-la. No entanto, qual criatura seria suficientemente poderosa para avaliar sua imensidade? Sem a possibilidade de compreendê-la por um exame direto, tentou-se recorrer a comparações. Afirmou-se que a graça inicial de Maria foi superior à graça perfeita de qualquer santo ou anjo. Isto se compreende, pois desde a Imaculada Conceição Maria foi preparada por Deus para sua futura dignidade de Mãe de Deus, a qual ainda na sua preparação já a elevava acima da dignidade final de qualquer servo de Deus, por mais elevado que seja seu grau, pois nas obras de Deus a qualidade da graça corresponde à da vocação.

Por outro lado, Deus amou desde então sua futura Mãe mais do a qualquer servo, e as graças que concede são de acordo com a proporção de seu amor. É bem assim que o entende o sentimento cristão, pois não conseguiria suportar a ideia de que em algum momento um dos servos fosse mais caro a Deus do que sua Mãe.

Esta opinião é muito generalizadamente aceita pelos teólogos. Alguns deles pensam mesmo que a graça inicial de Maria a elevava acima da graça final de todos os anjos e santos reunidos. Esta última opinião encontra menos receptividade em outros mestres da ciência sagrada, mas parece poder-se sustentá-la com argumentos sólidos. Inicialmente, porque os dois argumentos invocados em favor da primeira opinião valem também para a segunda:

1º. A graça corresponde à vocação. Desde sua Imaculada Conceição, Maria era chamada à maternidade divina, a qual é uma dignidade que, mesmo na sua preparação, a elevava acima da dignidade final de qualquer servo. Por que não a elevaria acima da dignidade de todos os servos?

2º. Deus dá sua graça de acordo com a proporção de seu amor. Ora, desde a Imaculada Conceição, amava sua futura Mãe mais que a qualquer servo. Por que não a amaria mais do que a todos os servos reunidos? Se um pai ama seu filho mais do que a qualquer servo, antes mesmo de ele nascer, e ainda sem saber se esse filho será digno dele, por que não o amaria acima do conjunto dos servos?

Do ponto de vista lógico, a segunda opinião parece tão provável quanto a primeira. Acaso existe alguma oposição entre as duas opiniões? Podem-se comparar as fortunas dos dois homens mais ricos de uma cidade ou a fortuna do mais rico com a de todos os outros juntos, pois a fortuna material é composta de objetos que podem ser somados e subtraídos. Mas será que ocorre o mesmo quando se passa da ordem da quantidade para a da qualidade? É certo que não se podem adicionar duas qualidades para obter uma qualidade superior. Os números conferem precisão na apreciação da quantidade, mas são desprovidos de sentido quando se trata de qualidade. Por exem-plo, não se podem somar duas cores vermelhas para obter uma cor vermelha duas vezes melhor. O que posso fazer é a comparação da cor vermelha de duas rosas, e concluir que uma é mais vermelha do que a outra.

Posso afirmar também que aquela mesma rosa mais vermelha é mais vermelha do que todas as outras rosas, tanto consideradas isoladamente quanto em conjunto.

Outra comparação pode ser feita no caso da inteligência humana, pois não tem sentido dizer que um homem é duas ou dez vezes mais inteligente que outro.

Pergunta-se então: a graça é uma qualidade ou uma quantidade? Todos afirmam que é uma qualidade, pois trata-se de uma maneira de ser, uma potência de vida sobrenatural, uma participação na natureza de Deus. Dizer, portanto, que a graça inicial de Maria era superior à graça final de qualquer santo ou anjo, corresponde a dizer que era também superior à graça final de todos os santos e anjos reunidos. Não somente de todos os santos e anjos existentes, mas também de todos os santos e anjos possíveis. Nesta mesma doutrina baseia-se o texto da bula Ineffabilis, acima citado, que menciona uma plenitude de inocência e santidade tais, que não se podem conceber outras maiores.

A comparação da santidade inicial de Maria com a graça consumada de tal santo ou anjo, ou de todos os santos e anjos reunidos, pode impressionar a imaginação humana e causar espanto ante a imensidade que essa comparação deixa entrever. É útil fazê-la, mas trata-se de termos de comparação muito imperfeitos. Para se avaliar a imensidade da graça concedida a Maria, é preciso considerar não a grandeza das outras criaturas, mas a grandeza da sua dignidade própria, que "toca nas fronteiras do infinito".

Por mais sublime que tenha sido a graça de Maria na sua Imaculada Conceição, a luz dessa graça não passava do clarão do alvorecer, comparado ao esplendor do sol do meio-dia que existiu no momento da Encarnação do Verbo. Desde o distante chamado para essa dignidade única, Deus lhe fizera o dom de uma graça da qual não nos podem sequer dar uma ideia as graças do conjunto das outras criaturas, mesmo as que atingiram seu auge.

Também sobre este ponto, procurou-se recorrer a comparações que permitam entrever a excelência dessa graça: São João Batista, ainda no seio de Santa Izabel, sentiu a presença de Jesus no seio de Maria, e apesar da distância, em apenas um instante essa presença o purificou do pecado e o preparou para sua missão futura;  o Evangelho narra o caso da mulher que sofria de uma hemorragia, e em um instante foi curada simplesmente por tocar na túnica de Jesus;  o corpo eucarístico do Salvador produz maravilhas de santificação nos fieis bem preparados. Que dizer então das maravilhas que Jesus terá operado naquela que se achava em contato físico com sua humanidade, não através de intermediários, mas diretamente, imediatamente, por uma união tal que fazia dos seus corpos apenas um, e não apenas por um instante, mas durante nove meses?

Todas essas comparações mostram apenas uma diferença de graus, sem dúvida prodigiosa, porém limitada a graus. Mas a união entre Jesus e Maria na Encarnação era não só mais íntima e mais durável que as uniões que acabamos de mencionar, eram ainda de natureza diferente. Por sua cooperação na Encarnação, Maria tocava na união hipostática, pois trazia em si o próprio autor da graça, formava-o, dava-lhe um corpo. Cristo recebeu inteiramente de Maria sua humanidade, que trouxe para nós a graça. É claro, portanto, que a comparação entre a Encarnação do Verbo e a recepção do corpo de Cristo na comunhão exprime apenas um aspecto secundário da plenitude de graça da Virgem na Encarnação. Pela comunhão, recebemos em nós a fonte de toda graça, mas Maria forneceu o terreno em que a graça germinaria. Não era apenas beneficiária da graça, tornou-se Mãe da divina graça.

Desde então se estabeleceu entre Jesus e Maria uma comunicação inefável: Maria dava a Jesus sua humanidade, Jesus dava a Maria uma participação sempre crescente na sua divindade;  a substância de Maria modelava e nutria a substância de Jesus, Jesus formava e elevava na semelhança com seu amor o amor de Maria;  o sangue de Maria circulava no corpo de Jesus, a graça de Jesus circulava na alma de Maria;  a Mãe fazia viver em si o Filho de sua vida, o Filho fazia viver em si a Mãe de sua vida.

Tanto quanto o Verbo feito homem, o Pai enriquecia sem medida a alma daquela que, nesse momento, compartilhava consigo a honra de gerar um Filho comum. Com esse Filho, em quem punha toda a sua complacência, Ele devia compartilhar também seu amor. E para que também Ela pudesse compartilhar tal amor, dava-lhe uma graça proporcionada, isto é, sem limites, tal como esse amor. Da mesma forma o Espírito Santo, ao concluir em Maria e por Maria a obra-prima de sua caridade, concedia à sua Esposa um dote digno de si mesmo e digno daquele de quem Ela se tornava Mãe. Desse modo a Santíssima Trindade se ocupava em ultrapassar sua própria munificência por meio dos mistérios de graça e amor que realizava nessa hora divina.

3º. -- As virtudes de Maria


A cooperação da vontade humana com a graça divina resulta na prática das virtudes. Se estas forem levadas suficientemente longe, constituem a perfeição ou santidade. Antes de examinarmos as principais virtudes de Maria, convém lembrar que a virtude não consiste numa série de atos exteriores, e sim numa disposição interior, numa fortaleza e prontidão da alma para praticar o bem. Os atos podem manifestar essa disposição, mas não são eles que constituem a virtude. O gesto exterior poderá ser o mesmo em um homem imperfeito e num santo consumado, mas a disposição interior será completamente diferente.

Qual era a disposição interior de Maria em relação ao bem? Desde o primeiro momento de sua existência, a força da sua vida sobrenatural ultrapassava a de todos os santos no fim de suas vidas. Da mesma forma que neles, e imensamente melhor que neles, essa força era dotada de aptidões especiais, que os teólogos denominam virtudes infusas e dons. Desde então, o mínimo movimento interior, o menor passo, a ação aparentemente mais insignificante eram em Maria animados por tal disposição de amor e realizados com tal perfeição, que jamais foram constatadas nos atos mais heroicos dos maiores santos. É importante ter sempre em vista esta observação ao examinar qualquer virtude de Maria e a sua vida.

Dispomos de um recurso para determinar qual deve ter sido a atitude particular de Maria a propósito de cada virtude. Não nos referimos às passagens em que o Evangelho nos fala dela, embora sejam mais ricas em ensinamentos do que parecem à primeira vista. Trata-se do estudo das virtudes do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, pois Deus fez Maria tão semelhante à humanidade de seu Filho, e de tal forma Maria meditou em seu coração tudo o que via em seu Filho, que todas as disposições da alma de Jesus encontravam-se reproduzidas na alma de Maria, tão exatamente quanto podiam reproduzir-se numa simples criatura.

Sobre o interior de Jesus, o Evangelho nos fornece bem mais indicações do que sobre o de Maria. Para fazermos uma ideia de quais eram os pensamentos, sentimentos e ações da Mãe, basta-nos portanto estudar as virtudes do Filho. Este método nos abre horizontes imensos para as virtudes de Maria, e permite que nos enlevemos com as maravilhas praticadas. Porém devemos estabelecer um limite, e nos restringiremos principalmente às indicações diretas do Evangelho, examinando-as à luz do princípio que acabamos de expor.

Os teólogos dividem as virtudes em teologais (fé, esperança e caridade) e cardiais, (prudência, justiça, fortaleza e temperança) e todas as outras se prendem a estas. Seguiremos esta divisão, no entanto sem a preocupação de analisar todo o catálogo das virtudes morais. Nossa análise se restringe às principais, em particular àquelas das quais o Evangelho nos permite observar algumas manifestações na Mãe de Jesus, e ainda assim nos limitaremos aos aspectos mais importantes. O estudo das virtudes de Maria cabe melhor na meditação. Em lugar de definir, dissecar e catalogar, a meditação permite à alma contemplar, admirar, amar e esforçar-se para imitar.

1ª. -- Virtudes teologais


A virtude da fé em Maria


"Bem-aventurada és tu, que acreditaste" -- disse Izabel à sua visitante. Pode parecer-nos natural que Maria tenha acreditado na palavra de Deus, mas um exame mais detido nos permite entrever a que ponto sua fé foi heroica. A fé é feita de luzes e obscuridade -- luzes suficientes para que a inteligência possa aderir à palavra divina;  e obscuridade suficiente para que a sua adesão seja meritória. Em Maria, luzes e obscuridade foram únicas. Graças escolhidas iluminavam seu espírito;  sua inteligência excepcionalmente penetrante, jamais perturbada por qualquer paixão, apreendia o sentido profundo das Sagradas Escrituras. Mas essas graças escolhidas não eliminavam todas as obscuridades, não eram graças de visão;  apesar da acuidade excepcional de sua inteligência, mesmo para Ela as profecias permaneciam obscuras por diversos lados, e os mistérios continuavam sendo mistérios.

Além disso, na sinagoga aqueles que deviam guiar o povo davam sobre as profecias interpretações destinadas a falsear-lhes o sentido.

O anjo anunciou a Maria mistérios novos, de tal monta que ultrapassavam tudo o que as mais amplas esperanças dos judeus ousavam aguardar. O próprio Deus se faria homem, não apenas a fim de libertar um pequeno povo do jugo estrangeiro, mas libertar o universo inteiro da condenação eterna. E havia ainda algo mais difícil de acreditar, pois Ela mesma deveria ser a mãe desse Deus encarnado. Por um milagre sem precedente, seria mãe permanecendo virgem. Quando uma felicidade ou honra inesperadas nos são anunciadas, quanto esforço e quanto tempo precisamos para acreditar! Ante o anúncio dessa felicidade e dessa honra infinitas, Maria permaneceu calma, como se lhe parecesse coisa natural.

A dúvida que Ela apresenta -- como se fará isso, se não conheço varão? -- não é a de quem duvida ou hesita, mas de uma alma que indaga como poderá cooperar com os desígnios de Deus. Logo que recebeu a explicação solicitada, manifestou seu consentimento com a vontade divina.

Os Padres da Igreja gostam de ressaltar a oposição entre a fé da nova Eva, que nos salvou, com a incredulidade da primeira Eva, que nos levou à condena-ção.

A partir de então, Maria possui em si mesma aquele que é todo verdade e luz. Sua fé se transformou então em visão? Não. Perdeu algo de sua obscuridade? Sob certo ponto de vista, sim, porém novas obscuridades se formam em torno dela, que se espanta com as palavras de Simeão e ignora o sentido da resposta de Jesus no Templo: "Por que me procuráveis? Não sabeis que devo cuidar das coisas de meu Pai?"  dições. Como conciliar a vida de seu Filho com as promessas divinas? O anjo lhe informara que Jesus se sentaria no trono de David. Porém, quando Ele vai à cidade de David, não só não é rece-bido pelos seus, mas deve fugir precipitadamente ante o usurpador do trono de seu antepassado. Seguem-se trinta anos de tranquilidade, mas essa mesma tranquilidade é de molde a abalar uma fé mais robusta que a dela.

Logo depois do nascimento, seu Filho suscitara os ciúmes de Herodes, o que tornava mais fácil reconhecer Deus nesse Filho recém-nascido do que na criança ou no adolescente que crescia e se desenvolvia, brincava ou trabalhava como qualquer outra criança ou adolescente.

A vida pública de Jesus começou por um milagre realizado a pedido da Virgem, em favor dos esposos de Caná. Deve-se ressaltar o caráter particular da fé que demonstrou nessa ocasião. O pedido dela não foi como o do pai -- Se podeis fazer algo, tende compaixão deles. Não foi também como o do centurião, cuja fé Jesus louvou -- Dizei uma só palavra, e os odres deles se encherão de vinho. Contentou-se em mencionar a situação de necessidade em que se encontravam os anfitriões: "Eles não têm vinho". Confiou em que não precisaria insistir, embora não o tivesse visto ainda fazer milagres.

Jesus começa a pregar, a curar os doentes, a ressuscitar os mortos, e as multidões o seguem com entusiasmo. É certo que houve oposições da parte dos sacerdotes e fariseus, mas apesar deles houve sua entrada triunfal em Jesusalém, enquanto a multidão exclamava: "Hosana ao Filho de David!". Parecia que a profecia de Gabriel estava para se cumprir, porém uma semana depois era aprisionado, condenado à morte e cravado numa cruz. O que era feito da missão de seu Filho? Um fracasso proclamado ante o mundo inteiro, nessa festa de Páscoa. Seus inimigos triunfam, seus amigos se escondem. O próprio Deus Pai parece desaprovar aquele que se declarara seu Filho: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?".

Onde estava o cumprimento da promessa do anjo, de que o filho dela se sentaria no trono de David, reinaria para sempre na casa de Jacob, e seu reino não teria fim? O trono de David era um patíbulo? Reinar sobre um povo cujos líderes o renegaram? Onde estava, naquele momento, a fé dos apóstolos, que Jesus queria tomar como colunas da sua Igreja?

Apesar de tudo isso, a fé da Virgem permanecia inabalável. Bem-aventurada aquela que acreditava, pois em menos de três dias veria o cumprimento das coisas que lhe haviam sido ditas pelo enviado do Senhor!

A virtude da esperança em Maria


A fé conduz à esperança. Quem acredita firmemente nas promessas de Deus infalível, infinitamente bom e poderoso, aguarda com confiança o objeto de suas promessas. E o objeto delas é o próprio Deus, com poder para realizá-las eternamente.

Maria tinha motivos poderosos para esperar a eterna posse de Deus. Ela a possuía desde sua Imaculada Conceição, e se achava enriquecida com graças maravilhosas. A cada momento, sentia crescer sua intimidade com Deus e a abundância das suas graças. A partir da Encarnação, seu título de posse era único, pois seria sua Mãe por toda a eternidade. Como poderia não possuí-lo para sempre?

Entretanto, ao lado desses motivos particulares de esperança, teve também motivos particulares para hesitar. Para si mesma, devia esperar favores absolutamente singulares, não os bens comuns. No entanto, conhecia mais do que ninguém a profundidade da sua pequenez, sua condição de pobre filha de Nazaré, humilde serva do Senhor. Como ter esperança nessa maternidade divina, virginal, mais adequada a quem fosse o ser mais perfeito depois de Jesus, superior ao mais sublime dos anjos?

Maria devia esperar para seu Filho o cumprimento das profecias, que lhe anunciavam triunfos sem precedentes. No entanto, os fatos se sucediam um após outro, desde o nascimento num estábulo até a morte na cruz, e tudo parecia fornecer um desmentido estrondoso a todas essas predições.

A esperança de Maria devia abranger o mundo inteiro, pois esse era o alcance do perdão e da salvação. Incluía também a missão de colaborar pessoalmente para o perdão e a salvação da humanidade. Daí em diante tornar-se-ia mãe de todos os homens, para os quais deveria obter as graças necessárias, e existe uma causa comum entre a mãe e seus filhos. Quantas vezes teve de esperar contra toda esperança, mantendo a esperança porque desejava a plena realização das promessas divinas. Infinitamente mais do que seu real antepassado, teve motivos para agradecer ao Senhor a esperança singular na qual Ele a havia colocado: Quoniam tu, Domine, singulariter in spe constituisti me.

A virtude da caridade em Maria


Deus é amor, segundo a definição de São João. Guardadas todas as proporções, não poderíamos afirmar o mesmo daquela que é a imagem perfeita de Deus? Maria é amor, tudo nela se explica pelo amor ou se volta para o amor. Cada um de seus atos foi um ato de amor, cada uma de suas virtudes foi um aspecto de seu amor. Se sua fé foi tão ardente, sua esperança tão firme, sua pureza, sua humildade, sua fortaleza, sua prudência tão perfeitas, é porque seu amor por Deus foi perfeito além de tudo que se possa conceber.

Para podermos entrever, mesmo que longinquamente, a grandeza e o caráter singular desse amor, reportemo-nos ao que foi dito acima a respeito da maternidade divina, privilégio de amor, e da grandeza de sua graça, isto é, da sua força de amar. Contentemo-nos em lançar aqui um olhar sobre a manifestação essencial desse amor, que é a conformidade de Maria com a vontade de Deus.

"Aquele que me ama, observe os meus mandamentos". Maria deu constantemente essa prova de amor, muitas vezes ao preço de alguns heroísmos: "Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra". Toda a sua vida cabe nesta resposta. Quer Deus lhe fale por meio de um anjo, por São José, por um imperador pagão ou pelos acontecimentos, reconhece sempre sua vontade e se submete com a mesma prontidão e simplicidade. Entretanto, mais de uma vez terá deparado com uma ordem bem desconcertante, como na ocasião em que teve de se unir a São José apesar da sua resolução de permanecer virgem;  ou quando, nas vésperas de seu parto, foi obrigada a viajar até Belém;  ou ainda na noite em que recebeu a ordem de fugir para o Egito por causa do usurpador do trono de seu Filho.

Por outro lado, era sempre escrupulosa em agir de acordo com a vontade de Deus, mesmo que lhe parecesse dever agir de outro modo. Por exemplo, Deus a informara de que seria Mãe e Virgem, mas não lhe pediu que desse conhecimento disso a São José. Calou-se, preferindo ser objeto de dúvidas angustiantes ao invés de antecipar-se a uma ordem divina. Conhecia mistérios inefáveis sobre seu Filho, e podia ocorrer-lhe a ideia de que seria mais sábio revelá-los aos amigos, a fim de preparar o caminho para a missão de Jesus. Como Deus não lhe dera nenhum sinal de sua vontade a esse respeito, contentou-se em deixar o assunto no silêncio e na obscuridade durante os trinta primeiros anos da vida de seu Filho.

Durante toda a sua existência, permaneceu a serva do Senhor. Se pronunciara um fiat em Nazaré, coube-lhe pronunciar também outro fiat muito mais doloroso no alto do Calvário.

Ao lado do amor a Deus, a virtude teologal da caridade compreende o amor ao próximo. Ama-se também a Deus por meio do amor ao próximo, seja porque Deus vive nele ou para que Deus viva nele. São João nos informou que a pedra de toque do nosso amor a Deus é o nosso amor ao próximo. Assim, para compreendermos o amor de Maria ao próximo, devemos compreender seu amor a Deus. Pela luz da graça, via Deus tão claramente nos homens, compreendia tão perfeitamente o desejo infinito de Deus em se comunicar a eles, que deve tê-los amado com amor sem limites logo que os conheceu.

A Encarnação lhe trouxe novas luzes e a colocou em novas relações com a humanidade. A partir desse momento, não via nos homens somente as criaturas queridas de Deus, mas também seus próprios filhos, como Jesus, ao qual os devia tornar semelhantes, com amor que nos custa imaginar.

O Evangelho nos fornece sobre esse amor dois exemplos especiais. Inicialmente, na visita a Santa Izabel. Sem dúvida, um santo entusiasmo levou-a a permanecer junto de sua prima. Porém, não se pode imaginar que o faria se não tivesse grande espírito de caridade e desinteresse, pois teve de empreender uma viagem de vários dias para chegar a um vilarejo perdido em meio às montanhas, numa província distante, prestando aí os cuidados que o nascimento de João Batista iria exigir.

O segundo exemplo é a conduta de Maria em Caná, onde seu espírito de caridade se mostra mais claramente. Não se tratava de purificar e santificar um profeta, nem mesmo de aliviar reais necessidades corporais, mas apenas de poupar aos anfitriões uma pequena confusão. Para isso Ela devia pedir a Nosso Senhor o que jamais havia pedido para suas necessidades pessoais mais urgentes. Tratava-se de obter um milagre, demonstrando seu poder divino, e parece que nunca o tinha visto operar outro antes.

Esses dois episódios foram apenas manifestações acidentais de sua incomensurável caridade em relação aos homens. A grande prova dessa caridade, deu-a na sua cooperação com o mistério da Redenção. "Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelo seu amigo", e na sua colaboração com o mistério da Redenção Maria sacrificou pelos homens não apenas sua vida, mas ainda aquilo que lhe era infinitamente mais caro, que era a vida de seu Filho. Esse sacrifício não durou apenas algumas horas, mas trinta e três anos.

2ª. -- Virtudes morais


A virtude da prudência em Maria -- Os Padres da Igreja se comprazem em ressaltar a prudência da Virgem na entrevista com o anjo Gabriel, que se contrapõe à entrevista de outra mulher com outro anjo, este decaído, na qual a imprudência de Eva nos conduziu à perdição.

A prudência não consiste em decidir em função de uma pressão atual da sensibilidade diante de um bem a conquistar ou de um mal a evitar, mas sim em decidir por motivos que levam em consideração o futuro. Há dois tipos de prudência: carnal e espiritual. Nesta última há vários graus. Quem resolve abraçar a vida religiosa, não por uma atração cega ou por um motivo natural, e sim para melhor garantir sua própria salvação, age por prudência sobrenatural. Mas essa prudência, como também o motivo que a inspira, está longe de ser a mais perfeita possível.

A única coisa sobre a qual Maria desejava ter certeza, antes de tomar uma decisão, não era sua vantagem pessoal, mesmo tratando-se dos bens celestes, mas sim a vontade de Deus. Antes de conhecer a vontade de Deus, fazia calar todos seus sentimentos pessoais, antepondo a eles o impulso de sua alma a fim de considerar com calma e vagar as indicações da vontade divina. Nela os sentimentos não procuravam antepor-se à razão.

A preocupação de perscrutar unicamente a vontade de Deus alimentava a prudência de Maria com seu motivo mais perfeito, e ao mesmo tempo simplificava maravilhosamente a sua operação, tornando-a infalível para a previsão do melhor resultado final. Não havia nenhuma necessidade de pesar longamente as razões a favor ou contra, com todas as consequências certas, prováveis ou possíveis. Desde que Deus infinitamente sábio desejava tal coisa, bastava-lhe conformar-se à sua vontade para estar absolutamente segura do sucesso maior possível.

Para manter sempre essa prudência sobrenatural, Maria precisava de um autodomínio heroico, por vezes no mais alto grau. Quando o anjo Gabriel saudou-a como cheia de graça, portanto objeto de uma eleição especial de Deus, falava de favores sobrenaturais. Quem não se rejubilaria com tal situação? No entanto, ficou perplexa com essas palavras e refletia sobre seu significado. O anjo a tranquilizou: "Não temas!". Em seguida lhe explicou que fora escolhida para ser Mãe do Messias, que toda a nação judaica desejava ardentemente, e Ela mais do que qualquer outro israelita. Portanto estava destinada a dá-lo à luz, mas ao invés de entregar-se a transportes de alegria, limita-se a pedir explicações. Em seguida, tendo compreendido a vontade de Deus, concorda simplesmente, com uma palavra de humilde submissão: "Eis a serva do Senhor, faça-se em mim de acordo com vossa palavra!".

Se não conhecêssemos o entusiasmo da Virgem diante de Izabel, poderíamos indagar se de fato havia entendido a honra sem igual que lhe era oferecida. Acontece que, se há momentos para se demonstrar alegria, há também momentos em que se deve refletir calmamente, e a prudência exige que a reflexão preceda o entusiasmo.

Por mais impossível que nos pareça uma deliberação tão calma nesse caso, há outro em que a prudência se mostra talvez ainda mais heroica. Quando se sentiu grávida, vários motivos, inclusive sobrenaturais, pareciam indicar-lhe que se explicasse. Era obrigada a cuidar da própria honra, e ainda que não fosse por causa do Filho, tinha de manter São José como indispensável protetor, evitando também angústias compreensíveis num esposo tão digno. Isto era verdade, mas qual era a vontade de Deus? Todos os outros argumentos deviam ceder diante deste. Calou-se, pois nada lhe indicava ser a vontade de Deus que Ela falasse. Deus cuidou dela, e sua prudência foi recompensada.

Mesma prudência a propósito da missão de seu Filho. Ao contrário de alguns dos seus parentes, impacientes para verem a realização dos seus sonhos messiânicos, não insistia para Jesus se manifestar ao mundo, levava em consideração apenas uma coisa, que era o cumprimento da vontade de Deus, qualquer que ela fosse, e por isso teve pleno êxito na sua missão.

A virtude da justiça em Maria -- Sobre a justiça de Maria em relação aos homens, o Evangelho não nos fornece exemplos diretos, mas podemos imaginar o que ela terá sido, se nos lembrarmos da sua indescritível caridade. Deixa-nos entrever no entanto o que deve ter sido, nessa alma que vivia apenas para Deus, o sentimento de justiça em relação ao Criador. Esta forma de justiça se manifesta pela virtude de religião.

A religião é o reconhecimento dos direitos de Deus sobre nós e a disposição de nos submetermos a Ele. A religião é interior e exterior. Interior é a religião da inteligência, do coração e da vontade, que reconhecem e aceitam com amor os direitos do Altíssimo. Compreende quatro atos principais: adoração, reconhecimento, expiação e súplica. (Adoração consiste em reconhecer o domínio soberano e absoluto de Deus sobre nós.)

Maria compreendeu e cumpriu melhor esse dever do que qualquer outro, quando respondeu simplesmente: "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim de acordo com vossa palavra". No céu, durante séculos cujo número ignoramos, miríades de anjos velam a face diante da majestade de Deus, cantando sem cessar Santo, Santo, Santo! A partir do momento em que Maria foi concebida, da terra se elevam ao soberano Senhor homenagens de adoração incomparavelmente mais agradáveis que os louvores incessantes dos espíritos celestes. Quanta alegria para a Virgem, por se ter aniquilado diante daquele que quis contemplar a baixeza de sua serva, e que no excesso de sua condescendência quis depender dela e ser-lhe submisso!

Deus é nosso soberano e Senhor, mas também nosso benfeitor, daí nosso dever de reconhecimento. São Lucas nos fornece no Magnificat um relato que é uma prova do reconhecimento de Maria a Deus.

Os reconhecimentos não têm todos o mesmo grau de perfeição, pois algumas pessoas pensam sobretudo nelas mesmas e no bem recebido, enquanto outras meditam sobre o bem recebido para poderem alcançar o benfeitor e agradecer-lhe. Esta última forma de reconhecimento foi a de Maria, que admirou as grandes coisas que nela foram feitas, mas só as admirou para melhor contemplar aquele que é o autor de todas essas maravilhas. Do início ao fim do seu cântico, é a Deus que Ela contempla e nos convida a contemplar. Longe de se deter na sua própria elevação, confunde sua causa com a dos pobres e pequenos, para exaltar a misericórdia universal de Deus sobre todos os que reconhecem o seu nada diante dele.

Terá sido o Magnificat um episódio isolado na sua vida? Certamente não, pois foi concebida sem mancha e reconheceu a singular bondade de Deus em relação a Ela, correspondendo a esse amor infinito por um movimento de imensa gratidão. As graças inundaram incessantemente sua alma com uma plenitude sempre crescente, enquanto continuamente o seu reconhecimento se tornou mais amoroso, sobretudo a partir da Encarnação do Verbo.

Ao lado de seu reconhecimento à Santíssima Trindade, Maria terá manifestado reconhecimento particular a Jesus, Filho de Deus, que tinha se tornado Filho dela para resgatar a humanidade, aplicando-lhe antes uma redenção especial. Conhecendo a alma de seu Filho, adivinhava quanto Ele sofreria de angústias ao longo da vida por causa de sua missão redentora, culminando em indizíveis torturas quando agonizava na cruz. Deixaria Ela de pensar que tais sofrimentos eram suportados também em favor dela, e deixaria ainda de testemunhar-lhe reconhecimento mais ardente por tão grande amor?

Outro motivo de reconhecimento era a compreensão de que o Redentor tinha desejado associá-la à sua obra redentora, e que deveria merecer junto com Ele a salvação dos homens, aos quais gerara espiritualmente para a graça quando deu à luz seu Filho. Jesus se dignara permitir-lhe compartilhar os seus sofrimentos, não a deixando ignorar durante a vida as angústias do seu coração;  e na hora solene do supremo sacrifício, não quis mantê-la longe das cenas espantosas de sua Paixão e morte. Dessa forma fora admitida a sofrer juntamente com seu Filho tanto quanto lhe permitiam suas forças, bebendo com Ele o mesmo cálice e tornando-se a Mãe das dores com o Varão das dores.

Os anos seguintes ao triunfo de Jesus, que ressuscitou e subiu aos céus, foram indubitavelmente anos de ação de graças para Maria, que sem cessar deve ter repetido seu cântico: "Minha alma glorifica ao Senhor, pois fez em mim grandes coisas, e seu nome é santo". Por fim foi também elevada ao céu, onde entoa para sempre seu Magnificat junto à Santíssima Trindade.

O homem ousa ofender seu Senhor e benfeitor pelo pecado, mas Deus não o rejeita como rejeitou os anjos prevaricadores. Desde que aceite pedir perdão e expiar seus pecados, Deus restabelece sua graça e amizade, daí um terceiro ato da virtude de religião, que é a reparação.

Maria não tinha nada a reparar pessoalmente, pois jamais havia magoado o coração de Deus. No entanto devia tornar-se a grande reparadora,assumindo uma causa que era a mesma dos homens, sobretudo a de seu Filho. E assim pediu a Deus o perdão pelo pecado de Adão e Eva, dos seus antepassados e de todos os homens, tornando-se a garantidora das dívidas assumidas pelos culpados. Procedia como seu Filho, que viera como Salvador dos homens e também como reparador da glória de Deus, e associou-se a Ele nessa obra. (Pio XI, Miserentissimus Redemptor.)

Maria se incorporou perfeitamente às disposições de Jesus, e juntamente com Ele podia dizer ao Pai: "Os holocaustos, sacrifícios e oblações que os homens fizeram não vos foram agradáveis, e eu venho para fazer a vossa vontade. Eis a serva do Senhor, faça-se em mim de acordo com a vossa palavra". Ela se ofereceu a Deus, e ainda mais, ofereceu o Filho que lhe pertencia. Como sua dignidade era quase infinitamente mais alta que a de todos os homens, suas reparações prestaram a Deus mais honra e mais consolação do que o suficiente para aplacar os crimes dos homens.

A infinita bondade de Deus concede inúmeras graças ao homem durante toda sua vida, ainda que nada faça para merecê-las. No entanto Ele quer que o homem, a partir do uso da razão, manifeste livremente suas necessidades e lhe peça ajuda. Desse modo a súplica ou pedido é parte das obrigações impostas pela virtude de religião. Será tanto mais perfeita quanto mais viva for a compreensão da grandeza à qual a pessoa é chamada por Deus, e da sua impotência radical para atingi-la por suas próprias forças. Com isso sua confiança em Deus será mais inabalável.

Nenhuma criatura humana foi chamada por Deus para missão tão sublime quanto a da Virgem;  nenhuma teve tanto o sentimento de sua absoluta incapacidade para fazer o menor bem por suas próprias forças;  nenhuma teve tão invencível confiança na bondade infinita de Deus. Desse sentimento elevava-se a prece mais perfeita que jamais outra criatura dirigira a Deus. Jesus não precisou lembrar a Maria algo assim: "Até agora nada me pedistes. Pedi e recebereis, para que vossa alegria seja perfeita". Bem antes de Jesus formular esse preceito, Ela havia compreendido que é necessário orar sempre, incansavelmente.

Maria pedia a Deus por si mesma, para sempre cumprir plenamente a vontade de Deus;  pedia pelos homens, a fim de obter socorros temporais e espirituais para suas necessidades, que Ela adivinhava como em Caná e no Cenáculo;  pedia por seu Filho e em união com Ele, a fim de que o Pai abençoasse seu apostolado e tornasse mais eficaz sua obra redentora. Antigas representações mostram-na em atitude de oração, e de fato Ela orou sempre, desde sua Imaculada Conceição até o fim de sua vida. Continua orando no céu pelos seus filhos, enquanto algum deles precisar de socorro.

A religião reside essencialmente nas disposições do coração. "Os verdadeiros adoradores adoram o Pai em espírito e em verdade". Entretanto, sendo o homem composto de matéria e espírito, foi criado para viver em sociedade e deve prestar a Deus um culto exterior e público. Entre os israelitas, as prescrições desse culto se encontravam minuciosamente na lei de Moisés. Embora muitos judeus reduzissem o culto a essas prescrições, elas representavam autenticamente o culto exterior que Deus desejava. Submetendo-se a elas em espírito de oração interior, especialmente no Templo, os judeus piedosos prestavam a Deus uma glória única em todo o universo

Depois da sua conceição sem pecado, Maria tinha Deus em seu coração. A partir da Encarnação, possuía em seu seio ou na sua casa o Deus feito homem, que iria tornar-se daí em diante o centro do nosso culto. Mas aceitava com toda simplicidade as prescrições da antiga Lei, mesmo quando tinha boas razões para dispensar uma ou outra, tais como a circuncisão e a apresentação de Jesus no Templo, além da sua própria purificação. Outras não diziam respeito a Ela diretamente, como o convite para os homens adorarem Yahweh anualmente em Jerusalém durante a Páscoa. Podem-se imaginar os sentimentos profundos de religião com que cumpria essas disposições do culto tradicional, como também a glória que assim prestava ao Altíssimo.

Mas esse culto antigo e demasiadamente externo devia cessar, pois todos os sacrifícios da antiga aliança deviam desaparecer ante uma vítima inteiramente pura, que seria imolada em todo o mundo, do Oriente ao Ocidente, e cuja oblação constituiria o culto perfeito. Era essa a vítima que Maria devia preparar, concebendo-a, formando-a com sua substância, nutrindo-a e educando-a em função do sacrifício, entregando-a ao Pai e unindo suas disposições às da própria Vítima. Na condição de sacrificador, devia permanecer de pé no altar da imolação, onde seu Filho expirava pela glória do Pai e a salvação da humanidade.

Na véspera dessa imolação, Jesus dera a seus apóstolos a ordem de perpetuá-la ao longo dos séculos. O sacrifício eucarístico iria prolongar o da cruz. Sabemos que em Jerusalém ele era oferecido diariamente, portanto Maria pôde assistir a ele como ao sacrifício da cruz, com as mesmas disposições, tendo em vista a glória de Deus e a salvação dos homens.

A virtude de religião é aperfeiçoada pelo dom de piedade. A religião considera Deus como um Senhor, e o homem como um servo, enquanto a piedade vê em Deus um pai, e no homem o seu filho. Pela religião, reconhecemo-nos como parte do domínio de Deus, e pela piedade sentimo-nos membros de sua família.

A piedade era desconhecida dos pagãos e pouco conhecida pelos judeus, só se difundiu na religião de Cristo. Jesus falava constantemente do Pai aos seus discípulos, e ordenou-lhes dizer Pai nosso quando orassem. Daí em diante foram compreendidas as disposições filiais com que se devia falar com Deus, que por meio de seu Filho tornara os homens participantes da sua natureza e via neles irmãos do seu primogênito.

O espírito de piedade é um dos sete dons do Espírito Santo, que em suas comunicações inenarráveis nos faz bradar do fundo do coração Abba, Pai!. Seria possível duvidarmos que o Espírito Santo concedeu esse dom à sua Esposa Imaculada, em toda a sua perfeição? Maria se considerava Filha bem amada de Deus, envolvida por Ele numa ternura ilimitada, guardada por uma solicitude de todos os instantes, atendida além de suas previsões. Não lhe era possível deixar de ver nele um Pai infinitamente mais amoroso que todos os pais terrenos;  e se jamais perdeu de vista a infinita distância que a separava dele, também jamais perdeu de vista o infinito amor que o aproximava dela.

A piedade filial da Virgem deve ter aumentado maravilhosamente a partir da Encarnação. Este mistério mostrava não só que Ela era filha bem amada de Deus, mas a Filha bem amada e única de Deus, elevada a uma tão grande intimidade com Ele, que ultrapassava até a dos espíritos bem-aventurados. Por uma espécie de simpatia divina, suas conversas com Jesus durante os trinta anos da vida oculta torná-la-iam diretamente participante da piedade filial do Filho para com o Pai. De que se tratava nessas conversas, a não ser do Pai, do seu amor, sua Providência, sua glória e sua vontade? Naquela casa de Nazaré, o que se rezava devia ser: "Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu". Mais tarde, quando Jesus falou do Pai aos seus discípulos, a tal ponto se entusiasmou com o amor do Pai, que um deles exclamou: "Senhor, mostrai-nos o Pai, e isso nos basta!".

De quanto amor ao Pai não terá Jesus conseguido inflamar a alma de sua Mãe? Como é certo que Jesus conseguiu infundir no coração de Maria todas as suas próprias disposições, o que se poderá dizer da piedade filial, que ocupava o primeiro lugar na sua alma, e que o havia levado a encarnar e a morrer?

No seu sentido completo, a piedade compreende todos os sentimentos dos membros de uma família uns com os outros -- dos filhos para com os pais e dos pais para com os filhos;  dos filhos entre si;  dos esposos um com o outro. Na ordem sobrenatural, a piedade geralmente designa os sentimentos dos homens para com o Pai celeste. Em Maria, a piedade abrangia muito mais, por ser Filha de Deus e também sua Esposa. Era Esposa do Pai, como sua associada na geração do Verbo encarnado;  Esposa de Jesus, por ser a Virgem puríssima, e mais ainda por ser a nova Eva ao lado do novo Adão;  Esposa imaculada do Espírito Santo. Sobretudo era Mãe, verdadeira Mãe de Deus e verdadeira Mãe dos homens. A piedade de Maria era única, tanto por sua intensidade quanto por sua abrangência.

A religião e a piedade se alimentam e se manifestam por uma constante vida de recolhimento e oração. São Lucas relata que a Virgem conservava em seu coração tudo o que via e entendia sobre seu Filho, e insiste duas vezes sobre isso. A intenção direta do evangelista parece ter sido a de nos fazer entender que Maria era sua fonte no que se refere a este relato. Contudo, acrescentando que Ela "guardava no seu coração todas essas coisas" maravilhosas, faz-nos também constatar nela o hábito de meditar sobre os mistérios de seu Filho. Foi esta a ocupação de toda a sua vida, e sua atitude era sempre a do recolhimento.

Os trinta anos que passou com Jesus em Nazaré foram para Maria de profunda meditação e união com Deus. Quando Ele vai pregar, curar os doentes, levar consigo as multidões, Maria permanece na sua solidão, sempre ocupada em meditar o que conhece e compreende sobre Ele. De Pentecostes até a sua morte, continua a contemplar em silêncio os mistérios divinos, enquanto os Apóstolos pregam a boa nova e governam a Igreja. "Ela escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada".

Tudo isso, no entanto, é apenas o lado externo dessa vida de união com Deus. Falta explicar a realidade interior, mas quem se aventurará a analisá-la? Algumas almas místicas nos deixaram descrições detalhadas de seus estados sobrenaturais, dos quais compreende pouca coisa quem nunca os experimentou. A união dessas almas com Deus nos seus períodos mais elevados, que se conhece habitualmente com o nome de casamento místico, é apenas uma sombra da união que tinha Maria. Pode-se dizer que a união delas termina onde a dela começa, pois o seu primeiro ato de amor já era superior ao amor final dos santos mais perfeitos. As riquezas insondáveis dessa união inigualável abismavam no Criador a mais sublime das criaturas.

A virtude da fortaleza em Maria -- Sobre a virtude da fortaleza, devemos ter em vista que alguns cristãos veem Maria apenas como uma criatura infinitamente pura e delicada, a mulher mais terna e mais doce que já houve. Correm assim o risco de ter em relação a Ela uma devoção sentimental;  ou então uma piedade de comando, se são pessoas de índole mais categórica. Nunca percebem que essa Virgem tão terna, essa Mãe tão doce, é também a mulher forte por excelência, e nunca houve homem tão viril quanto essa Mulher.

A virtude da fortaleza compreende dois atos principais, que consistem em empreender e sustentar. É necessária a fortaleza para empreender ações árduas. Na ordem natural, pode-se recorrer à assistência de Deus, mas ainda assim precisa-se de fortaleza heroica para assumir a responsabilidade por certas tarefas. Têm-se visto homens dos mais corajosos ou mais santos recuar, ante o espanto causado pelas missões que Deus desejava confiar-lhes. Basta lembrar Moisés, Jeremias, Jonas e outros personagens do Antigo Testamento;  na Igreja de Cristo, alguns servos de Deus se ocultaram, ou mesmo se recusaram a assumir responsabilidades que outros desejavam colocar sobre os seus ombros, como a direção de ordens religiosas, o episcopado ou o papado;  outros, mesmo aceitando algum encargo por encará-lo como a vontade de Deus, verteram lágrimas ou foram tomados por um movimento de espanto ou medo.

Deus apresentou a Maria, por meio do anjo Gabriel, uma missão superior à de todos os patriarcas, todos os profetas, todos os bispos e Papas. Era uma missão sem igual, ao lado do Redentor, da qual dependia a salvação do mundo e a realização dos decretos eternos de Deus. Logo que compreendeu a vontade divina, respondeu simplesmente: "Eis a serva do Senhor, faça-se em mim de acordo com a vossa palavra".

Se é necessária a fortaleza para empreender uma obra árdua, muito mais se requer para prosseguir, e sobretudo para conduzi-la a bom termo. Entre cem homens que iniciam um empreendimento difícil, apenas cinco têm suficiente tenacidade para conduzi-lo ao objetivo final, pois pouco a pouco vão se desgastando ante os obstáculos que constantemente se renovam. Para Maria, as dificuldades cresciam cada vez mais depois da Encarnação, mas sua fortaleza crescia mais ainda. Aquela mesma que admiramos em Nazaré, tão simples no seu consentimento, perseverou nele, de pé diante do Filho crucificado, durante três horas de dolorosa agonia.

Mais ainda do que para agir, é necessária a fortaleza para sofrer. É sobretudo neste aspecto que se manifesta a fortaleza de Maria. A piedade dos fieis a compreendeu, e se compraz em contemplar a Mulher forte nas suas sete dores. O número sete é evidentemente simbólico, indicando uma plenitude, uma vida inteira submetendo-se às provas mais terríveis. A Anunciação, primeiro mistério gozoso, foi também um mistério doloroso, pela previsão de todas as dores que a qualidade de Mãe do Redentor acarretaria para Ela. Daí em diante as provas se sucediam às provas: angústias de São José, profecia de Simeão, fuga para o Egito, perda de Jesus no Templo, perspectiva cada vez mais próxima de realização das profecias amedrontadoras. Durante a vida pública, as notícias sobre as dificuldades suscitadas a seu Filho, a movimentação sorrateira dos fariseus, seguida da oposição aberta, os rumores de conspiração contra a vida de Jesus, e depois as horríveis cenas da Paixão e o desenlace final.

Todos esses fatos nos mostram apenas um aspecto exterior do sofrimento da Virgem. Para compreender o que se passou no interior de sua alma, seria necessário avaliar o que se passava no interior da própria alma de Jesus, tudo o que sofreu desde o primeiro momento em que se ofereceu ao Pai como substituição dos holocaustos daí em diante recusados, até o momento final em que expirou lançando um alto brado. Por uma união de alma infinitamente delicada, todos os sofrimentos da alma do Filho repercutiam na alma da Mãe, que precisava de incalculável fortaleza de alma para suportar essas dores sobre-humanas.

O martírio é o ato supremo da virtude da fortaleza. Maria não foi mártir no sentido comum do termo, porém o foi muito mais do que isso, tanto que a homenageamos com o título de Rainha dos mártires. Seu martírio se coloca imensamente acima do que receberam todas as outras testemunhas de Cristo, tanto pela duração quanto pela intensidade, pois foi um martírio de amor. Amando mais do que todos os santos reunidos, Maria sofreu mais que todos eles. Bastaria isso para avaliarmos a intensidade da fortaleza que demonstrou a Rainha dos mártires, e também para medirmos a intensidade do seu amor a Jesus, ao Pai e a todos os seus filhos espirituais. O amor a fez sofrer, e também a sustentou no sofrimento.

A virtude da temperança em Maria -- A virtude da temperança, tomada no seu sentido mais amplo, tem por objetivo equilibrar os vários movimentos da alma, de acordo com a razão esclarecida pela fé. Vista assim, abrange certo número de virtudes especiais: sobriedade, frugalidade, modéstia, etc. É possível fazermos uma ideia do que foi a temperança de Maria, e do grau que atingiram nela as várias virtudes particulares arroladas sob esse nome genérico. Por exemplo, sua frugalidade no uso dos alimentos, seu desapego dos bens terrenos, sua doçura, sua modéstia, seu constante domínio sobre si mesma. Limitaremos aqui nossa exposição à pureza e humildade, duas virtudes sobre as quais o Evangelho nos fornece alguns elementos.

Já tratamos da pureza de Maria quando analisamos sua virgindade perpétua, porém limitando-nos mais ao lado divino dessa pureza. Resta-nos focalizá-la agora principalmente do ponto de vista humano, isto é, sua pureza enquanto revelando-nos uma disposição de sua alma.

Mesmo sob esse ponto de vista humano, a pureza de Maria é única. Em meio à corrupção que nos circunda, por vezes deparamos com o espetáculo de uma pureza que nos eleva: a inocência serena que se lê no olhar límpido de certas pessoas, a atmosfera de virgindade que se respira quando dela nos aproximamos, tornando impossível qualquer pensamento imundo. É algo deslumbrante nessa terra emporcalhada. No entanto, a pureza de Maria foi incomparavelmente mais deslumbrante, por isso mesmo difícil de analisar. Pode-se entretanto oferecer uma frágil indicação das diferenças entre a virgindade de Maria e a de outras almas totalmente puras.

Pela sua duração, a virgindade de Maria foi mais elevada que a dos demais, pois remontava ao primeiro momento de sua existência. Além disso, como o objetivo da virgindade é a consagração total e sem restrição a Deus, a de Maria foi mais elevada por não ter tido precedente. É bastante natural imitar o que se vê outras pessoas praticarem. Milhares de sacerdotes, religiosos e religiosas se entregam atualmente ao celibato, e uma alma generosa pode decidir-se a imitá-los. Mas o caso de Maria é inteiramente diferente, pois não havia em torno dela, nem mesmo no Antigo Testamento, exemplo de vida virginal ou algum conselho que a levasse a abraçar tal via.

Havia ainda os obstáculos a ultrapassar. Não é difícil encontrar hoje condições favoráveis à prática da virgindade, como em conventos, mosteiros, e mesmo na vida cristã no mundo. Mas seria enorme a dificuldade para permanecer virgem numa sociedade estranha a toda ideia de uma virgindade consagrada a Deus, e onde os costumes pareciam mesmo impor o casamento a toda jovem honesta.

Entretanto, além dessas diferenças que são antes de tudo superficiais, havia outra de caráter essencial, que era a perfeição intrínseca da sua pureza, isto é, seu distanciamento em relação a qualquer objeto criado que pudesse afastá-la da sua união com Deus. Neste sentido, sua pureza a elevava acima de todas as purezas terrestres e angélicas, tanto quanto a distância entre o nosso amor a Deus e o de Maria, do qual sua pureza era uma condição e um aspecto. Para fazermos uma ideia de sua pureza, seria necessário termos uma ideia verdadeira de seu amor.

Da mesma forma que a pureza de Maria, sua humildade apresenta algo de singular. Para nós, a humildade é a vitória sobre a vaidade e o orgulho;  é a constante lembrança de nossas faltas e de nossa corrupção;  é a preocupação em não nos deleitarmos com superioridades reais ou fictícias. Em Maria não havia nada de parecido com isso, pois para Ela a palavra eu não era levada em conta, só existia Deus.

Desde o começo do mundo, nenhum anjo se curvara diante de um ser humano, mas o anjo Gabriel se curvou diante dela em nome de Deus e a proclamou cheia de graça. Ao invés de exultar de alegria ante essa saudação inaudita, Maria ficou perplexa e refletiu. O anjo a tranquilizou e explicou que se tornaria Mãe de Deus. Sua única resposta foi uma palavra de submissão, pois se considerava serva de Deus.

Maria tinha noção clara de sua superioridade sobre Izabel. No entanto, longe de aguardar que sua parenta viesse até Ela, comparece diante da prima a fim de prestar-lhe cuidados de uma serva, e a torna participante das suas graças. A prima percebe logo essa enorme distância e se manifesta confusa diante de tanta hora: "Como me é dado que a Mãe de meu Senhor venha até mim? Bem-aventurada sois, porque acreditaste". Sem pensar em si mesma, Maria responde: "Minha alma glorifica o Senhor."

Voltando a Nazaré, sua gloriosa maternidade pode dar ensejo às suspeitas mais injuriosas, mas nenhuma palavra se ouve dela para dissipá-las. Sua atitude reservada e de modéstia é a mesma diante dos pastores e magos, de Simeão e Ana. Mais tarde, quando ouve a resposta de seu Filho reencontrado no Templo, nem sequer argumenta que não entendeu o que Ele quis dizer. Sua presença nem é mencionada por ocasião da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, embora certamente estivesse no meio da multidão. No entanto reaparece ao pé da cruz, onde estava ao alcance da zombaria de judeus e romanos. Após a ascensão de seu Filho, entra num completo olvido, a ponto de não conhecermos nem o lugar nem a data de sua morte.

A humildade da Virgem nada tem a ver com desconhecimento nem esquecimento. Ela não tem o falso pudor de esquecer ou minimizar as maravilhas com que o Criador a cumulou, e o próprio Deus não a deixa esquecer-se delas. Sabe perfeitamente que "grandes coisas lhe foram feitas", e reconhece que "todas as gerações a chamarão bem-aventurada". Aos seus olhos, no entanto, é evidente que tudo foi obra de Deus, e nem sequer lhe vem ao espírito o pensamento de se comprazer nisso. É tão estranho a Ela o pensamento de atribuir a si mesma todas essas maravilhas de Deus, que pode tranquilamente admirar sua incomensurável dignidade sem conceber a mínima tentação. Não se rejubila consigo mesma, pois vê todas as coisas em Deus, que é todo-poderoso e eleva os pequenos. Pode ser vista portanto como a mais excelsa e ao mesmo tempo a mais humilde das criaturas.

Ao lado de todas essas virtudes, convém assinalar a simplicidade, que confere a todas as outras virtudes e a toda a pessoa da Virgem um encanto particular. Como simplicidade, pode-se entender uma qualidade geral ou uma virtude especial. Como qualidade geral, supõe a ausência de afetação, de tudo que procura atrair a atenção. Neste sentido, pode-se dizer que as virtudes de Maria, por mais sublimes que tenham sido, foram ao mesmo tempo muito simples, de tal modo que, se os mais perfeitos dos homens jamais conseguirão igualá-las, até os mais humildes podem imitá-las.

A virtude especial de simplicidade é a condição de uma alma que tem Deus como único objetivo, e que caminha diretamente para Ele. Exclui a procura inadvertida, mas real, de um segundo objetivo que é o eu, isto é, toda segunda intenção, mesmo inconsciente, sobre vantagens pessoais, lucro material, ambição, vaidade, complacência consigo mesmo.

O que podemos afirmar sobre essa virtude em Maria? Ela pode ser inteiramente descrita com o retrato que deu de si mesma na resposta ao anjo: "Eis a serva do Senhor, faça-se em mim de acordo com vossa palavra". Não ignora a infinita grandeza nem os indizíveis sofrimentos que a esperam, no entanto pronuncia com toda simplicidade sua palavra de consentimento com a vontade divina. Para Ela, só o que importa é Deus. Suas grandezas ou dores pessoais não podem entrar em consideração. Nem parece espantar-se com o fato de Deus a ter escolhido, como quem perguntasse: por que eu e não outra? Como Deus se manifestou, não há espaço para se levantar perguntas como essa.

Alguns dias depois da visita de Gabriel, Ela explica à sua prima o motivo da escolha de Deus, que distribui seus benefícios a quem sabe que não é nada. Não contesta os elogios de Izabel, mas aceita-os simplesmente, contentando-se em colocar as coisas como de fato são. Quando a prima a reconhece como bem-aventurada por ter acreditado, reconhece que "todas as gerações me chamarão bem-aventurada". Por quê? "Porque o Senhor olhou para a insignificância de sua serva e me fez grandes coisas".

Esta mesma simplicidade de quem só procura a Deus e se esquece de si mesma, nós a encontramos nos outros momentos de sua vida: diante da angústia de São José, em Belém, no Templo, no Egito, na vida oculta e na vida pública de seu Filho, no Calvário, no cenáculo, nos últimos anos de sua vida.

A atenção posta constantemente em Deus, e nas outras coisas enquanto voltadas para Ele, constitui um dos principais fatores da perfeição de suas virtudes. Tendo sempre Deus em mente, e encarando-o como o amor infinito que Ele é, sua fé foi inabalável, sua esperança firme e constante, seu amor a Deus inteiramente puro, além de pressurosa e humilde a sua caridade em relação ao próximo. Considerando sempre a vontade de Deus, sua prudência jamais se desviava. Apoiando-se somente em Deus, sua força nunca fraquejou. Descobrindo em Deus seu Criador, seu Pai, seu Filho, teve uma religião incomparavelmente profunda, uma piedade incomparavelmente terna. Procurando somente a Deus, consagrava-se a uma pureza angélica. Compreendendo que Deus é tudo e Ela nada, foi naturalmente a mais humilde das criaturas.

Essa simplicidade lhe conferia uma beleza deslumbrante. Mesmo sendo grande a esse ponto, com uma grandeza que ultrapassa a dos anjos mais sublimes, e que Ela mesma jamais poderá compreender, no entanto só olhava para Deus, jamais lançava sequer um olhar furtivo sobre essa grandeza para se embevecer consigo mesma.

Era necessário que Maria tivesse uma grandeza assim, pois foi ao admirar sua própria perfeição que Lúcifer lançou seu grito de revolta: Non serviam -- Não servirei. Adão também olhou para si mesmo e se deixou convencer da perfeição que lhe prometia a serpente, daí desobedecer a Deus. Maria nunca olhava para si mesma, e remetia a Deus tudo o que encontrava em si, mantendo-se a mais amorosa e mais submissa, a mais tranquila e mais perfeita das criaturas.

Essa simplicidade, que tornou Maria tão bela e tão cara a Deus, deixa-nos inteiramente à vontade em relação a Ela. Por mais elevada que seja por sua dignidade, manteve-se perto de nós por sua simplicidade. Tão pouco pensa em se prevalecer de sua grandeza, tão pouco se move a nos encarar com altivez, tão bem conhece que só a Deus deve sua própria superioridade, que dela nos aproximamos sem o menor receio. Quando o anjo Rafael declarou a Tobias e ao seu filho "sou um dos sete que assistem diante de Deus", eles tremeram e caíram com a face em terra. Mas sentimos que não nos assustaríamos se Maria nos aparecesse, e que nunca nos diria "sou aquela que está sentada à direita do Filho de Deus". Diria que veio para nos conduzir àquele que é infinitamente bom para os pequenos e humildes, como o foi com Ela mesma. Quanto mais é Mãe, mais Ela é simples.

Crescimento e perfeição final da vida sobrenatural de Maria


Até aqui procuramos entrever a plenitude de graça em Maria, além de algumas das maravilhas que essa graça produziu. Resta ainda lançarmos um olhar sobre o conjunto da sua vida sobrenatural, a fim de podermos considerar seu crescimento e perfeição final.

A vida sobrenatural não pode crescer do modo como cresce uma fortuna. Seu crescimento deve assemelhar-se ao de uma capacidade espiritual, como a inteligência e o amor. Concordamos que a inteligência de um homem possa crescer indefinidamente, desde as primeiras luzes de sua razão até o pleno desenvolvimento de seu gênio;  ou que seu amor possa desenvolver-se sem cessar, depois do primeiro movimento de afeto um tanto egoísta até os atos de devotamento mais heroicos. Mas não podemos exprimir esse crescimento por meio de números ou de gráficos. O mesmo se passa com a vida sobrenatural, que não cresce por meio de somatória de partes, e sim pela intensificação intrínseca;  não como um reservatório de peças de ouro, e sim como uma indefinida capacidade para compreender, desejar e amar. (Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II, 2, 24, 5.)

A quais fatores se deve esse crescimento? Como qualquer outro tipo de vida, a vida sobrenatural cresce em primeiro lugar pela sua própria atividade normal. A prática normal da vida sobrenatural supõe a execução constante e amorosa da vontade de Deus, o que corresponde à fidelidade à graça e ao cumprimento do dever quotidiano. Maria era dotada de uma "plenitude de graça tal, que não se pode conceber outra maior abaixo de Deus". Todas as suas ações, mesmo as comuns, eram praticadas com maior perfeição do que as mais importantes que os santos desempenhavam. Essa perfeição ia aumentando sem cessar, pois todo ato praticado com perfeição nos capacita a praticar melhor o seguinte. De tal forma que, em igualdade de condições, um ato praticado aos cinquenta anos é bem mais perfeito que aos vinte ou trinta anos.

Para melhor compreendermos a perfeição crescente das ações de Maria, comparemos as diferenças entre o nosso crescimento em perfeição com o que Ela teve. Inicialmente devemos notar que ao lado das nossas ações sinceramente oferecidas a Deus há grande número de outras em que procuramos a nós mesmos, o que interrompe ou retarda nosso movimento para a perfeição. Mesmo nos nossos atos mais santos inserem-se negligências e motivos egoístas, que os contaminam ora mais ora menos. Em Maria, pelo contrário, jamais se nota a procura de si mesma. Em segundo lugar, mesmo quando estamos à procura somente de Deus, por vezes nosso espírito se distrai do pensamento em Deus e da intenção real de lhe agradar;  outras vezes nossa liberdade se acha cerceada por movimentos desregrados de nossa sensibilidade;  pode também ocorrer um resfriamento do nosso amor a Deus, quando não é sustentado pelas consolações divinas.

Em Maria, nenhuma interrupção voluntária ou involuntária na ascensão para as alturas. Seu pensamento mantinha-se sempre concentrado em Deus, mesmo em meio às ocupações mais absorventes. Parece muito razoável sustentar a opinião de São Francisco de Sales e alguns outros autores, de que o próprio sono dela era de amor, e nas horas em que seu corpo dormia, seu coração velava. Tanto mais que, como narra Santa Tereza de Ávila no capítulo 29 de sua Vida, cerca de doze anos antes de atingir o grau supremo da união mística a sua "oração era tão contínua, que o próprio sono não era capaz de interrompê-la". Poderia ser diferente em Maria, que já no início da vida tinha uma união mais íntima com Deus do que todos os grandes santos ao se encerrar a deles? A atenção natural em Deus é psicologicamente incompatível com o sono, mas a ciência infusa prescinde das imagens da sensibilidade e das condições fisiológicas.

Por que não poderia ela exercer-se tanto durante o repouso dos sentidos quanto em seu período de atividade? (O diretor espiritual de Santa Gema Galgani relata que durante um êxtase ela disse, aludindo à oração da noite: "Vede, ó Jesus, que durante a noite eu durmo, mas meu coração não dorme, sem cessar permanece vigilante e unido a vós" -- Cf. Germano e Felix, pg. 243.)

A liberdade de Maria se mantinha inteiramente sob controle, sem movimentos de concupiscência, sem pressão de nenhum tipo que fosse capaz de impedir ou reduzir seu perfeito autodomínio. Mesmo nas suas ações mais espontâneas, sua liberdade era mais completa que a nossa nos nossos atos mais refletidos.

O amor de Maria era tão intenso quanto Deus esperava dela. Ao contrário do que ocorre com o nosso amor, o dela não precisava ser sustentado por Deus através de consolações sensíveis. Sabemos que Deus não a poupou de provas e desolações, que sempre resultavam numa intensificação do seu amor, ao contrário do que habitualmente acontece conosco. Qualquer que seja o ângulo sob o qual analisemos a perfeição de Maria no cumprimento de todas as suas ações, constatamos sempre que crescia com velocidade incessantemente acelerada, longe de sofrer a menor redução.

Ao lado do crescimento que a vida sobrenatural adquire por sua prática normal, pode haver outro que não guarda proporção com essa prática. Da mesma forma que a vida física de um doente pode adquirir vigor novo pela transfusão de sangue, numa pessoa comum um acontecimento imprevisto pode comover suas fibras mais íntimas, fazendo-o encontrar energia renovada para o bem e transformando-o em outro homem. Algo de análogo ocorre na vida sobrenatural. Ela se intensifica sem proporção com o valor intrínseco do ato praticado na recepção dos sacramentos, e isso se nota particularmente na comunhão. A graça da Eucaristia ultrapassa imensamente o mérito dos atos de fé e caridade do comungante. É como uma transfusão de sangue divino, que dá à alma participação nova na vida de Deus. Entretanto, mesmo na recepção dos sacramentos as disposições do cristão influem na abundância da graça produzida pela força do rito sagrado.

Pode acontecer que uma comunhão fervorosa nos traga mais vida divina do que as comunhões mais ou menos rotineiras de um mês ou ano inteiros.

Sem considerarmos a questão de saber quais sacramentos Maria recebeu, sabemos que viveu com São João em Jerusalém, onde os fieis perseveravam na fração do pão. Portanto, diariamente a Mãe de Jesus participava do sacramento capaz de conferir mais graças que todos os outros sacramentos. Como praticava com grande perfeição suas menores ações, podemos imaginar quais eram suas disposições de alma quando se unia ao seu Filho, e também quão grande era a abundância de graças que dele recebia.

A fidelidade aos deveres de estado e à graça sacramental -- os dois fatores para o crescimento sobrenatural -- estão ao alcance de todos os fieis. Em Maria houve um terceiro fator, absolutamente próprio a Ela, que foi a vocação para sua dupla maternidade. Como expusemos acima, quando Deus chama uma alma para uma função especial, além de conceder-lhe as graças destinadas à sua santificação pessoal, acrescenta graças especiais, destinadas a ajudá-la no cumprimento dessa função. Trata-se de graças orientadas primeiramente para o bem das almas confiadas a quem foi escolhido para tal função.

De acordo com a economia divina, o apóstolo não deve contribuir para o bem das almas como um simples instrumento físico, e sim como um cooperador moral, isto é, alguém que faz por merecer a influência que exerce, e toda função especial inclui também a concessão de graças especiais de santificação. Em igualdade de condições, um religioso chamado para a função de mestre de noviços recebe mais graças para se santificar do que outro religioso sem esse encargo;  o bispo responsável por uma grande diocese recebe de Deus mais graças para sua santificação do que outro com diocese de poucas almas;  da mesma forma com o Bispo dos bispos, responsável por toda a Igreja. Essas graças vão crescendo progressivamente mais, à medida que o escolhido corresponde a elas com mais fidelidade.

Maria foi chamada para uma função dupla, que é a de Mãe de Deus e Mãe dos homens. Já mostramos quão grande foi a superabundância de graças que lhe valeu sua maternidade divina. Na qualidade de Mãe dos homens, era chamada a merecer e distribuir para eles todas as graças que receberam e ainda receberão até o fim dos tempos. Por esse mesmo motivo, terão sido imensas as graças pessoais que recebeu. Como essas graças sempre encontraram nela total correspondência, cada um dos seus atos de maternidade espiritual gerou o aumento delas e a concessão de outras. Cada um dos atos de Maria após a Encarnação produziu na sua alma acréscimos de graça que desafiam nosso entendimento.

Servindo-nos de uma comparação material, podemos imaginar a perfeição de Maria como um imenso oceano cuja extensão nenhum homem será capaz de alcançar. Teríamos assim alguma ideia, ainda que imperfeita, do grau de santidade que atingiu. A partir de sua Imaculada Conceição, as graças divinas lhe eram dadas com abundância cada vez maior, e a perfeição crescente com que correspondia dilatava sempre mais os limites desse oceano já imenso. No fim de sua vida terrena, terá atingido dimensão e plenitude inconcebíveis. Quando nos maravilharmos na contemplação de Maria no seu reino celeste, ainda assim não conseguiremos compreender toda a sua perfeição. (Alguns teólogos com formação matemática tentaram representar em números, de acordo com a lei das progressões geométricas, o que deve ter sido essa perfeição final de Maria.

Trata-se de um cálculo fantasista, que deveria começar estabelecendo o que significa um estado de graça duas vezes maior que outro, como também a quantidade numérica de esforço e tempo necessários para multiplicar por dois esse estado de graça. Alguns lamentarão que não exprimem a realidade esses números astronômicos referentes aos graus de graça que imaginaram ter desvendado em Maria. Será que isso é mesmo lamentável? Qualquer número, por maior que seja, não supera nossa inteligência, pois podemos conhecer com exatidão os seus limites e estabelecer em relação a eles uma multidão de comparações e avaliações. Pelo contrário, uma perfeição de vida sobrenatural como a que estamos analisando está muito além do que nossa inteligência possa abarcar. Traz-nos muito mais alegria confessar nossa incapacidade para conceber a imensidade das graças da Mãe de Deus do que saber quantos quatrilhoes ou quinquilhões de vezes ela á maior do que a nossa.)

Corolários


A contemplação dessa santidade que desafia toda concepção nos estimula a analisar qual é o mérito dessa santidade. As pessoas que iniciam a sua vida espiritual podem ter a impressão, devido às frequentes tentações que os assaltam, de que todo mérito consiste na luta contra as más sugestões e inclinações. E diante das condições únicas que a vida de Maria teve -- jamais tentada pela concupiscência e cumulada de tantas graças -- talvez alguns se perguntem como pode ter sido meritória a sua santidade. Evidentemente essa dúvida resulta de um erro de avaliação, pois nesse caso a pessoa mais perfeita teria menos mérito, considerando-se que as tentações diminuem ou desaparecem à medida que alguém se une a Deus. Porém o mérito se adquire não apenas ao evitar o pecado, mas também e sobretudo ao praticar atos positivos de virtude. Sem dúvida, em geral a dificuldade vencida é um sinal de mérito, pois supõe o amor e abre espaço para mais amor.

Toda ação praticada por amor a Deus é meritória, seja ela fácil ou difícil, mas o que faz o mérito é o amor, e não a dificuldade.

Por outro lado, nem todas as dificuldades consistem no combate às tentações. Geralmente não somos tentados contra nosso obscuro dever quotidiano, por exemplo, mas isso não quer dizer que não tenhamos mérito em cumpri-lo. Uma mãe não é tentada a abandonar seu filho doente, mas ninguém dirá que não teve mérito em permanecer dia e noite junto ao seu leito. Nosso Senhor não era tentado a desobedecer ao Pai celeste, mas ninguém dirá que não teve mérito ao sofrer e morrer de acordo com a vontade do Pai.

Maria não foi tentada do modo como somos tentados, porém praticou atos de virtude mais difíceis e mais amorosos que os de qualquer outra criatura. Por conseguinte, seu mérito unindo-se a Deus era maior que o das outras criaturas em lutar contra as tentações mais violentas da concupiscência. É verdade que uma graça incomparável a sustentava, mas todos sabemos por experiência própria que a graça não nos dispensa da necessidade de cooperar com ela, e que os atos de virtude nos quais ela triunfa mais gloriosamente são precisamente os que exigem de nós mais esforços.

Abstraindo da perfeição intrínseca do amor de Maria, Ela podia merecer ainda mais do que nós devido à própria perfeição da sua liberdade, que era sempre completa e sem entraves, ao passo que o exercício da nossa é contrariado, ora mais ora menos, pelos nossos hábitos e tendências.

Se o mérito sobrenatural de uma ação depende necessariamente do amor a Deus com que é praticada, a grandeza do mérito dependerá da grandeza do amor a Deus. Mais especificamente, dependerá do grau de caridade com que o autor da ação a praticou e das disposições especiais dessa caridade, como pureza, constância e intensidade. Uma analogia pode ser encontrada na nossa reação quando ganhamos um presente. Aos nossos olhos ele terá muito mais valor se oferecido por um amigo do que por um desconhecido, ou se foi motivado por uma segunda intenção voltada a obter uma recompensa, ou ainda se de alguma forma se engrandecia com o seu ato. O mesmo se pode dizer do valor que Deus dá à ação de quem lhe oferece algo. Já mencionamos que a caridade habitual de Maria foi sempre superior à de todos os servos de Deus, e a cada momento praticava a vontade do Pai celeste com toda a pureza e todo o amor de que era capaz.

Os méritos de cada ato de Maria a elevavam acima dos méritos de todos os homens e de todos os anjos reunidos. Já o seu primeiro ato voluntário, que foi sua resposta ao amor de Deus Criador e Santificador na sua Imaculada Conceição -- na hipótese de que já nesse momento tinha o uso da razão -- era de valor maior e dava mais glória a Deus do que a reunião de todos os atos mais heroicos dos santos e mártires. Esse mérito crescia na proporção da graça que a inundava e do amor que se aperfeiçoava. Qual foi o valor desse mérito no fim da vida? Tão grande quanto a sua perfeição final.

Maria e o triunfo da Redenção


Uma consequência dessa santidade e mérito transcendentes é que a Virgem constitui para a Redenção um triunfo único. Podemos imaginar, para efeito de comparação, que todos os anjos e homens tivessem permanecido fieis a Deus;  que jamais tivesse sido cometido algum pecado, mesmo venial;  que todos os seres racionais, desde o primeiro momento em que foram chamados à existência, tivessem constantemente cantado a glória de Deus eterno, como o fazem os espíritos bem-aventurados. Se tudo isso se tivesse realizado desse modo perfeito, mas não tivesse havido uma Mãe de Deus com as perfeições de Maria, todo o imenso concerto de gratidão e adoração a Deus teria originado menos amor e beleza na criação, e teria dado menos glória a Deus do que resultou da existência de Maria.

Assim é, mesmo considerando-se este nosso mundo miserável. E se Deus tivesse criado todos os mundos possíveis, habitados por seres incomparavelmente mais numerosos e mais perfeitos do que nós, jamais esses mundos poderiam oferecer o espetáculo de tão grande amor e perfeição, nem tantos motivos de comprazimento como existe na sua Bem-aventurada Mãe. -- Fecit mihi magna qui potens est, -- Et sanctum nomen ejus!

Capítulo, 9º. SIGNIFICADO DA ASSUNÇÃO


É especialmente importante compreender o significado exato da Assunção, muitas vezes apresentada juntamente com detalhes legendários que resultam em falseá-la, abalando em alguns fieis a convicção sobre esse privilégio de Maria.

Entre os apócrifos do Novo Testamento encontram-se vários atribuídos a São João ou a Meliton, (um dos seus discípulos mais próximos)  escritos esses que pretendem relatar a morte e glorificação da Mãe de Deus. De acordo com alguns deles, quando se aproximou o momento de Maria deixar esta terra, os apóstolos voltaram a Jerusalém, transportados sobre as nuvens, e se reencontraram ante o leito da Bem-aventurada Virgem. Logo Nosso Senhor apareceu entre eles, acompanhado de miríades de anjos entoando cânticos celestes, e elevou ao céu a alma de sua Mãe. Os apóstolos depositaram os restos mortais de Maria em um túmulo no horto de Getsêmani, e lá permaneceram rezando e chorando até o momento em que viram seu corpo sair glorioso do túmulo e se elevar ao céu no meio dos anjos.

Segundo outra versão, São Tomé não conseguiu comparecer a tempo de participar do sepultamento. Quando afinal chegou, ao passar sobre o monte das Oliveiras viu Maria que se elevava no ar. Ela deixou cair sua cinta, que Tomé recolheu e em seguida se juntou aos outros apóstolos. Estes quiseram conduzi-lo ao túmulo da Virgem, mas o apóstolo antes incrédulo revelou aos outros, como uma espécie de vingança, que Ela já não se encontrava no túmulo, e como prova mostrou-lhes a cinta. Dirigiram-se em conjunto ao túmulo e o abriram, encontrando-o vazio e exalando perfumes celestes. Louvaram a Deus e à sua Mãe, em seguida retornaram a suas respectivas residências utilizando os mesmos meios de locomoção aérea.

Até aqui é o que narra a legenda, mas a doutrina da Assunção é algo muito diferente. Se bem que não tenha ainda sido definida dogmaticamente pela Igreja,podemos ter sobre ela uma ideia exata comparando-a com duas outras -- glorificação do corpo de Jesus e ressurreição da carne, que são de fé, -- entre as quais a Assunção ocupa, por assim dizer, o próprio centro. Professamos que o corpo de Jesus reuniu-se à sua alma, após permanecer três dias no túmulo, e se encontra imortal, impassível e glorioso no céu. Professamos também que os corpos dos justos falecidos, atualmente separados de suas almas que foram elevadas aos céus, serão unidos a elas após o Juízo Final, de modo semelhante ao que aconteceu com Jesus Cristo. (-- Este livro foi publicado em 1945, portanto antes da proclamação do dogma da Assunção, feita por Pio XII em 1º de novembro de 1950. Comemora-se a festa em 15 de agosto.)

De acordo com a doutrina da Assunção, afirmamos que a ressurreição da carne se dará somente no fim do mundo, mas a de Maria ocorreu pouco depois de sua morte. A diferença é que Jesus subiu ao céu por seu próprio poder, e Maria foi elevada ao céu por seu Filho. É esta a distinção que a Igreja faz, quando usa para Jesus a palavra Ascensão, e para Maria refere-se a Assunção. (Raros teólogos sustentaram, talvez na esperança de reforçar ainda mais a doutrina da Assunção, que a Mãe de Deus não morreu e foi transportada viva ao céu. Esta opinião nos parece evidentemente errônea, por ser contrária a uma tradição praticamente unânime afirmando que Maria morreu antes de ser elevada ao céu.)

Da mesma forma que Jesus, Maria goza hoje no céu a recompensa que todos os justos terão futuramente. Não se trata, portanto, de uma crença fantasista baseada em legendas, e sim de uma afirmação muito clara para todos os católicos, que admitem a Ressurreição de Nosso Senhor e a própria ressurreição que seus corpos terão no futuro. Não está vinculada a nenhum fato histórico, mesmo conhecendo-se este dado de caráter negativo, que é o desconhecimento do local onde teria sido sepultado o corpo de Maria, além de nenhuma pessoa ter visto seu corpo em decomposição. Esta é uma informação que nunca foi contestada.

1º. Assunção de Maria, verdade revelada


Nenhum texto da Sagrada Escritura afirma explicitamente a Assunção de Maria. Porém podemos assinalar na Revelação feita aos fieis dos tempos apostólicos várias indicações próprias a orientar o pensamento no sentido da glorificação antecipada do corpo de Maria.

O relato da queda de Adão e os ensinamentos de São Paulo nos mostram que a morte e a corrupção subsequente não faziam parte dos desígnios iniciais de Deus, constituindo apenas um castigo do pecado. São Paulo repete numa linguagem patética -- e não o saberíamos se ele não o tivesse dito -- que o pecado é sobretudo obra da carne, que luta contra o espírito e procura subjugá-lo. Sabemos ainda -- e São Paulo o reafirma sem cessar -- que Cristo venceu o pecado e a morte, e seu corpo glorificado goza a recompensa celeste juntamente com sua alma.

O ensinamento apostólico, sobretudo o de São Paulo, nos anuncia que, como membros de Cristo, seremos com Ele glorificados futuramente em nosso corpo e em nossa alma. Por outro lado, a Escritura nos fornece a respeito da Mãe de Jesus alguns conhecimentos que, comparados com as informações precedentes, nos orientam no sentido de um destino particular reservado ao seu corpo virginal: Em Maria não existe carne pecaminosa, sua carne totalmente pura serviu para se formar com ela o próprio corpo de Jesus, portanto não deveria padecer o destino que terá a nossa carne de pecado. Mais ainda que uma carne totalmente pura, foi ela a mesma que o Redentor sacrificou na cruz a fim de destruir a morte e o pecado. Deveria essa carne de Maria, instrumento próximo da nossa redenção, estar sujeita ao mesmo destino de qualquer outra? Não deveria ela receber imediatamente a recompensa da Redenção?

Maria esteve unida a Jesus desde a Encarnação, durante longos anos de intimidade na vida oculta até o sacrifício supremo do Calvário. Está de acordo com a lógica vê-la unida também com Ele na sua vitória sobre a morte, para a qual cooperou. Não seria razoável padecer juntamente com Ele e não receber com Ele a recompensa.

Um fato na vida de Maria relaciona-se exatamente com a integridade de seu corpo, parecendo indicar qual deva ser a resposta para essas questões. Por um milagre sem igual, Deus preservou a carne de Maria intacta quando concebeu seu Filho. Manteve até mesmo o selo de sua virgindade no nascimento desse Filho, e não se poderia conceber que depois de tudo isso abandonasse esse corpo à corrupção do túmulo.

Estamos portanto diante de um conjunto de dados fornecidos pela Sagrada Escritura, convidando-nos a concluir que, para a glorificação de seu corpo e de toda a sua pessoa, a situação de Maria não deve ser procurada ao lado dos homens pecadores, e sim ao lado de seu Filho. Na Igreja primitiva não se pensava em fazer tais aproximações a fim de justificar essas conclusões, mas já se possuíam os elementos a serem comparados. Afirmando mais tarde a Assunção de Maria, não se inventa nada de estranho ao que se sabia na Igreja dos primeiros séculos, o que se faz é simplesmente examinar com mais atenção os mesmos dados, aproximá-los e concluir a partir deles o seu alcance completo.

Alguns teólogos supõem uma tradição local sobre a Assunção, que remontaria aos apóstolos e teria se expandido pouco a pouco em toda a Igreja, não conseguindo esses estudiosos explicar de outro modo a crença universal da Igreja nesta verdade. A existência de uma tradição como essa não é impossível, embora não se encontrem traços dela nos mais antigos escritores eclesiásticos, que não mencionam a morte e sepultamento da Virgem. Mas os derradeiros fatos da sua vida não podem ter passado despercebidos nos locais onde transcorreram seus últimos dias, pois o pensamento dos cristãos estava muito atento à sua ligação íntima com o Mestre tão amado. Como se pressentia muito bem que todas as gerações a proclamariam bem-aventurada, não se conseguiria evitar muita expectativa em torno de sua morte, como também muito interesse pela sepultura desse corpo que gerou o de Cristo.

Não é inverossímil que São João e talvez alguns outros apóstolos tenham assistido à morte de Maria, recebendo alguma revelação sobre sua glorificação corporal. É natural também que em torno da sepultura a curiosidade fosse particularmente viva, incitando as pessoas a conferir o que havia dentro dele, a exemplo do que narra o Evangelho sobre o túmulo do Salvador. Há uma antiga tradição em Jerusalém que alega conhecer o túmulo de Maria, encontrado vazio como o de Cristo. Entretanto são hipóteses, não necessárias para explicar a convicção sobre a Assunção de Maria. As indicações convergentes, fornecidas pelo Novo Testamento, bastam para termos a certeza de que a Assunção é uma verdade revelada.

É difícil surpreender nos quatro primeiros séculos da era cristã o trabalho da Tradição relativo à glorificação corporal de Maria. Nenhuma heresia, nenhum acontecimento incitou os escritores dessa época a manifestar pontos de vista sobre essa convicção piedosa. Santo Epifânio, Padre do século 4, alude ao assunto indagando se Maria havia passado pela morte, o que implica saber se o corpo da Virgem sofreu a corrupção do túmulo. No século seguinte, encontramos os apócrifos mencionados acima, que devem ter gozado de ampla divulgação, pois no fim desse século o Papa Gelásio sentiu-se obrigado a recusar-lhes autenticidade.

Um século mais tarde, a festa da Assunção era celebrada em muitas igrejas do Oriente e do Ocidente com nomes diversos -- dormitio, pausatio, transitus, translatio, assumptio -- todos mencionando a glorificação corporal da Virgem. Isso nos coloca na situação de um explorador que chega a um território desconhecido e encontra um rio caudaloso, porém não consegue traçar até sua nascente o trajeto que ele percorre. Surge então a dúvida se a fonte desse rio se encontra a poucos metros dali, ou se ele já percorreu um longo trajeto.

A veneração crescente que Maria alcançava entre os cristãos dos primeiros séculos, sobretudo a honra excepcional vinculada à lembrança de sua virgindade miraculosa, terá provavelmente inclinado os fieis a fazer a aproximação dos dados indicados acima, e o senso cristão lhes terá imposto a conclusão de que o corpo virginal da Mãe de Deus, que forneceu a substância do corpo do Redentor, não podia ter sofrido degeneração, devendo ter gozado desde já a glória da ressurreição.

O sentimento popular não pode se contentar com conclusões intelectuais, precisa de provas que falem à imaginação. A dificuldade para isso não era grande, e pode ter-se apoderado de alguma tradição local para lhe enxertar pitorescos episódios de sua invenção. Na falta de tal tradição, esse sentimento é bem capaz de criar peças inteiras a partir de detalhes fantasistas. Os detalhes variam de um relato a outro, mas sente-se neles uma verdade, esta sim invariável: a crença na ressurreição gloriosa da Mãe de Deus.

Nos séculos seguintes, o sentimento dessa verdade conduziu os fieis a proclamar cada vez mais nítida e universalmente a Assunção da Virgem, apesar da desaprovação com que o decreto de São Gelásio golpeou os apócrifos. No entanto esse decreto pareceu a muitos um tipo de condenação da piedosa crença, daí surgir em certos meios alguma hesitação sobre a doutrina que esses livros procuravam difundir.

Uma carta atribuída a São Jerônimo declarava não poder afirmar nada com certeza sobre a Assunção de Maria, e aconselhava uma atitude não hostil, mas neutra. A autoridade do grande doutor e exegeta impressionou mais de um escritor eclesiástico, mas a maior parte dos teólogos se pronunciou francamente a favor do glorioso privilégio. Logo surgiu outro escrito, apócrifo como o primeiro, atribuído a um doutor ainda mais reverenciado, Santo Agostinho, que defendia abertamente a glorificação da carne de Maria devido à carne de seu Filho -- caro Christi, caro Mariæ. A partir do século 10, a piedosa crença estava generalizadamente aceita, restando apenas alguns eruditos que de tempos em tempos levantam algumas objeções sobre seu caráter de verdade revelada.

2º. A Assunção, ensinada pelo magistério da Igreja


Pode-se afirmar que a Assunção se impõe à nossa fé como verdade absolutamente certa?

Vimos na introdução que se utilizam três critérios de certeza para as afirmações religiosas: o julgamento solene da Igreja, o magistério ordinário e a atitude dos fieis. A Igreja ainda não emitiu julgamento solene sobre a Assunção corporal de Maria. O Primeiro Concílio do Vaticano havia incluído a definição desse privilégio entre os assuntos do seu programa. Porém, como se sabe, teve de suspender suas sessões antes de concluir seu trabalho. (Ver acima a nota do tradutor sobre a proclamação do dogma em 1950.)

Quanto ao magistério ordinário, lembramos que ele procede por meio dos documentos emanados da Santa Sé, pelas instruções conjuntas dos bispos e pela liturgia. Na encíclica sobre o Corpo Místico de Cristo, Pio XII menciona a Assunção corporal como quem menciona uma convicção admitida por todos: "Suplicamos portanto à Santíssima Mãe de todos os membros de Cristo, que juntamente com seu Filho brilha no céu, na glória de seu corpo e de sua alma, que multiplique seu empenho diante dele".

Pode-se afirmar igualmente que os bispos do mundo inteiro ensinam aos seus diocesanos a Assunção corporal de Maria. Nos catecismos ordinários, nos catecismos de perseverança, nos cursos de dogma ministrados nos seminários, nas pregações aos fieis, isso se faz pelo menos com sua aprovação tácita, pois os fieis do mundo inteiro conhecem esse privilégio da Virgem, e para que eles o conheçam é necessário que lhes tenha sido ensinado.

A liturgia é também muito explícita. A festa da Assunção, que talvez seja a mais antiga da Virgem, lembra claramente a todos os fieis a glorificação corporal de Maria logo após sua bem-aventurada morte. O adágio lex orandi, lex credendi (tal oração, tal fé) aplica-se neste caso com autoridade que não se vê em nenhum outro. Além de ser celebrada no mundo inteiro como festa de primeira classe com oitava, a Assunção não pode ser ignorada por nenhum fiel, por tratar-se de festa de preceito. Seria inconcebível que a Igreja nos obrigasse, sob pena de pecado mortal, a festejar um privilégio que considerasse duvidoso.

Por último, a atitude dos fieis não deixa também nenhuma margem a dúvida sobre sua adesão a esse privilégio. Ela é bem mais antiga, mais explícita, mais universal ao longo dos séculos do que havia sido, antes de 1854, o dogma da Imaculada Conceição.

Portanto, dois dos três critérios de certeza garantem a veracidade da Assunção, e lembramos a propósito que bastaria um dos três para chegarmos a esta conclusão. Pode-se argumentar ainda que esses critérios provam somente a realidade da Assunção corporal de Maria, e não seu caráter de verdade revelada, pois nem a liturgia nem o sentimento comum dos fieis afirma explicitamente que tal crença nos vem da Revelação. Ocorre, no entanto, que jamais a liturgia ou o sentimento comum dos fieis proclama explicitamente a origem revelada de uma afirmação de fé, no entanto são ambos admitidos como provas irrecusáveis da Revelação, porque implicam sempre a mesma origem. Com efeito, sabe-se que ao ensinar uma verdade como absolutamente certa, a Igreja só o faz pelo fato de essa verdade ser uma consequência da lei natural, da qual Deus a fez guardiã, ou então da Revelação, cujo depósito Deus lhe confiou.

Como a Assunção de Maria evidentemente não provém da lei natural, conclui-se que pertence à Revelação. (Pode-se percorrer em Denzinger-Bannwart a lista das proposições claramente definidas, e não se encontrará uma em dez, talvez uma em cinquenta, que afirme explicitamente a origem revelada da verdade que ela ensina.

Para quem examina os critérios da Revelação, a origem divina da crença na Assunção não pode apresentar nenhuma dúvida, e exige assentimento incondicional. Isto não equivale a dizer que se tem o direito de acusar de infidelidade, ainda menos de heresia, alguns teólogos que ainda manifestam hesitações sobre o assunto. Estão habituados -- erradamente, mas aparentemente sem culpa própria -- a encarar como impondo-se à nossa fé apenas as verdades definidas pelo julgamento solene da Igreja;  pode ser também o caso de estarem conferindo excessiva importância a algumas vozes discordantes, como se fosse exigida a unanimidade absoluta, ou até que a considerem possível, quando na realidade basta uma quase unanimidade. Talvez por essas razões eles não consigam encarar que esse privilégio possui as características evidentes de verdade revelada.

Só a cegueira voluntária constitui pecado, ao contrário de uma simples cegueira, e talvez algum dia a lembrança das disputas que houve sobre a Imaculada Conceição os faça compreender melhor que, por mais que sejamos teólogos e sábios, nossos argumentos nunca prevalecem contra o sentimento comum dos fieis. A palavra de Santo Agostinho, que conduziu Newman à fé católica, poderá um dia conduzi-los a um entendimento mais profundo do mistério de Maria: Secure judicat orbis terrarum.)

Conseguiremos algum dia ver proclamada a Assunção como dogma de fé, como a Imaculada Conceição? Tal proclamação não acrescentará nada à certeza da nossa fé, mas dará mais glória a Maria. Após o projeto de definição depositado no Primeiro Concílio do Vaticano, chegaram de vários países petições com assinaturas de numerosos fieis, sacerdotes, bispos, universidades, pedindo ao Vigário de Cristo o apressamento do dia em que na terra seja glorificada aquela que Cristo tão maravilhosamente glorificou no céu. Chegará esse dia? Somente o Papa pode decidir.

3º. Harmonias


As harmonias entre a Assunção e os outros privilégios da Virgem foram esboçadas acima, e basta agora mostrarmos como esse privilégio é complemento necessário da maternidade espiritual e do conjunto dos outros privilégios.

A Assunção é praticamente necessária a Maria para preencher esse papel de mãe, que tem grande importância na nossa devoção a Ela. Se apenas sua alma estivesse no céu, faltar-lhe-ia algo para podermos senti-la como nossa mãe, pois estaria muito longe de nós, etérea demais, sendo que uma mãe não é só espírito, tem também um corpo. Não há dúvida de que o amor é atributo da alma, não do corpo, mas a alma unida ao corpo é o que gera essa delicada sensibilidade, esse matiz de ternura, esse algo inefável que distingue o amor materno de qualquer outro amor, até mesmo do amor paterno.

A mãe manifesta seu amor através das atitudes e gestos de seu corpo -- um olhar, um sorriso, lágrimas, o tom de voz, o contato de sua mão, os ternos abraços. Se pudéssemos conceber a Santíssima Virgem no céu como uma alma separada do corpo, certamente nossa piedade filial em relação a Ela e sua ação materna conosco não seriam o que são -- não poderia compartilhar nossos sentimentos, consolar-nos, amparar-nos nas nossas tentações como hoje. Para confidenciarmos nossas emoções, nossa história íntima em que nosso corpo desempenha papel tão importante, precisamos de uma mãe em carne e osso, cuja sensibilidade infinitamente delicada consegue vibrar perfeitamente em consonância com a nossa.

Especialmente quando a tristeza nos invade, só uma mãe plenamente mãe pode nos compreender e enxugar nossas lágrimas. A lembrança de nossa mãe do céu é a mais adequada para nos consolar e nos devolver a paz e a coragem;  a lembrança da mãe das dores, que sabe como ninguém o que é o sofrimento, e que nos olha com os mesmos olhos que viram o sofrimento de seu Filho;  a lembrança da mãe pura, que nos faz resistir às tentações violentas ou atraentes;  a lembrança da mãe que nos ajuda eficazmente, pois não é só espírito, é mãe em toda a plenitude da palavra.

Exatamente por sua presença corporal, Maria possui esse poder tranquilizador e purificador que é só dela. Basta-nos admirar esse olhar tão recolhido, tão sereno, tão belo, tão divinamente puro, para que se desfaça em nós qualquer imagem impura, acalmando-nos e enchendo-nos de confiança e força nas nossas dificuldades. Se a Mãe imaculada toma em seus braços esse pobre filho e o estreita junto ao seu coração, como fez com seu Filho divino, como deixará ele de voltar-se inteiramente para Jesus e Maria?

O mesmo se pode dizer sobre as outras funções maternas de Maria. Se as desempenha tão perfeitamente, é porque está no céu em corpo e alma. Sem a Assunção, Ela seria menos mãe, não seria mamãe.

O Filho de Deus conhecia por experiência própria a diferença de atitude dos homens a seu respeito, comparando a que haviam tido quando era ainda puro espírito e a que passaram a ter quando se revestiu de carne humana. Quis fazer-nos participantes da sua piedade filial em toda a medida do possível, e decidiu que Maria estaria de corpo e alma no céu, para ser em corpo e alma a sua Mãe e também a nossa Mãe.

Sendo todos os homens concebidos em pecado original, encontramos até mesmo nos santos algumas desordens, pelo menos no início da vida, por vezes em parte considerável dela. A incoerência desaparece à medida que se vão santificando, o equilíbrio e a paz se estabelecem inicialmente nas suas potências superiores, descendo pouco a pouco às faculdades inferiores, atingindo até os movimentos do seu corpo e expandindo-se a santidade na harmonia.

Desde sua Imaculada Conceição, Maria sempre foi a criatura mais harmoniosa que se possa imaginar. Uma harmonia inefável, sendo cada batimento do seu coração voltado para a santidade mais sublime. Só Deus pode avaliar a harmonia perfeita de Maria no final da vida, sem qualquer sombra de desordem. A corrupção da carne após a morte é uma manifestação de desordem, como consequência do pecado original. Porém Maria nunca teve em si a desarmonia do pecado original, não merecendo portanto o castigo da separação entre corpo e alma e a consequente corrupção da carne após a morte. Era necessário que a harmonia realizada na vida terrena se completasse com a permanência da alma unida ao corpo, o que se concretiza no céu por meio da glorificação de sua alma e do seu corpo, como reflexo da infinita glória de seu Filho.

Examinando em seu conjunto as várias grandezas de Maria, concluímos que lhes faltaria algo se não tivesse havido a Assunção em corpo e alma.

Capítulo, 10º. A BEM-AVENTURANÇA DE MARIA


A assunção foi apenas um começo, constituindo o primeiro momento de uma bem-aventurança sem fim. Resta-nos tratar dessa bem-aventurança. Mas como se pode analisá-la ou descrevê-la? "Os olhos do homem nunca viram, seus ouvidos jamais ouviram, seu coração jamais compreendeu o que Deus prepara aos que o amam". Esta palavra do Apóstolo se refere à bem-aventurança até do último dos pecadores que, uma vez purificado, entra no gozo de sua glória. O que dizer então da bem-aventurança daquela que, desde a sua Imaculada Conceição, ultrapassou na sua santidade final a de todas as criaturas?

Entretanto, uma necessidade profunda nos impele a contemplar, mesmo que seja a grande distância, alguns reflexos da felicidade concedida a nossa Mãe do céu. Se não é possível descrevê-la, pelo menos podemos enunciar um ou outro princípio adequado para orientar a nossa contemplação.

Lembramos inicialmente que a nossa vida no céu é a expansão da nossa vida sobrenatural da terra. Pela graça santificante, somos filhos de Deus, e o céu é a plenitude da vida da graça na visão e posse de Deus nosso Pai. Na sua essência, essa vida é a mesma para todos os bem-aventurados, diferindo entretanto em sua intensidade e quanto ao seu modo. Da mesma forma que na terra cada pessoa ama a Deus à sua maneira, de acordo com seu caráter e suas condições de vida, também no céu nossa bem-aventurança será diferente das outras de acordo com nossos modos de vida na terra. "No céu, até uma estrela é diferente de outra". Na terra, os patrões remuneram seus empregados com a mesma moeda, quaisquer que sejam suas funções e aptidões, mas no céu Deus sabe recompensar cada mérito particular por meio de uma recompensa particular. A Igreja o reconhece, quando atribui glória especial aos mártires e às virgens.

De acordo com estes princípios, podemos afirmar inicialmente que a bem-aventurança de Maria deve ultrapassar, da mesma forma que sua santidade, a de todos os anjos e bem-aventurados reunidos. Não basta dizer isso, pois esta já seria a situação se Ela fosse elevada ao céu depois do seu primeiro ato de amo. Qual deve ser então sua bem-aventurança depois de ter atingido a santidade final?

Podemos ainda examinar todas as virtudes de Maria, tentando adivinhar a bem-aventurança especial que deve corresponder a cada uma delas: Sua fé tornou-se visão, uma visão única correspondente a uma fé única;  visão que a faz imergir nas profundezas dos mistérios divinos, da Santíssima Trindade, da Encarnação, da Redenção, da predestinação dos homens em geral e da sua em particular;  visão que sem dúvida não esgota esses mistérios, mas neles penetra imensamente mais que as inteligências celestes mais sutis.

Sua esperança tornou-se posse;  uma posse plena, inquestionável, do Deus que sempre possuiu a um título único desde a sua Imaculada Conceição, sobretudo depois da Encarnação;  uma posse que agora é dotada de segurança e plenitude inteiramente novas.

Sobretudo o seu amor encontrou inteira saciedade, tendo desaparecido os entraves terrestres e caído as separações;  um amor sem limites, com intensidade e pureza incomensuráveis, doravante orientado livremente para o Amor infinito, com todo o seu indizível ardor;  sua caridade em relação aos homens se ampliou na mesma proporção, pois trata-se de um aspecto do seu amor a Deus. Maria ama Jesus nos seus filhos do céu e da terra, com amor indefinidamente ampliado, tanto quanto se ampliou o seu amor a Jesus. Juntamente com a intensidade desse amor, cresceu também sua eficácia, pois agora dispõe à vontade das infinitas riquezas de Deus para distribuir aos seus filhos.

Da mesma forma que as virtudes teologais, as virtudes morais da Virgem terão recebido sua expansão especial e sua recompensa particular. Quanta adoração deve Maria oferecer à Santíssima Trindade! Quantas ações de graças contínuas deve render pelas grandes coisas que fez por Ela e por seus filhos! Quantas súplicas continua a dirigir a Deus em nosso favor, pedindo perdão e socorro! Sobretudo sua piedade está maravilhosamente transformada. Sentada junto a seu Filho, compreende plenamente o seu título único de Filha de Deus;  compreende como Deus a fez entrar na Família divina, tornando-a sua Associada, sua Mãe, sua Esposa;  compreende como esse Deus de infinita bondade quis torná-la objeto especial da nossa piedade, para que assim possamos compreender melhor a piedade em relação a Deus.

O mesmo se pode dizer sobre todas as outras virtudes. Assim como os mártires ocupam lugar especial junto ao Cordeiro imolado, e como as virgens acompanham sempre o Cordeiro e cantam um cântico que ninguém mais pode cantar, o que dizer sobre a Rainha dos mártires e Virgem das virgens? A contemplação piedosa pode assim aplicar-se a cada uma das disposições de Maria e pressentir o gênero especial de bem-aventurança que deve destacá-la no céu.

Tudo indica que temos o direito de ir mais longe, e considerar não somente as virtudes de Maria, mas também os mistérios de sua vida. Sabemos que Jesus, tendo sido crucificado no Calvário, permanece no céu como o Cordeiro imolado, que se oferece ao Pai para nos resgatar. O que ocorre com este e com os outros mistérios de Cristo ocorre também com os de Maria, nos quais se podem distinguir dois aspectos: um transitório, que se refere aos fatos da sua vida;  o outro aspecto é permanente, e são as disposições com as quais esses fatos se deram e as relações que deles resultaram. No céu, onde tem a sua glória, Maria permanece sempre a Virgem da Imaculada Conceição, a Virgem da Encarnação, a Virgem da co-redenção, e também mantém todas as disposições que a animavam no momento em que esses mistérios se realizaram nela ou por meio dela.

Sem nenhuma dúvida, mantém também a alegria que esses mistérios significaram para Ela naquele momento, porém indefinidamente multiplicada.

Os pontos que indicamos são suficientes para se entender algo da bem-aventurança de Maria, mas seus filhos saberão encontrar neles e em muitos outros um alimento constante para suas meditações, enquanto aguardam na terra o momento de participar da glória dela no céu.


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